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Conde da Boa Vista vai mudar. De novo, sem debate

Inácio França / 08/05/2018

Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Sem manchetes nem pompa, no dia 4 de dezembro de 2017 Maria Eduarda Andrade Lima Campos, filha do ex-governador Eduardo Campos, deixou seu cargo de gerente no Instituto Pelópidas Silveira para assumir a diretoria de Projetos Especiais da Autarquia de Manutenção e Limpeza Urbana do Recife (Emlurb). Mais do que duplicar o salário – passou de R$ 5.036,00 para mais de R$ 10.300,00 -, a nomeação assinada pelo prefeito Geraldo Julio conferiu à jovem arquiteta de 25 anos a responsabilidade de coordenar o novo projeto de requalificação da avenida Conde da Boa Vista.

Não é fácil a tarefa de resolver os problemas da mais desastrosa intervenção urbana dos 12 anos de gestão petista no Recife e que as obras do BRT, iniciadas no governo do seu pai e ainda inacabadas, só agravaram.

Após o embate eleitoral contra João Paulo nas eleições de 2016, a Conde da Boa Vista tornou-se um desafio a ser superado pelo atual prefeito. Em janeiro e fevereiro deste ano, Geraldo Julio afirmou pelo menos duas vezes, em entrevistas para veículos distintos, que o projeto estava sendo “discutido com algumas representações da sociedade e pretendo apresentar o projeto nas próximas semanas, as obras devem começar ainda nesse semestre”.

Escute a entrevista de Geraldo Julio falando sobre a Conde da Boa Vista (trecho a partir de 15’53″)

Se as palavras do prefeito estivessem corretas, a filha de Eduardo Campos estaria conduzindo dezenas de reuniões e fóruns de debates sobre a avenida. O fato é que, meses após as afirmações do prefeito e de Maria Eduarda assumir a coordenação do projeto, as “representações da sociedade” não participaram de qualquer discussão ou debate sobra a próxima intervenção na avenida. E só não desconhecem completamente o projeto porque fotos de vários fragmentos já circulam de celular em celular. A única exceção foi a Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL), cujos diretores foram contemplados com uma apresentação exclusiva.

Entidades de arquitetura querem contribuir

Se o debate anunciado pelo prefeito estivesse realmente ocorrendo, seria natural que dele estivesse participando o Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU-PE), afinal uma das missões da entidade é promover “o aperfeiçoamento do exercício da Arquitetura e do Urbanismo”. O arquiteto e empresário Sandro Guedes, integrante do Conselho, da diretoria da Associação das Empresas do Mercado Imobiliário (Ademi-PE) e do Conselho da Cidade do Recife assegura que não participou de nenhuma discussão “nem representando o CAU, Ademi ou como conselheiro da Cidade”.

Guedes acredita que o projeto tenha sido “elaborado internamente, não chegou para discussão pública”. Mesmo assim, ele o viu em uma reunião na prefeitura: “Não era ainda o projeto executivo, acredito que foi entregue para análise da acessibilidade. O CAU ainda tentará contribuir”.

O Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) solicitou à prefeitura, em março, que o projeto fosse apresentado aos seus integrantes. O presidente da seccional pernambucana, Roberto Ghione, contou que “a gente não conhece ainda o projeto. Foram apresentados ofícios na Secretaria de Mobilidade e Controle Urbano e na Emlurb, solicitando divulgação e debate público do projeto”.

O presidente do IAB admitiu que ele e muitos dos diretores estão preocupados com o modo como a questão está sendo tratada pela prefeitura: “Defendemos que obra pública deve ser realizada através de concurso de projetos. Nesse caso, por sua significância, representatividade e operacionalidade deveria, no mínimo, ter um debate com a participação de profissionais especializados e da sociedade em geral. São intervenções muito sensíveis, que envolvem a vivência diária de muita gente. Por isso tem que ser intervenções bem pensadas e compartilhadas, que envolvem dinheiro público. Fazer entre quatro paredes, sem consultar todos os interessados, não é o caminho adequado”.

Universidades conveniadas nada sabem

Como a prefeitura mantêm convênios com duas universidades exatamente nessa área, havia a possibilidade dessas instituições estarem participando da elaboração do projeto. A hipótese não foi confirmada.

A assessoria de comunicação do grupo multidisciplinar de Pesquisa e Inovação para as Cidades (Inciti), da Universidade Federal de Pernambuco, informou que o grupo não foi convidado e não participou de nenhum debate sobre a qualificação da avenida Conde da Boa Vista. Essa rede de pesquisadores da UFPE desenvolveu, em convênio com a secretaria de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente do Recife, o projeto Parque Capibaribe.

Com a Universidade Católica de Pernambuco, a prefeitura mantém um projeto específico para planejar propostas e estratégias de revitalização para a área central da capital pernambucana. É o Plano Centro Cidadão. Apesar da Conde da Boa Vista integrar o objeto do convênio, os urbanistas da Unicap só conhecem o projeto da avenida “de ouvir falar”.

Uma das coordenadoras das ações do Plano, Clarissa Duarte, mantêm o otimismo: “Buscamos contactar a Secretaria responsável e nos foi informado que seremos convidado a participar em momento oportuno, uma vez que estão ainda amadurecendo e lapidando aspectos importantes da proposta que não podem ser apresentados à sociedade com certas indefinições”.

Em sua opinião, como a sociedade civil possui fóruns de mobilização e exige ser ouvida, o debate acontecerá. “O momento é de grande demanda por participação da sociedade, acho pouco provável que a gestão escolha o caminho da ‘imposição urbanística’. Temos o exemplo recente da colaboração entre Prefeitura e sociedade civil com o caso da humanização de trecho da Rua do Príncipe, que levou em consideração os trabalhos realizados pelo Centro Cidadão’.

Ciclistas não foram consultados

Amiciclo

Página do Plano Diretor Cicloviário apontando a necessidade de uma ciclovia na Conde da Boa Vista

A Associação Metropolitana de Ciclistas do Grande Recife (Ameciclo) encaram o projeto da Conde da Boa Vista como a chance da prefeitura tirar do papel ao menos uma das ciclovias previstas no Plano Diretor Cicloviário da Região Metropolitana, elaborado de forma participativa em 2014 pelo governo de Pernambuco, ainda na gestão de Eduardo Campos. Por enquanto, isso deve ficar apenas no desejo dos ciclistas.

No início do ano, após as primeiras informações sobre o projeto e a entrevista do prefeito, a Ameciclo, protocolou um pedido para a Emlurb. A resposta foi decepcionante: “Disseram que a gente deveria passar lá para ver o projeto. Estranhei. Será que só existe no papel? Não tem um arquivo de Autocad para mandar por e-mail?”, espantou-se Cézar Martins, da Ameciclo.

Outro ativista da ONG, Daniel Valença, é mais taxativo: “A Ameciclo teve a oportunidade de opinar nas mudanças da Agamenon Magalhães, mas não foi consultada neste, que está sendo feito às escondidas, a gente não tem a mínima ideia do que vai acontecer por lá”.

Nem instâncias oficiaisdiscutiram

Em tese, elaborar o projeto de requalificação de uma avenida seria atribuição da Autarquia de Urbanização do Recife (URB), afinal seu papel institucional é, segundo o site oficial da prefeitura, “executar obras estruturadoras e serviços de engenharia com o objetivo de melhorar a qualidade de vida dos cidadãos do Recife”. A assessoria da URB, no entanto, afirmou que suas equipes não participam da formatação do projeto.

O Conselho da Cidade, organismo do poder executivo municipal, também não irá convocar sessões para discutir a questão. Seu presidente, o secretário municipal de Planejamento Urbano, Antônio Alexandre, posicionou-se sem meias palavras: “Não é função do Conselho. Essa será apenas uma obra de requalificação, não irá abrir uma nova via, não terá impacto ambiental. Não tenho competência para falar sobre esse projeto, mas posso garantir que todas as equipes da prefeitura ligadas ao tema estão participando e contribuído com sua elaboração”.
Entre os conselheiros – o Conselho da Cidade é um órgão colegiado com participação da sociedade civil – há quem discorde do secretário. Advogado e professor de Filosofia da UFRPE, Leonardo Cisneiros solicitou oficialmente que o tema fosse incluído na pauta da próxima reunião do órgão. Antônio Alexandre negou o pedido.

Cisneiros rebate o secretário: “Se isso não for discutido no Conselho, será discutido onde? Estamos falado do principal corredor de transporte público da cidade”. Para justificar sua opinião, ele cita duas atribuições do Conselho previstas em sua página oficial: “Convocar audiências e consultas públicas sobre empreendimentos de impacto, planos urbanísticos, grandes obras públicas (…)” e “Requisitar, no exercício das suas atribuições, informações e documentos aos órgãos do Município do Recife, bem como convocar autoridades municipais quando necessário”.

Câmara ignora discussão

Presidente da recém criada Comissão de Mobilidade Urbana e Acessibilidade da Câmara Municipal do Recife, o vereador Gilberto Alves não possui nenhuma razão para criticar a opção da prefeitura em não abrir a questão da avenida para o debate. Afinal, ele foi líder do governo Geraldo Júlio na Câmara por quatro anos. Mesmo assim, ele admite sem hesitar: “Em relação à Conde da Boa Vista estou igual a você: só conheço de ouvir dizer”.

Na Comissão, ele coordena a discussão em torno do Plano de Mobilidade Urbana, que será transformado em lei municipal após ser debatido e aprovado pelo Legislativo. E faz um alerta: “Nenhuma intervenção na Conde da Boa Vista pode incluir parâmetros que contrariem o que fará parte do Plano”.

Empresários conheceram e gostaram

No dia 22 de fevereiro deste ano, os diretores da Câmara dos Dirigentes Lojistas assistiram em primeira mão a uma apresentação do projeto de requalificação da Conde da Boa Vista. Apesar de coordenar a ação, Maria Eduarda não compareceu. Quem representou a prefeitura foi João Braga, secretário de Mobilidade, e Taciana Ferreira, presidente da CTTU. As dúvidas técnicas foram esclarecidas pelo engenheiro Eduardo Cândido Coelho, sócio da Fratar Engenharia Consultiva e responsável técnico pelo projeto.

A atuação da Fratar no processo é tão intrigante que, em breve, merecerá um texto à parte.

Francisco Cunha, consultor da CDL pela TGI Consultoria, estava presente e gostou do que viu. Ele disse que a apresentação teve caráter consultivo para colher opiniões dos comerciantes do centro.

Segundo Cunha, a maioria das “observações feitas disseram respeito às paradas dos ônibus, à localização das estações do BRT e à circulação prevista dos automóveis. Creio que são corretas e adequadas as premissas que orientaram o estudo apresentado: a humanização da avenida e a priorização dos pedestres e dos usuários de transporte público. O desafio é conseguir adequar os fluxos intensos a uma calha limitada. Até onde pude perceber, o esforço feito estava sendo bem sucedido”.

Na ocasião, João Braga anunciou que as obras começariam no final de abril, conforme publicado na seção de notícias do site da CDL.

Linha do tempo

Secretário garante que a discussão vai acontecer

Sim, o projeto da Conde da Boa Vista será debatido, mas só quando acabar a fase de estudos e a Emlurb tiver algo mais definido para apresentar. Quem garante é o engenheiro Roberto Gusmão, que acumula os cargos de presidente da Autarquia e secretário municipal de Infraestrutura e Habitação.

Resposta Roberto Gusmão

Apesar de Maria Eduarda ser a responsável técnica, ele é o único gestor destacado para falar oficialmente sobre o andamento do projeto, conforme seu colega, o secretário de Planejamento Urbano Antônio Alexandre, deixou claro logo no início da apuração desta reportagem.

Com ênfase e demonstrando segurança. Gusmão esclareceu que a Emlurb começou ouvindo a CDL por uma razão óbvia: “A avenida é uma via essencialmente comercial, com dezenas de lojas e até um shopping, então era preciso escutar os comerciantes para conhecer a razões de algumas lojas terem estacionamento e outras não, a dinâmica dos veículos de serviço, por exemplo”.

Chefe direto de Maria Eduarda Campos, o secretário assegura que, em breve, as entidades serão convidadas a opinar sobre o projeto. Enquanto isso não acontece, a equipe envolvida precisa “estudar para a prova”, ou seja, fundamentar tecnicamente cada item incorporado.

“Vamos ouvir todas as entidades, vamos ouvir as universidades, mas não basta querer mudar alguma coisa, vai ser preciso ter estudado para a prova também, vai ser preciso saber argumentar”, diz Gusmão, sempre bem humorado. Segundo ele, o projeto, apesar de “bem estudado” não será pétreo, “estaremos abertos a mudanças, desde que sejam apresentadas para o bem do pedestre e da cidade”.

Detalhes de um projeto que já nasce problemático

Fragmentos do projeto apresentado por Maria Eduarda Campos e por Eduardo Cândido Coelho, diretor da empresa de consultoria responsável pela elaboração da proposta, a Fratar Engenharia Consultiva, em reuniões com técnicos da prefeitura circulam nos grupos de whatsapp de arquitetos e urbanistas pernambucanos. A Marco Zero teve acesso a algumas dessas imagens, no entanto elas não podem ser publicadas para não expor os autores das fotografias. Então, a partir do que foi exibido, sinalizamos algumas mudanças que constam nos trechos do projeto que estão circulando sem autorização oficial.

Entre os urbanistas, as maiores fontes de preocupação são as travessias. Na maior parte da avenida estão previstas travessias assimétricas (ou descontínuas), aquelas onde o pedestre atravessa a primeira metade da avenida, para no canteiro central em uma ilha protegida por gradil e espera o sinal abrir para completar a avenida numa faixa pouco mais à esquerda ou à direita.

Esse tipo de travessia foi uma das opções adotadas pela mesma empresa Fratar no projeto do cruzamento das avenidas Norte e Cruz Cabugá.

Exemplo de faixa descontínua em Belo Horizonte (MG)

Exemplo de faixa descontínua em Belo Horizonte (MG)

A travessia existente no trecho da rua Sete de Setembro é uma das mais arriscadas da avenida em razão do grande movimento de pedestres. Do jeito que está previsto, o canteiro central naquele trecho poderá chegar a 1,20 metro de largura. Não parece haver espaço para tanto. Hoje, o batente existente tem apenas 40 centímetros e não há espaço para dois ônibus em movimentos passarem ao mesmo tempo, em qualquer um dos lados da Conde da Boa Vista.

Cruzamento da Conde da Boa Vista com a rua Sete de Setembro

Coordenadora executiva do Plano Centro Cidadão, a urbanista Clarissa Duarte adverte para a importância das travessias, um dos principais problemas da Conde da Boa Vista: “É necessário que o pedestre tenha facilidade e conforto para a travessia, que não encontre obstáculos para atravessar a avenida em completa segurança”. Sob estes critérios, além dos gradis projetados para possibilitar a travessia em dois tempos, há mais um motivo para polêmica: em vários cruzamentos está desenhada uma faixa de pedestres bastante incomum, no mesmo sentido do fluxo dos ônibus e bem no meio da avenida. Assim, em locais como o cruzamento com a rua da Aurora, Hospício ou Gervário Pires, o pedestre poderá ficar exposto aos BRTs passando ao seu lado.

Cruzamento com a ruado Hospício

Cruzamento com a rua da Aurora

As calçadas de ambos lados da avenida, da rua do Hospício à Dom Bosco, serão alargadas, transformando-se em calçadões para pedestres e pelo comércio informal, apesar do projeto não mencionar essa atividade. Apesar disso, não haverá ciclovia nem de um lado nem do outro. A atual faixa exclusiva para carros desaparecerá. Apesar de mais estreita, a Conde da Boa Vista estará aberta para carros de passeio, que dividirão espaço com os ônibus comuns, pois o BRT ocupará as duas faixas centrais.

Cruzamento com a Gervásio Pires

As estações do BRT, ainda intocadas e já deterioradas, serão deslocadas para o centro da avenida. Em alguns casos, como na altura da rua José de Alencar e das Ninfas, deixarão de obstruir os cruzamentos.

Cruzamento com a rua José de Alencar

O caótico cruzamento com a Soledade poderia render muita discussão caso a prefeitura não tivesse optado por obstruir o debate com especialistas. Hoje, atravessar esse trecho requer doses de paciência, perspicácia e sorte, principalmente para os muitos deficientes visuais que se deslocam todos os dias para a Fundação Altino Ventura, situada a 200 metros de distância.

Ao menos de acordo com as imagens que chegaram para os arquitetos, o que está prevista para esse trecho é uma confusa sequências de travessias descontínuas, incluindo uma delas em forma de letra ‘V’, que leva das duas calçadas da Soledade (do lado do Colégio São José e do ponto próximo ao prédio do consórcio Grande Recife) a uma ilha triangular chamada “hélice”.

Consensos e dissensos do projeto

Mesmo sem apresentar qualquer esboço, o secretário Roberto Gusmão, revelou alguns dos aspectos do projeto que estão quebrando a cabeça dos técnicos. De acordo com ele, apesar de vários itens terem sido incluídos no projeto cujas imagens circulam extra-oficialmente, não há consenso a respeito de:

  • Posição das paradas de ônibus comuns e dos BRTs
  • Trechos do canteiro central a serem usados pelos pedestres
  • Intervalos de tempo dos semáforos
  • Travessias de pedestres
  • Alternativa ao ar-condicionado para manter conforto nas estações de BRT

Já as obras consideradas de “engenharia” já podem ser dadas como definidas e devem custar aproximadamente R$ 6 milhões. Segundo o secretário, são consideradas como “simples”, que dificilmente mudarão até a finalização:

  • Alargamento das calçadas
  • Iluminação
  • Drenagem
  • Canteiro central para receber as estações do BRT

Além disso, o projeto contemplará o mobiliário urbano (principalmente lixeiras) e paisagismo, itens que foram esquecidos no projeto de 2008, quando o prefeito era João Paulo e o secretário de Planejamento, João da Costa – curiosamente a Emlurb, na época presidida pelo próprio Roberto Gusmão, executou a obra.

AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.