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Marcelo Neves: “As instituições estão corrompidas. As mudanças devem vir de ‘baixo’”

Luiz Carlos Pinto / 17/04/2016

marcelo-neves-cnjConcretizar a Constituição, controlar os detentores do poder, combater a corrupção e a exclusão. Essa são os principais desafios da democracia brasileira para os próximos anos, segundo Marcelo Neves. Formado na Faculdade de Direito do Recife, o professor, que já foi integrante do Conselho Nacional de Justiça, é hoje titular da Universidade de Brasília. Livre docente pela Universidade de Fribourg, Suíça, Marcelo Neves aposta que o legado da atual crise, que nesse domingo terá mais uma de suas páginas escrita, será o fortalecimento da sociedade civil.

Em visita à cidade do Recife, onde tem parentes, o professor fez uma exposição pública de algumas das irregularidades da tentativa de abertura da ação de impeachment contra a presidenta Dilma. O professor é taxativo. Se o impeachment se consolidar, todo o processo terá como principal consequencia “a implosão da Constituição”. “Está em curso um processo de distorção de um recurso constitucional legítimo”, avalia.

O professor é responsável pela tese da constitucionalização simbólica, bastante pertinente no momento atual. No estudo realizado pelo recifense da Casa Amarela, o termo se refere às legislações moldadas por valores sociais de determinados grupos sociedade; ou que procuram dar respostas a determinados anseios sociais, oferecendo uma solução aparente para o problema ou ainda às leis que adiam soluções de conflitos.

Na entrevista a seguir, conferida com exclusividade à Marco Zero Conteúdo, o professor analisa os argumentos dos que defendem o impeachment da atual mandatária; algumas das razões da atual crise, as consequências para a o mundo do direito e para a democracia brasileira.

Desde já, a análise do professor Marcelo permite considerar que o Direito funcionou como uma espécie de fachada simbólica e que o Brasil tem hoje o que o integrante do CNJ considera “uma estrutura jurídica em ruínas”, cuja irrelevância é patente.

Confira:

MARCO ZERO – Alguns dos retrocesso em direitos que temos visto no Brasil sugerem mais que uma guinada conservadora, a entrada do país em um modelo contemporâneo de estado de exceção, muito semelhante ao que Agamben analisa – mais como uma técnica de governo do que como uma medida excepcional. O senhor acredita nessa tese?
Marcelo Neves – Eu não acredito na tese de Agamben, pois acho que ele, sob influência de Carl Schmitt, tem um certo desprezo pelo Estado democrático de direito em geral, caracterizando, por exemplo, a experiência nazista como “estado de exceção”. E o “Estado de exceção”, por sua vez, como técnica de governo compatível com o Estado constitucional. No meu entender, a atual guinada conservadora aponta para a fragilidade da democracia e do Estado de direito no Brasil, para a fragilidade da Constituição como ordem básica do jogo político e jurídico. Mina-se a Constituição, deformam-se institutos constitucionais, para destituir ilegitimamente um governo eleito democraticamente. Trata-se de ações de setores sociais, políticos e econômicos privilegiados, incapazes de aceitar um governo que possa questionar o status quo e abrir o caminho para transformações estruturais.

MZ – Neste 17 de abril nos encontramos às portas da votação da autorização para abertura de ação de impeachment da presidenta Dilma Roussef – um processo em que a política vem pautando o direito e o próprio Judiciário. Que consequências para o campo do direito esse processo traz?
MN – Tem havido uma politização partidária do judiciário. O combate à corrupção transforma-se em sintoma de corrupção sistêmica do Direito e o processo de impeachment atua como um equivalente funcional a um golpe de Estado. O objetivo é, na verdade, destituir a chefe de Estado com base na distorção de um instituto constitucional legítimo. O impacto de políticos corruptos conduzindo o processo e um Judiciário partidarizado levará a uma implosão da Constituição e a um profundo descrédito das instituições jurídicas, caso o impeachment seja aprovado.

“O objetivo é, na verdade, destituir a chefe de Estado com base na distorção de um instituto constitucional legítimo”

MZ- É correto dizer que o direito aparece no processo meio a título formal? Qual sua crítica à tese apresentada pelo relator Jovair Arantes (PTB-GO)? Refiro-me à tese do crime de responsabilidade fiscal.
MN – O direito apresenta-se como uma fachada simbólica, que encobre uma estrutura jurídica em ruínas no contexto atual do processo de impeachment. Sua irrelevância torna-se patente. O parecer do relator é insustentável. As chamadas pedaladas fiscais e os decretos suplementares indicados pelo relator como fundamento do impeachment não constituem crimes de responsabilidade. Em primeiro lugar, essas práticas foram praticadas em governos anteriores, especialmente no governo de Fernando Henrique Cardozo, sem nunca terem sido reprovadas pelo Tribunal de Contas da União. O TCU apenas fazia recomendações para o saneamento das respectivas situações. Além do mais, sequer houve manifestação do Tribunal sobre os atos praticados pelo Executivo em 2015, que serviram de base para o relator. Nem mesmo o parecer (mera opinião) do TCU reprovando as contas do Executivo referentes a 2014 foi aprovado por decisão do Congresso Nacional. Por fim, mesmo se forem atos ilegais, não se trata de atos atentatórios à Constituição, que configurem crimes de responsabilidade, nos termos previstos na Constituição para esse caso.

“Essas práticas foram praticadas em governos anteriores, especialmente no governo de Fernando Henrique Cardozo, sem nunca terem sido reprovadas pelo Tribunal de Contas da União”

MZ – Ou seja, não é qualquer ilegalidade ou inconstitucionalidade que constitui um crime de responsabilidade.
MN – Exatamente. Por exemplo, quando a a presidente sanciona uma lei inconstitucional, ela não está praticando um crime de responsabilidade só por isso. Da mesma maneira, quando ela edita um decreto ilegal. Em ambos os casos, cabe a declaração de nulidade ou anulação do ato, assim como a tomada de medidas saneadoras. Se toda inconstitucionalidade ou ilegalidade constituísse um crime de responsabilidade a justificar um impeachment, nenhum presidente chegaria ao fim do mandato no presidencialismo. O parecer é um ato puramente político, sem base jurídica.

MZ – A crise de representatividade no Brasil tem cores próprias? É diferente, em suas bases, do que se verifica noutras democracias?
MN – A baixa representatividade democrática das instituições brasileiras, agora em fase crítica, não é particular de nosso país. Ela é típica de países que se caracterizam por exclusão de amplas parcelas da população, que vivem aquém dos direitos básicos (os subintegrados ou subcidadãos), e por uma minoria privilegiada, que vive acima da lei e da Constituição (sobreintegrados ou sobrecidadãos). Nos países em que há ampla inclusão social, que constituem a minoria no mundo atual, a representatividade democrática é mais forte. A presente crise indica que a fragilidade democrática serve aos sobrecidadãos em detrimento dos subcidadãos.

“Se toda inconstitucionalidade ou ilegalidade constituísse um crime de responsabilidade a justificar um impeachment, nenhum presidente chegaria ao fim do mandato no presidencialismo”

MZ – Quais são os desafios da democracia brasileira para os próximos anos? E para o judiciário brasileiro?
MN – O desafio não está em buscar novas reformas políticas ou constitucionais, na crença de que novos textos e documentos jurídicos e políticos possam modificar a realidade política e jurídica do país. O fundamental é a luta pela concretização da Constituição, no sentido de implementar controles efetivos dos detentores do poder e de fomentar o combate consistente à corrupção sistêmica (que serve aos setores privilegiados, os sobrecidadãos) e à exclusão (dos sobrecidadãos), que são inseparáveis.

MZ – Que legado possível ficará em função da prática jurídica e do processo de politização do judiciário que testemunhamos nos últimos meses?
MN – O processo de politização do judiciário que testemunhamos nos últimos meses pode servir de aprendizado que instigue o incremento de movimentos da sociedade civil para que haja profundas modificações na prática jurídica brasileira. A grande dificuldade, nesse contexto, é que as instituições políticas e judiciais dominantes estão amplamente corrompidas. As mudanças devem vir de “baixo”, tanto em relação ao judiciário quanto aos órgãos políticos.

AUTOR
Foto Luiz Carlos Pinto
Luiz Carlos Pinto

Luiz Carlos Pinto é jornalista formado em 1999, é também doutor em Sociologia pela UFPE e professor da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisa formas abertas de aprendizado com tecnologias e se interessa por sociologia da técnica. Como tal, procura transpor para o jornalismo tais interesses, em especial para tratar de questões relacionadas a disputas urbanas, desigualdade e exclusão social.