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Como ficam as demarcações em Pernambuco após a eleição de Bolsonaro?

Mariama Correia / 06/11/2018

A partir da posse em 1º de janeiro do próximo ano, Jair Bolsonaro (PSL) mostrará se cumpre o que promete ou se será incoerente com o próprio discurso. A última opção seria até bem-vinda em alguns casos, dado o teor das declarações do presidente eleito sobre causas de povos vulneráveis como os indígenas, por exemplo. Para os quase 900 mil índios brasileiros (Censo 2010) ele já deixou claro que “não haverá um centímetro a mais para demarcação”. A fala ameaça diretamente o direito desses povos às terras tradicionais, garantido pela Constituição Federal, embora 63% das 847 terras indígenas do país ainda se encontrem sem nenhuma providência de demarcação, de acordo com levantamento recente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Pernambuco, estado com a quarta maior população de índios do país, tem nove territórios sem nenhuma providência de demarcação. Muitos povos, sobretudo os que estão no Sertão, enfrentam conflitos de uso de terras e acesso a nascentes de águas. De acordo com a Fundação Nacional do Índio (Funai), há territórios que foram cortados pelo canal da Transposição do São Francisco, outros dominados por plantações de maconha e ainda alguns tomados por assentamentos do Incra.

Entre as áreas demarcadas no estado estão os territórios dos Kapinawá, em Buíque e Tupanatinga ( 12.403 hectares); dos Tuxá, em Inajá ( 140 hectares) e dos Xukurus, em Pesqueira (27.555 hectares). Porém, nem mesmo para esses grupos a política fundiária que Bolsonaro defende, em consonância com interesses da bancada ruralista do Congresso, deixa de ser uma ameaça às suas conquistas.

Instalados entre os municípios de Buíque, Tupanatinga e Ibimirim, os Kapinawá têm uma população de aproximadamente cinco mil indígenas. Eles temem que as pressões do agronegócio e a visão anti-indigenista do presidente eleito travem o andamento do processo que reivindica a revisão e a ampliação do território demarcado. “Na época da demarcação, a Funai deixou de fora boa parte das terras tradicionais do nosso povo. Nós reivindicamos essa ampliação desde 2011, mas o processo ainda não foi concluído”, diz o cacique Robério Francisco Maia da Silva, que conclui. “Nada para nós, povos indígenas, foi fácil. Se existimos e resistimos nesses 518 anos de luta não vai ser agora que vamos parar de lutar pelos nossos direitos”.

O momento também é de incerteza para os Xukurus de Ororubá, em Pesqueira. Para eles é fundamental que o processo de desintrusão – saída de não indígenas – do território seja concluído, como determinado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em março deste ano. Na época, a Corte determinou ainda o pagamento de US$ 1 milhão para a tribo, em até 18 meses após a decisão, pelos danos sofridos durante a regularização fundiária, que resultou na morte de vários índios incluindo o cacique Xicão,  assassinado a mando de fazendeiros.

“Considerando as colocações do presidente eleito vamos enfrentar muitas dificuldades. O futuro pede mais uma vez resistência e que todos os povos indígenas se fortaleçam ao máximo”, comenta o cacique Marquinhos. Já vislumbrando um acirramento das pressões sobre as terras tradicionais, o líder dos Xukurus diz que tem buscado antecipar todos os encaminhamentos possíveis ainda neste governo. “Temos pelo menos umas dez famílias não indígenas ainda dentro do território demarcado e a indenização ainda não foi liberada. Esse dinheiro vai viabilizar investimentos importantes como o melhoramento de 180 quilômetros de estradas dentro do território, que são de extrema importância para os moradores das 24 aldeias”, detalha.

Além de prejudicar processos judiciais em curso, as postura preconceituosa de Jair Bolsonaro pode ainda inflamar casos de violência contra essas populações, receia a coordenadora do Cimi em Pernambuco, Alcilene Bezerra.  “Logo após à eleição de Bolsonaro, um posto de saúde e uma escola foram incendiados dentro do território Pankararu, em Pernambuco. Com o discurso de ódio disseminado por ele, a gente teme que esses ataques se tornem mais constantes”, diz.

No ano passado, o Cimi registrou o crescimento de situações de violação dos direitos de indígenas, incluindo 96 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio, além de 110 assassinatos. Em 2017, o relatório de violência contra os povos indígenas do Cimi registrou 20 ocorrências de conflitos relativos a direitos territoriais no Brasil, uma delas em Pernambuco, envolvendo a tribo Pankararu. Embora demarcado, o território Pankararu é palco de conflitos há décadas.

Atualmente, os posseiros ocupam 20% do território tradicional dos Pankararus, contrariando a decisão judicial de desintrusão expedida pelo Tribunal Regional Federal da 5º Região (TRF-5)  em junho passado. O posto de saúde do município de Jatobá, no Sertão de Pernambuco, que foi incendiado, está no centro da disputa porque os indígenas têm sido impedidos de acessarem o equipamento pelos não indígenas.

O ataque ao posto e à escola Pankararu está sendo investigado pela Polícia Federal(PF), mas até agora ninguém foi responsabilizado. O Ministério Público Federal determinou a disponibilização de efetivo da PF e da Polícia Militar para segurança do território. Com uma vaquinha na internet, o povo Pankararu tenta mobilizar R$ 80 mil para reconstruir a unidade de saúde. “A gente teme também pelos povos irmãos que ainda não tem suas terras demarcadas e homologadas, porque com a nova presidência tudo tende a ser muito mais difícil, mais do que já é hoje. Este ano, durante o acampamento terra livre, em Brasília, fomos atacados pela cavalaria. Com Bolsonaro tememos mais ataques e mortes”,  diz Beatriz da Silva, Bia Pankararu, como gosta de ser chamada  a jovem liderança da etnia.

De olho no Congresso

Com mais força após as eleições, a bancada ruralista fará maior pressão para aprovar pautas de interesse que já tramitam no Congresso a partir do próximo ano. Pelo menos duas delas são especialmente ameaçadoras para os povos indígenas: a PEC 215 – que delega às demarcações ao Congresso – e o Marco Temporal, pelo qual se pretende estabelecer a publicação da Constituição em 1988 como data de partida para reconhecimento do direito às demarcações, muito embora a própria Carta Magna registre o direito originário e o princípio da imprescritibilidade para as terras tradicionais.

A PEC 215 quer tirar a autonomia da Funai (Fundação do Índio) na questão das demarcações, explica o antropólogo da Funai Ivson Ferreira. “É um absurdo colocar as demarcações para serem votadas pela Câmara dos Deputados quando não são questões que não podem ser tratadas como partidárias”, opina. O pesquisador diz que o prognóstico para as causas indígenas nos próximos anos é desanimador, mas lamenta também que, há muito tempo, as demarcações estejam sendo deixadas de fora da prioridade dos governantes brasileiros. “No governo Temer , por exemplo, não houve nenhuma demarcação. No governo Dilma também avançamos pouco, assim como no governo Lula.  Nos últimos dois anos, os processos que avançaram foram apenas demandas de Justiça e do Ministério Público. Agora, a tendência é que o quadro piore”, avalia.

AUTOR
Foto Mariama Correia
Mariama Correia

Jornalista formada pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e pós-graduada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi repórter de Economia do jornal Folha de Pernambuco e assinou matérias no The Intercept Brasil, na Agência Pública, em publicações da Editora Abril e em outros veículos. Contribuiu com o projeto de Fact-Checking "Truco nos Estados" durante as eleições de 2018. É pesquisadora Nordeste do Atlas da Notícia, uma iniciativa de mapeamento do jornalismo no Brasil. Tem curso de Jornalismo de Dados pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e de Mídias Digitais, na Kings (UK).