Apoie o jornalismo independente de Pernambuco

Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52

A violência policial contra a juventude negra de Pernambuco e o silêncio da classe média

Laércio Portela / 20/10/2017

Foto: Yane Mendes

Danilo tomava uma cerveja na parada de ônibus em frente a uma lanchonete que vendia clone de coxinha na UR-11, às 21h30, depois de um longo dia de trabalho, quando várias viaturas da Polícia Militar fecharam a rua. Começou o inferno. “Mão na parede!, tá reclamando do que?”, tapa na lata de cerveja, ajoelha no chão!, algema na mão. Vai parar na gaiola na parte de trás da viatura com outro jovem menor de idade que também reclamou da abordagem truculenta. “Tá reclamando do quê? Quando a gente aborda vocês é para ficar calado”.

Mais de uma hora depois, quando a operação acabou, foi liberado. “Tudo que eu imaginava é que eles iam me levar e fazer sangrar. Fui feliz para casa porque voltei vivo”.

Cleonice estava preocupada. Uma ideia não saia da cabeça dela: “ele vai me matar”. Ela decidiu se levantar e sair para conversar com o PM do lado de fora da UPA da PE-15. Foi franca na abordagem: “Eu vim aqui falar com você porque tô com medo que você me mate”. Ela havia filmado o policial discutindo com um casal de idosos que reclamava da demora no atendimento. “Cala a boca!”, disse o PM para a mulher do senhor cadeirante. Um jovem de bermuda e cabelo pintado tentou defender a senhora e foi expulso da UPA pelo policial.

A recepcionista dedurou. “Aquela mulher ali gravou tudo”. O PM mandou Cleonice entregar o celular. Ela não entregou. Mandou ela se levantar e sair da UPA. Ela não saiu. Outros policiais chegaram, “ficavam entrando e saindo, olhando para mim e rindo”.

Agora, já do lado de fora, ela disse que tinha mandado o vídeo para alguns amigos (para se proteger), mas que não iria divulgar nada nas redes sociais. Fechou o acordo. O PM disse que também tinha a foto dela.

Gleydson se agachou, abriu a mochila que fora jogada abruptamente no chão e pegou os dois volumes (O que é espiritismo de Allan Kardec e um livro de Vygotsky). Mostrou aos policiais. “Sou professor. Sou um aliado de vocês. Meu trabalho também é contra a violência”. Foi colocado no camburão. “Me chamaram de doido… me chamaram de doido… eu, um professor, um professor deve ser respeitado por um policial – os professores deveriam ser escoltados para casa, não é? – fui tratado como um cão sarnento”.

Depois de algum tempo veio a sentença da Justiça: desacato à autoridade.

Quando o ônibus da linha Cabo/Cohab parou na blitz em Prazeres, perto do posto Shell, Gilmara já pressentia o que vinha pela frente. Os policiais subiram no ônibus e abordaram ela e outros dois jovens negros. Não era a primeira vez que isso acontecia naquele mesmo local. Uma policial pediu a bolsa de Gilmara para fazer a revista. A senhora branca, sentada do lado, perguntou se também seria revistada. “Não, senhora. Tá tudo certo. Boa noite”. Gilmara lembrou quando um policial disse para ela uma vez que quando fosse abordada pela PM colocasse a mão na cabeça e ficasse calada. Esse é o procedimento. “Se mandam colocar a mão pra frente (quando está sentada no ônibus) é porque você é uma suspeita”. Não esqueça. Esse é o procedimento.

Danilo Pedro (29), Cleonice Saraiva (29), Gleydson Góes (29) e Gilmara Santana (22) têm algo em comum. São jovens, negros, moradores da periferia e atuam em movimentos de resistência da juventude negra em Pernambuco. Danilo reside no Ibura, é tatuador e um apoiador dos festivais de hip-hop nas comunidades, ajuda a divulgar e a patrocinar os eventos oferecendo o serviço gratuito de tatuagem. Cleonice mora na Cidade Tabajara, integra o movimento nacional do Coletivo Juntos e tem um canal no Youtube em que promove discussões sobre racismo e direitos humanos, o 100% Negra. Gleydson é integrante do Fórum de Juventudes do Cabo, ator e autor de teatro e professor de inglês. Morador do bairro de São Francisco, foi candidato a prefeito pelo Psol em 2016. Gilmara também mora no Cabo. Foi coordenadora de Igualdade Racial do município e é representante da rede ciberativista negra de Pernambuco.

O Governo mostra as suas armas

Desde pequenos, Danilo, Cleonice, Gleydson e Gilmara aprenderam da pior forma possível que mais policiais nas ruas não significa mais segurança. Não para eles. Quando ligam a TV e veem a nova propaganda do Governo de Pernambuco anunciando a contratação de mais 4.500 mil policiais, 1.400 viaturas e a criação do BOPE (Batalhão de Operações Especiais), eles sabem muito bem quem vai ser protegido e quem vai ser atacado com “pulso firme” pelo braço armado do Estado.

O Governo do Estado está apostando em mais policiais nas ruas e no estímulo às abordagens para conter o aumento da violência em Pernambuco. Por isso enviou e aprovou em primeira discussão no plenário da Assembleia Legislativa, na terça-feira (17), o Projeto de Lei 1596/2017 que amplia a gratificação por produtividade de policiais civis e militares implementada desde 2011 com o nome de Gratificação Pacto pela Vida (GPPV).

Às bonificações previstas para cumprimento de mandado de prisão, apreensão de jovens envolvidos em atos infracionais e apreensão de crack e cocaína foi somada também a apreensão de armas. Em resumo: os policiais que fizerem mais apreensões e prisões vão ter um incremento nos seus salários, seguindo um sistema de pontuação pré-definido. Para apreensão de arma de fogo, o bônus será de R$ 2 mil a R$ 700,00. As apreensões de crack (a partir de 12 gramas) serão remuneradas entre R$ 1.000,00 e R$ 250,00 com teto no número de beneficiados por unidade operacional.

Na prática, o Governo corre contra o tempo – estamos a um ano das eleições – para reduzir o desgaste político com a piora dos índices do Pacto pela Vida. Criado em 2007 e monitorado diretamente pelo governador Eduardo Campos (PSB), o Pacto tornou-se uma referência nacional ao reduzir de forma significativa o número de homicídios em Pernambuco. Em 2007 foram 4.591 assassinatos. A partir daí começou uma trajetória descendente até alcançar a marca de 3.100 em 2013. Desde então os crimes letais não param de crescer. Em 2016, chegaram a 4.479 e entre janeiro e setembro deste ano já somam 4.145.

A conjugação de mais policiais nas ruas e o incentivo financeiro para que eles intensifiquem as abordagens na Região Metropolitana do Recife são motivo de apreensão para integrantes dos movimentos de negros e negras que atuam nas periferias contra a violência institucionalizada do Estado.

Fiquei sem carteira, boné e direitos…

O protesto nos últimos dias de 2016 já estava no fim, chegando ao Cais de Santa Rita, quando um grupo colocou fogo num boneco. Henrique viu quando a “PM de farda preta” chegou. “Era tiro de bala de borracha para todo lado. Um advogado foi atingido na barriga”. Henrique estava com o megafone, puxando o protesto contra o aumento da passagem de ônibus. Saiu correndo quando, de repente, foi puxado abruptamente pela gola. “Respeite a polícia”, ouviu. “Fiquei sem nada, carteira, boné, megafone, direitos… Fizeram isso para dizer que eu era vagabundo, que não tava no protesto”. Foi parar na gaiola da viatura. Desacato à autoridade.

Por uma hora e meia a soltura de Henrique foi negociada. Em troca, os policiais queriam o fim imediato do protesto e a dispersão dos manifestantes, conta o jovem. “De 20 em 20 minutos vinha um falar comigo. Quem eu era? Que eu soubesse que na próxima vez ia dar em morte… Cuidado com minha família…”. Estava passando mal quando foi solto. “Não devolveram boné, sandália… Devolveram carteira e celular porque o advogado popular que estava lá falou com eles”. Tinham ainda um recado para Henrique. “O comandante me disse que se me visse de novo por ali ia me prender”.

Há alguns dias, um novo susto. Henrique e o namorado estavam no Curado, bairro onde reside, quando viram a viatura parar de um lado do beco. Em menos de dois minutos, os policiais deram a volta e os abordaram pelo outro lado. “Mão na cabeça. Encosta na parede!”. A sogra da irmã dele foi avisada e correu para o local. Disse aos policiais que os dois jovens eram dali, conhecidos, de família. O PM informou que tratava-se de uma operação de rotina. Foram liberados.

Jéssica tinha acabado de sair de uma reunião sobre orçamento municipal. Estava chocada com os parcos recursos previstos para a Secretaria da Juventude em 2018. Mas ia ficar ainda mais chocada com o que viu na Conde da Boa Vista, na altura da FAFIRE. Dez policiais abordaram dois jovens (um sem camisa e outro com bermuda folgada). Cinco seguiram a pé na ronda pela avenida, outros cinco ficaram por mais de 1 hora na abordagem ostensiva aos garotos negros. Um constrangimento presenciado por dezenas e dezenas de pessoas que passavam pelo local.

No domingo, há duas semanas, foi uma amiga de Jéssica que presenciou o mesmo tipo de abordagem. Desta vez no sítio histórico de Olinda. De novo, jovens negros foram parados e colocados de frente para a parede, mãos na cabeça. Calados. Yane Mendes simulou que estava tirando uma selfie para poder fotografar os policiais abordando o grupo de jovens (é dela a foto em destaque na abertura deste texto). Tanto no caso da Conde da Boa Vista, no centro do Recife, quanto em Olinda, o mesmo procedimento. “Eles estão sempre com a mão sobre a arma. Em posição de confronto e ameaça”.

Não tenho nada, só a vontade de seguir sorrindo…

Yane publicou uma postagem na sua página no facebook. Escreveu um texto desafogo (como ela chama)  sobre o que viu: /Me solta doutor eu não tenho nada aqui comigo a não ser a vontade de seguir sorrindo/ele olhou para mim e disse: olha a tua cor, abaixa a cabeça, pega o busão. 5 minutos te dou./ Tô só fazendo meu trabalho que é proteger os brancos aqui do lado/E eu com medo do forgado vou para casa revoltado ainda por cima calado/ porque têm vários deles do meu lado com aquele olhar apontado/ me deixando com os olhos arregalados/ coração acelerado e hoje sou só mais um humilhado/.

Levi é educador cultural. Trabalha com dança, hip-hop, street dance, break. Promove festas e eventos de rua em bairros da periferia da Região Metropolitana do Recife. Mora em Três Carneiros. Já se acostumou a ouvir pedido de ajuda financeira de policiais para realizarem rondas e policiamento nas festas. “Se você não der o dinheiro eles não fazem a ronda. Podem provocar alguma confusão. Um tiro para o alto. Ou dar o baculejo no pessoal. Apreender menores com cigarro de maconha. Culpar os organizadores por aliciamento de menores. Como vamos poder nos responsabilizar por todos que estão ali?”.

As abordagens truculentas da Polícia Militar fazem parte da rotina no Ibura e em Três Carneiros.    Um amigo mecânico de Levi, cabelo rastafari, foi pego com um cigarro de maconha na UR-5. “Cadê o dinheiro da renda?”, o policial perguntou. Ele tirou a cerveja da mão do amigo de Levi, bebeu a Heineken todinha, e ainda ficou com o cigarro. Um outro jovem flagrado com uma trouxinha de maconha no terminal de ônibus em Três Carneiros Alto teve que mastigar e engolir a erva. “Todo mundo viu. O policial ainda comprou uma água com gás ali e mandou o rapaz botar tudo na boca e comer na frente dele. Mastigar tudinho”.

Henrique Alves (19), Jéssica Vanessa (22) e Levi Costa (32) também militam em movimentos que atuam a partir das periferias do Grande Recife na defesa dos direitos dos jovens negros e negras. Henrique é colega de Cleonice no Coletivo Juntos. Jéssica é fotógrafa, integra o Fórum de Juventudes de Pernambuco e preside o Centro de Comunicação e Juventude (CCJ).

A reportagem da Marco Zero Conteúdo conheceu Henrique, Jéssica, Levi, Gilmara, Cleonice e Gleydson no dia 6 de outubro quando eles participaram no plenarinho da Câmara Municipal do Recife do debate Cada Vida Importa sobre a violência que vitima a juventude pernambucana.  Na mesa estavam o deputado estadual cearense, Renato Roseno (Psol), o vereador Ivan Moraes (Psol), os sociólogos e estudiosos de segurança Ana Paula Portella e José Luiz Ratton (mentor do Pacto pela Vida), o coordenador do Unicef para o Nordeste, Robert Glass, e Jéssica, representando o Fórum das Juventudes de Pernambuco. A reportagem entrou em contato com as pessoas que estavam na plateia e se pronunciaram contra os abusos policiais. Marcou entrevista com cada uma delas para que pudessem relatar sua experiência cotidiana com a polícia.

 

O “baculejo” na Jaqueira e o silêncio da classe média

Enquanto essa reportagem era escrita uma postagem no facebook chamou a atenção do repórter. Um texto de Fabiano Guerra relatando a abordagem policial a jovens no final da tarde da última sexta-feira, dia13, no Parque da Jaqueira. “Vários jovens, a sua imensa maioria menores de idade, estavam naquele círculo central. Uns dançando, outros conversando, mais uns tantos andando de patins ou skate, ou seja, se divertindo. Eis que surge 1 policial acompanhado de 6 novatos… Os novatos estavam de chapéu laranja novinhos em folha… Eles abordam todos os jovens com certa arrogância e com arma em punho. As crianças e adolescentes sem documentos levavam um esporro monstro e eram obrigados a deixar o Parque da Jaqueira e irem pra casa. Os que tinham documentos levavam o mesmo esporro e também foram obrigados a deixar o parque. Todos, sem exceção, foram revistados com direito àquela tradicional batida nos ovos e em alguns casos (forçados a) abaixar o calção”.

Fabiano conta que ele, a mulher e o filho e muitas outras pessoas de classe média não foram abordadas pelos PMs. E segue o relato: “Ao final, o policial mais antigo conversa com os novatos como quem encerrou uma aula de campo e diz para eles que caso precise de algo mais é só passar um rádio que a viatura mais próxima virá”.

Fabiano termina a postagem com duas perguntas: “É assim que se resolve o problema de segurança pública no estado? Alguém adivinha a cor da pele dos jovens abordados?”.

A reportagem entrou em contato com Fabiano para saber se ele tinha gravado a cena ou tirado fotos. “Não tirei, não gravei. Fiquei com receio. Vi que um dos policiais estava de olho. Tive medo. Até porque eu estava ali com o meu filho”. Segundo ele, nenhum dos adultos que presenciou a cena tentou interferir ou questionou a maneira como a Polícia Militar abordou os jovens de periferia que se divertiam no parque público. “Eles revistaram de forma brutal crianças de 10, 12 anos. Encostaram na parede, mandaram colocar as mãos na cabeça, abrir as pernas. Alguns tiveram até que baixar o calção. Todos foram expulsos da Jaqueira. Tudo isso na frente de muita gente. Sem nenhuma contestação”, relatou.

O silêncio é uma arma invisível em favor dos abusos policiais. Os agentes fardados do Estado contam com ele. O repórter que assina este texto presenciou recentemente abordagem de policiais na Estrada do Arraial, em Casa Amarela, e também não registrou a cena. A viatura da PM parou do nada, encostou na calçada. Dois policiais saíram do carro. Mandaram um rapaz negro encostar no muro com as mãos na cabeça. Fizeram uma revista rápida nos bolsos. Pediram carteira e documentos… Retornaram para o carro e seguiram sua ronda… deixando para trás medo, humilhação e um silêncio pesado, interrompido pelo toque estridente da sirene da própria viatura que seguia lenta (e temida) pela rua.

Escravidão e política higienista: aqui e agora

Gilmara não tem dúvida. O trabalho da polícia é manter a população negra afastada dos espaços públicos centrais do Recife. O racismo traz com ele a questão da ocupação do território. E é assim em todo o Brasil desde o fim da escravidão. “A polícia foi criada depois da escravidão para evitar que os negros ocupassem a zona central. Para que eles não chegassem à cidade. Estou falando de higienização. Tirar os negros do convívio com as pessoas não-negras. Negro tem que ficar na periferia. Era assim no passado e é assim agora”.

Para Gilmara, o aumento do efetivo militar nas ruas das grandes cidades pernambucanas não vai garantir segurança para todos. “Mais policiais na rua significa segurança para algumas pessoas em alguns espaços. Não para nós. Na Conde da Boa Vista tem policial em toda esquina. Quem você acha que vai ser pego por lá para ir à delegacia? Tem lugares que não vou mais. E horários que não saio de casa. O tráfico ocupa o território na comunidade. E ficamos à merce da PM para andar na cidade”.

O Marco Zero, cartão postal do Centro do Recife, é um símbolo da higienização mencionada por Gilmara. Ela diz que já presenciou os policiais na Ponte Giratória, no Cais de Santa Rita, fazendo triagem de quem entra e quem não entra na área. “Vi os policiais pararem de forma agressiva um grupo de adolescentes. Não deixaram eles passarem. Mandaram eles voltarem. No Marco Zero abordam um determinado perfil de pessoas. Outras não são abordadas”. O relato segue o mesmo modelo do que Fabiano Guerra presenciou no Parque da Jaqueira.

[Best_Wordpress_Gallery id=”19″ gal_title=”Cotidiano da violência policial”]

“No Marco Zero. É fato. Mas não acontece só ali. Aconteceu também no Parque do Baobá. A polícia chegou e montou o paredão. Só de negros. Só pra eles tem a abordagem truculenta. Questão é social e é racial. Tiram esse direito da gente. Do espaço público. Se tem um grupo de jovem da periferia dão toque de recolher. Não temos direito de andar na rua. Andar em grupo é uma forma de nos protegermos. A polícia já acha que queremos fazer confusão. Para eles só a gente rouba. Não é só no Marco Zero. Acontece nos parques e praças da cidade. Na Jaqueira”, explica Jéssica.

A reportagem da Marco Zero encontrou no facebook menção à abordagem no Parque do Baobá e foto também, datada de de 15 de abril, referindo-se a ação do Grupo Tático Operacional da Guarda Municipal do Recife.

Quem é você pra desfazer o meu trabalho?

Parques, praças e… escolas públicas. O cerco policial também está presente nos estabelecimentos públicos de educação fundamental e de ensino médio, segundo os relatos de Gleydson e Henrique. Gleydson, que já foi professor voluntário de inglês na Funase do Cabo e em escolas públicas da cidade, presenciou recentemente uma abordagem de policiais a dois estudantes em frente à Escola Municipal Armínio Guilherme dos Santos, no Alto da Saudade, bairro de São Francisco, no Cabo. Amigos dos jovens correram para a casa de Gleydson para pedir ajuda.

Antes de sair de casa, Gleydson trocou de roupa. Colocou uma calça. Diz que é importante estar arrumado para obter algum tipo de respeito. Ele disse aos policiais que era uma liderança comunitária da região, conhecia os meninos. Foi retrucado: “Você é o que? Só por que é liderança acha que pode desfazer o meu trabalho é?”. Segundo Gleydson, o policial também agrediu verbalmente a coordenadora da escola. “São pessoas como você e ela que atrapalham nosso serviço. Olha o tamanho dele!”, disse, colocando um dos jovens, bem mais alto do que Gleydson, ao lado do professor.

Depois de muita conversa, os dois jovens foram liberados. Um deles mostrou para Gleydson as marcas de vermelhidão na altura da costela. Antes de ir embora, o professor tentou sensibilizar os policiais. “Como o governo dá para vocês a tarefa de ir buscar cigarro de maconha no bolso de estudante? Você acha que o professor, o estudante e a diretora são seus inimigos? Vocês têm que ter papel mais relevante na sociedade. Mas vocês não estão se vendo desse modo”.

 

Governo foca em policiamento e investe pouco em informação e trabalho de inteligência

Dados consolidados de 2014 e divulgados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2016 apontam Pernambuco como o sétimo estado brasileiro com o maior efetivo de policiais militares, contabilizando 19.519 integrantes da força em dezembro daquele ano. O estado ocupa a quarta colocação quanto ao total de policiais civis, com 5.679. Pernambuco tem a sétima maior população entre os estados brasileiros, com pouco mais de 9,4 milhões de habitantes.

Embora a propaganda do Governo do Estado exalte os investimentos no trabalho de inteligência da polícia, os dados comparativos entre os estados apresentados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2016 mostram baixa alocação de recursos para a área. Considerando os últimos dados consolidados que permitem a comparação entre os estados, relativos ao ano de 2015, Pernambuco é o quarto que mais gasta recursos na atividade de policiamento (R$ 1.738.372.078,33), mas ocupa apenas a 14a colocação em investimento em informação e inteligência (R$ 991.361,25). Com o detalhe de que estamos falando de um universo de 19 estados que disponibilizaram as informações.

“A falência da investigação é endêmica (no Brasil). Como as polícias são sobrecarregadas, são seletivas, e essa seletividade abre espaço para critérios discricionários e para a corrupção. Além disso, a polícia ostensiva sempre recebeu preferência em ralação à polícia de investigação. As PMs têm um contingente sempre maior que o da Polícia Civil”, explica Ignácio Cano, professor da Uerj, citado pela jornalista e mestre em sociologia, Fernanda Mena, no livro A Violência Policial no Brasil e os Desafios para a Sua Superação (Boitempo, 2015).

Com ampla experiência teórica e também de gestão, o professor de sociologia e ex-secretário nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares, é um crí­tico do que ele chama de criminalização da pobreza, associando-a, entre outras questões, à prioridade dada nos estados ao policiamento ostensivo e às prisões em flagrante: “os crimes passí­veis de flagrante são aqueles que acontecem nas ruas, portanto, sob um filtro social, territorial e racial”.

Toque de recolher nas calçadas do Cabo

A interferência da polícia no cotidiano dos jovens que vivem no Cabo é muito grande. A presença dos policiais não tem significado mais segurança para os jovens na cidade que detém o título de décima mais violenta do Brasil entre aquelas com mais de 100 mil habitantes, de acordo com o Atlas da Violência 2017, com taxa de 85,3 mortos por 100 mil/hab (147 homicídios e 24 mortes violentas por causa indeterminada em 2015). “Eles decretam uma espécie de toque de recolher. Passam nas calçadas de noite mandando os jovens para casa. Dão baculejo e mandam todos se recolherem às suas residências. Agora eu tenho uma pergunta à Secretaria de Defesa Social: como é que eles não acham as pessoas que trazem as drogas para cá?”, questiona Gleydson.

Henrique conta que há duas semanas houve uma abordagem policial à noite na Escola Edmur Arlindo de Oliveira, no Curado IV, em Jaboatão dos Guararapes. Diz que os estudantes foram colocados na quadra para uma revista. Uma viatura ficou estacionada na frente da escola. Dois policiais entraram e três ficaram fora. Dois jovens possuíam cigarros de maconha. Os dois foram detidos. Uma menina perguntou para um deles se queria que ela avisasse à mãe. Henrique conta que a menina foi puxada por um dos PMs e retirada da escola. “Chegou a pegar a algema, mas a coordenadora intercedeu nessa hora”.

“São os novos PMs, os laranjinhas (em referência ao boné laranja). Tá todo mundo com medo. Toda abordagem parte do princípio de que você é bandido. Já veem o indivíduo como criminoso. A questão da humanização que eles não têm. A abordagem já é uma forma de punir a pessoa. Não é um procedimento que pode levar a pessoa a cumprir a pena. Na verdade, a abordagem já é a punição”. São as palavras de Henrique.

“Não é guerra contra a violência. É guerra contra a pobreza. Quem morre são os jovens. Negros e pobres. Dos dois lados”.

Violência vitima os policiais. Eles também são negros, pobres e moradores de periferia

Henrique tem razão sobre as vítimas dessa “guerra contra a pobreza”. Morrem os dois lados. Entre 2009 e 2015, 2.572 policiais foram mortos, um número mais alto do que o registrado em qualquer outro país do mundo. Segundo cálculos apresentados pelo presidente da Associação Nacional de Praças, Elisandro Lotim, no relatório do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2016,  a quantidade de policiais mortos no Brasil em um único ano equivale à somatória de 98 anos na Inglaterra.

“Nesta guerra de todos contra todos, um fator chama a atenção. Tanto as vítimas policiais quanto as vítimas da sociedade, regra geral, possuem a mesma origem. No caso dos policiais, são os praças (soldados, cabos, sargentos e subtenentes), e, no caso das vítimas da sociedade, a grande maioria é oriunda das periferias. A questão que se coloca, a partir desta constatação é: por que os “sem camisa” estão matando os “descamisados”, e vice-versa?”, indaga Elisandro.

Ao invés de fomentar políticas públicas pautadas na lógica da redução de enfrentamentos, o Estado faz justamente o oposto, critica o presidente da Associação dos Praças. Para ele, os discursos e as  ações do Poder Público estimulam enfrentamentos que resultam em ações letais e visam o controle social no sentido da manutenção do status quo. “Na medida em que o Estado abre mão de políticas educacionais, ou se omite na questão dos direitos sociais e utiliza as forças de segurança como forma de contenção social dos “excluídos”, ele incentiva confrontos que tornam policiais e população potenciais vítimas, e, no caso dos policiais, vítimas dúplices, visto que quando confrontado, o Estado não raras vezes culpa o policial, seja por ter agido ou por ter morrido”.

Você fica esperando, mas sabe que vai acontecer

Henrique diz que há um código nas comunidades. Sempre que tem abordagem policial as pessoas vão para a rua para ver o que está acontecendo. Podem até não se manifestarem, mas ficam de olho. “Temos que olhar para evitar o pior. Todo mundo sai para ver e depois falar. Para depois contar. Anotar a placa da viatura…”. Continua: “Os policiais não informam nada. Que tipo de operação é aquela, por que estão ali, não perguntam quem é da família… O medo é frequente. Você fica só esperando, mas você sabe que vai acontecer”.

“Porque é negro ou tem tatuagem já nos veem como marginal. Independente de fazermos trabalho de rua, é trabalho do mesmo jeito. Abordam de forma equivocada, truculenta. É violência institucional. Minha família é de militares e eles sempre me dizem: cuidado, eles estão sem treinamento”, completa Levi, integrante do movimento Frente Favela Brasil, que tem entre os seus maiores incentivadores o fundador da Central Única de Favelas (CUFA) e escritor Celso Athaíde.

Nossa saúde mental é o tempo todo massacrada

Para Gilmara, a mídia pernambucana e nacional contribui para a criminalização da juventude negra da periferia. “Chamam os jovens de marginais. Associam o tráfico aos negros da periferia. Fazem discurso para reforçar que o Estado atue de forma dura para combater essas pessoas perigosas”.  As vítimas viram algozes nos programas policiais que tomam as rádios e as TVs pernambucanas e a capa dos tablóides populares. Discurso reverberado na campanha publicitária do Governo do Estado.

“Você tem que ver a alegria de um jovem quando ganha um emprego. Manda foto de uniforme. Muda o perfil do facebook. Mas Cardinot e Datena dizem que são todos almas sebosas. Fazem a sociedade ter medo deles. Aqui não tem almas sebosas. Aqui tem os esquecidos e desesperados. Quando não são mortos, se matam”, desabafa Gleydson, preocupado com a frequência de suicídios entre os jovens no Cabo de Santo Agostinho.

“Nossa saúde mental é o tempo todo massacrada”, diz Gilmara.

Massacrada foi como se sentiu Cleonice ao presenciar uma abordagem policial há duas semanas, num domingo, numa estação de ônibus na PE-15. Ela afirma que presenciou uma cena de espancamento. “Os policiais chegaram, eram todos homens e jovens, e mandaram homens e mulheres encostarem na parede. Já gritaram: “se olhar para trás, apanha!” Uma menina disse a um policial que ele não podia revistá-la (ela só pode ser revistada por uma policial mulher). Chamaram de puta, rapariga, vagabunda. Murro nas costas… Fiquei estatelada. Tive medo de filmar”.

Você não pode olhar para eles. Também não pode falar

“Eles estão espalhados. Percebemos que estão parando todos os homens negros. Cabelo pintado, bermuda Seaway… Parando e abordando de forma violenta. Cidade Tabajara, Bultrins, Ilha do Maruím… Esses PMs novos não têm preparo. Estão sempre com mão na arma. Você não pode olhar para eles, também não pode falar com eles”. Segundo todos os relatos feitos à reportagem da Marco Zero Conteúdo, qualquer movimento ou contestação à arbitrariedade pode ser enquadrado como “desacato à autoridade”.

Cleonice foi revistada por um policial no Carnaval de 2016 na Rua 13 de Maio, em Olinda. “Ele mexeu na minha bolsa. Eu disse que meu celular estava lá”. Resposta: “E eu quero teu celular, puta?”.

Ela diz que já presenciou e ouviu muitas histórias de abusos. “Eles fazem você beber loló. Mandam tirar a roupa toda e ir pra casa. É um sinal de autoridade, mostram que podem te humilhar. Tapa, murro. Loló na cara. O ladrão não tem autoridade. Te assalta e vai embora. O PM pode te tornar um bandido. Te condena. Não tem preparo estrutural. Nem para proteger. Veja a questão do tiroteio em favela. Não parece que tem gente ali. Criança. Eles entram e atiram. Colocam a vida de todos em risco. Mais policiais na periferia é motivo para nos sentirmos menos e não mais protegidos”.

As abordagens aumentaram no sítio histórico de Olinda, conta Cleonice. “Não é uma abordagem educada. Eles não explicam que se trata de uma questão de segurança. Se for educada, você entende. Mas não é. Nos sentimos muito reféns. Não nos sentimos seguros nem pelos traficantes, nem pela polícia. Eles nos seguem com o olhar. Tenho medo de chegar à noite no meu bairro e a polícia estar por lá”.

Pedidos de entrevista à SDS e à PM

Durante a semana em que realizava as conversas com Cleonice, Gilmara, Gleydson, Levi, Danilo, Henrique e Jéssica, a reportagem da Marco Zero Conteúdo entrou em contato com a assessoria de comunicação da Secretaria de Defesa Social, na quarta-feira (11), solicitando entrevista com um representante da SDS para tratar da política de segurança pública em Pernambuco, no contexto do aumento do efetivo policial e do projeto enviado à Assembleia ampliando a política de bonificação dos policiais militares por cumprimento de mandados de prisão, apreensão de jovens envolvidos em atos infracionais, apreensão de crack e armas de fogo.

A assessoria pediu que enviássemos um e-mail com a demanda. O que foi feito ainda na quarta-feira e no qual explicitamos que iríamos abordar também o tipo de treinamento que estava sendo dado aos novos policiais e a política de apuração e punição aos abusos praticados pelos integrantes das forças de segurança pública. Na sexta-feira (13), a reportagem fez novo contato com a assessoria, que confirmou o recebimento do e-mail e ficou de dar retorno sobre a demanda. O que não aconteceu até a data da publicação deste material.

Diante do silêncio da SDS, na quinta-feira (19), a Marco Zero Conteúdo procurou a assessoria de comunicação da Polícia Militar de Pernambuco. Também fomos orientados a enviar e-mail com a demanda. No e-mail, solicitamos entrevista com representante da instituição para repercutir a série de abusos policiais relatados pelas fontes da matéria, apontando a “abordagem diferenciada da PM nas ruas, direcionada para, segundo alegam, constranger os jovens negros, pobres e da periferia, restringindo inclusive sua circulação em alguns ambientes públicos da cidade nos fins de semana, como o Parque da Jaqueira”. Pedimos resposta à demanda até às 18h da quinta, mas a assessoria informou que não daria para cumprir este prazo e ficou de nos contatar quando tivesse uma resposta. Na manhã da sexta (20) reforçamos o pedido, informando que a reportagem seria publicada no final do dia.

O espaço para o posicionamento da SDS e da Polícia Militar permanece aberto para publicação no site e nas redes sociais da Marco Zero Conteúdo.

AUTOR
Foto Laércio Portela
Laércio Portela

Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República