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Arquitetura do compadrio: como a prima da mulher de Mendonça Filho foi comandar o Iphan de Pernambuco?

Luiz Carlos Pinto / 25/11/2016

O pedido de demissão de Marcelo Calero do cargo de Ministro da Cultura é emblemático do jogo pesado de influências e pressões por interesses privados na alta cúpula do atual governo Federal. Mas o episódio também escancara o que está por trás das indicações para os cargos dos superintendentes regionais do Instituto de Protenção do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan. As superintendências do Instituto acabam ficando mais expostas às pressões das empresas do setor imobiliário ou por políticos que tiveram campanhas parcialmente financiadas pelas construtoras. Em Pernambuco, o padrão se repete. Atualmente, a chefia do órgão é comandada por uma das primas da esposa do ministro Mendonça Filho.

Renata Duarte Borba foi nomeada em Julho de 2016, durante o governo interino, antes do fim do processo de Impeachment da presidenta Dilma Rousself. Foi beneficiada na janela aberta com exonerações em massa do Ministério da Cultura no final de julho, mais precisamente no dia 27 daquele mês. O ato foi assinado pela secretária executiva do ministério, Mariana Ribas da Silva, que foi responsável, junto à atual presidente do Iphan, Kátia Bógea, pelos desligamentos daquele período.

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Em um ano, ela é a terceira pessoa que assume a superintendência do Instituto depois da saída de Frederico Arruda, que passou 13 anos à frente do órgão em Pernambuco. Apesar de formado em engenharia, Frederico é apontado como um especialista no que diz respeito à preservação de patrimônio e obras artísticas. Com sua saída, assumiu Elísio Luis Sobreira (nomeado em 28 de janeiro de 2016). Depois dele, assumiu Ives Zamboni, funcionário do Ministério do Planejamento e lotado no Gabinete do Senador Humberto Costa. Dois meses depois de nomeado, em 13 de maio, pediu exoneração do cargo. Foi então que assumiu Renata Duarte Borba. Os hiatos entre uns e outros mostra que a casa tem sua dinâmica própria.

Em comum, nenhum dos três tem experiência com preservação do patrimônio histórico e artístico. Em todos, o rastro da indicação de ordem política em detrimento das exigências técnicas para o exercício do cargo – elemento que todos os profissionais de arquitetura consultados concordam ser necessário.

A atual superintendente é da família da mulher de Mendonça Filho, Taciana Cecília Vilaça Mendonça – é filha do tio de Taciana, o pecuarista José Duarte. É portanto, prima em primeiro grau da esposa do ministro. Por ser arquiteta, é de se supor que sua indicação tenha sido originada dessa relação. Contactada para comentar essa condição familiar e suas consequências, Renata Duarte Borba informou que não atende jornalistas sobre nenhum assunto e orientou a busca de informações junto ao Iphan Nacional, o que foi feito. Até a publicação desse texto, o Iphan não havia respondido os questionamentos enviados, que foram os seguintes:

1) Quais os critérios adotados para a escolha dos cargos de chefia das superintendências regionais?

2) Qual a experiência da atual superintendente com relação ao que exige o cargo da superintendencia no que diz respeito à preservação do patrimônio histórico e artístico nacional?

3) Como foi o processo de indicação e nomeação da atual superintendente do Iphan-PE?

4) A superintendente é sobrinha do atual Ministro do governo Temer, Mendonça Filho. Gostaríamos de saber como a superintendente pretende equacionar ou evitar que interesses e ordem política interfiram no seu trabalho.

A professora do curso de Direito da Universidade Federal de Pernambuco Liana Cirne publicou um texto no qual afirma que o “escândalo Calero versus Geddel reacende o conflito envolvendo o Estelita e coloca em evidência o que o movimento Ocupe Estelita vem denunciando há tempos: a força do capital especulativo imobiliário, que parece ignorar a legislação urbanística das cidades e que afronta a paisagem, a história e a cultura, escolhendo como áreas preferenciais de seus projetos justamente aquelas que devem compor um patrimônio coletivo da população, impondo modelos de cidade higienistas e segregadoras”.

As preocupações da professora fazem ainda mais sentido, pois a questão que se coloca é como a Superintendência local poderá garantir isenção técnica em alguns casos específicos que envolvem empresas que financiaram a candidatura de Mendonça Filho. Explica-se: o caso mais evidente e imediato é justamente a ‘novela’ do Cais José Estelita e o Projeto Novo Recife. Renata Duarte Borba já manifestou nas redes sociais seu apoio a esse empreendimento, do consórcio de mesmo nome.

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A atitude já seria problemática por si, na medida em que expõe um ponto de vista censurável para o responsável pelo órgão regional que trata de questão ainda não resolvida. Mas é ainda mais complicada ao se constatar que empresas do Consórcio Novo Recife foram doadoras da campanha que elegeu o candidato Mendonça Filho ao cargo de deputado federal no pleito de 2014.

A GL Empreendimentos Ltda. doou R$ 100 mil e a Construtora Queiroz Galvão fez duas doações (R$ 100 mil e R$ 20 mil) à vitoriosa campanha do agora ministro. Você pode conferir isso nesse link. A primeira, fez a doação à direção nacional do partido e a segunda, à direção estadual da agremiação. Ambas são integrantes do Consórcio Novo Recife. Nesse contexto a indicação de Renata Duarte Borba para a superintendência do Iphan ganha um teor mais delicado.

A Superintendência está para julgar o pedido de tombamento do pátio ferroviário que fica no Cais José Estelita e espera a conclusão do estudo arqueológico que está sendo feito no local. O embargo à obra está ancorado à espera desse estudo.

Patrionialismo, patriarcalismo, nepotismo

A proximidade familiar, o desinteresse com a opinião pública, a submissão de interesses públicos a interesses privados são elementos que demarcam a cultura política brasileira em todos os seus níveis. Essa ‘marca’ está um pouco na avaliação que o ex-ministro Juca de Oliveira fez do caso Geddel/Calero, e também no rastro de ligações entre a superintendente do Instituto em Pernambuco e parte do alto círculo do poder. Assim como também está impressa na considerável lista de parentes de políticos empregados na máquina municipal e estadual, já tratadas recentemente aqui na Marco Zero. Como escreve o ex-ministro, o patrimônio histórico vem sendo atacado como efeito da especulação imobiliária. As incorporadoras e construtoras atuam com o apoio que recebem de políticos e técnicos dentro de instituições públicas e na política representativa, que ajudam a financiar.

É provável que a interferência do ministro Geddel Vieira Lima se tornasse oculta, caso o Ministro da Cultura não se sentisse ameaçado de ser envolvido de forma pessoal. Marcelo Calero expôs o caso e aproveitou para sair do governo por ser uma espécie de estranho no ninho do governo Temer. Será interessante acompanhar nos próximos dias se as possíveis gravações feitas pelo ex-ministro, na qual incrimina o presidente, poderão impactar ainda mais o já combalido governo Temer.

Geddel, não. Está bem assentado na cultura patrimonialista que serve de guarda-chuva para esses casos listados envolvendo o Iphan e muitos outros, em diferentes frentes governamentais. Mais à vontade ainda depois das manifestações de apoio que recebeu dos colegas, e que comprovam como é generalizada a ideia de que os poderes advindos das instâncias de governos podem ser geridas familiarmente.

Aliás, um bom estudo sobre o capital político das famílias Vilaça, Rêgo Barros e Heráclio foi feita pelo professor José Marciano Monteiro. Sobre a força alcançadas por essas famílias, tomadas individualmente ou através de alianças matrimoniais, o autor em algum momento escreve que:

“Nos mais altos escalões dos “órgãos onde se realizam os grandes negócios – o Banco Central, o BNDES, o Ministério das Telecomunicações, a PETROBRÁS, o comando da economia – a figura do servidor público, muitas vezes, desaparece”. Os postos são ocupados por empresários privados, por seus representantes diretos ou por arrivistas que sabem extrair o máximo de curtas passagens pelo poder”.

A mistura entre o público e o privado foi particularmente bem analisada por Sérgio Buarque de Hollanda num dos livros mais importantes para se entender o país: Raízes do Brasil. Nele, o pai de Chico Buarque mostra como, na organização política brasileira, há uma identificação entre os interesses de ordem privada e os interesses públicos. Essa indiferenciação estaria associada à organização familiar.

No final das contas, os assuntos do Estado são tratados pelo homem público brasileiro como assuntos pessoais, porque ele se convence que as funções e benefícios que lhe são concedidos pelo cargo público ou por um mandato são direitos pessoais adquiridos – daí se convence também que pode ser apropriar totalmente de tais funções e benefícios.

Vários são os casos em que a pressão política e econômica sobre as superintendências sobrepuseram tais interesses ao escrutínio técnico: as obras do Maracanã, no Rio de Janeiro, resultaram no indiciamento do então superintendente Carlos Fernando Andrade; o caso do despejo do Museu de Museu de Arte Contemporânea de Belém, para dar lugar ao Centro de Global de Gastronomia e Biodiversidade na Amazônia (que tem entre seus idealizadores o chef Alex Atala), entre outros.

Em Pernambuco, a pressão política do governador Paulo Câmara (PSB) para a conclusão da obra do túnel da Abolição forçou a mudança de endereço da própria da sede Superintendência do Iphan do Museu da Abolição, por motivo de segurança dos funcionários. A Marco Zero Conteúdo publicou algumas reportagens nas quais o Iphan foi pressionado por empresas e por políticos para a liberação de obras. São emblemáticos os casos do Moinho Pilar e do Cais José Estelita.

“O modelo de indicações não é problemático em si. É um modelo adotado em algumas circunstâncias nos Estados Unidos e na Europa”, afirma o defensor público federal Guilherme Jordão. “O problema é que no Brasil a gente observa é uma tradição patrimonialista”, completa.

Formação

Para o professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFPE Tomás Lapa, o cargo de superintendente requer capacidade de luta e coragem, mas sobretudo “um entendimento sócio-cultural e a disposição por lutar por valores”, afirma. “No caso do Cais José Estelita, por exemplo, é provável que o maior patrimônio seja da a paisagem cultural. Ora, ‘paisagem cultural’ é um conceito muito abstrato e é nessas horas que necessitamos de gestores que tenham disposição por lutar por esses conceitos, que são guiados por valores”, complementa.

A professora Lúcia Veras, também do curso de Arquitetura e Urbanismo compreende que o cargo requer “não somente a formação em arquitetura, mas sobretudo um arquiteto ou arquiteta que tenha uma formação que lhe permita valorizar o patrimônio histórico da cidade”, afirma. “O corpo técnico da Superintendência deve sofrer muita pressão, por isso uma formação humanista é fundamental para segurar os posicionamentos que eventualmente sejam contrários aos interesses privados”, diz.

AUTOR
Foto Luiz Carlos Pinto
Luiz Carlos Pinto

Luiz Carlos Pinto é jornalista formado em 1999, é também doutor em Sociologia pela UFPE e professor da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisa formas abertas de aprendizado com tecnologias e se interessa por sociologia da técnica. Como tal, procura transpor para o jornalismo tais interesses, em especial para tratar de questões relacionadas a disputas urbanas, desigualdade e exclusão social.