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Diário de Keleti 2 – Hungria repete o modo de fazer nazista

Marco Zero Conteúdo / 07/09/2015

Por Márcio-André de Sousa Haz
Fotos: Agência 24u

Depois da reabertura da estação e da partida do primeiro trem para a Alemanha abarrotado de refugiados, soube-se rapidamente que se tratava de uma armadilha do governo húngaro. Não sei se o premiê Viktor Orbán tem noção do quão desumana foi essa estratégia de tentar levá-los à força até o campo de refugiados. Acontece que o trem que saiu da estação ontem por volta das onze da manhã não seguiu para Alemanha, mas desceu ao sul, em direção a Bicske. No meio do caminho, o trem deteve-se e a polícia começou a tentar transferi-los para ônibus que os levariam aos campos. Apesar dos esforços e da truculência, homens e mulheres se agarraram aos vagões e aos trilhos e não foi possível retirá-los dali.

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Uma cena antológica roda a internet, em que um pai agarra-se com os dentes à manga de sua esposa, tentando evitar ser separado dela e de seu filhinho de colo. Uma cena que até alguns dias não me parecia ser possível acontecer na Europa de hoje. Qualquer semelhança a fatos não tão distantes no tempo não me parece exagero. Aliás, segundo um amigo húngaro, esse campo para onde eles seriam levados, tinha sido um campo de trabalho forçado de judeus no período nazista. Pelo que me informaram, até agora o trem continua parado no meio do caminho. Os refugiados que permaneceram em Keleti souberam rapidamente o que se passou e não subiram nos trens seguintes.

Pela manhã, voltei à estação e filmei um pouco das crianças brincando. Um homem me perguntou se não queria vender minha bicicleta. Tinha a ideia de ir pedalando até a fronteira. Por volta do meio dia, um grupo de sírios começou a caminhar pela estação com um megafone convocando os que estavam deitados. Um deles se aproximou e me disse que já não queriam mais esperar, depois de tantos dias sem trens, e que iriam andando até a fronteira com a Áustria.

O que me pareceu algo absurdo naquele momento e que, admito, me fez duvidar de que eles realmente o fariam (afinal, estamos falandod e 240km de marcha), se converteu diante dos meus olhos em uma das cenas mais extraordinárias que já presenciei. Um grupo de quase mil e quinhentas pessoas se pôs em marcha, partindo da estação e atravessando a cidade. Nesse momento, pude ter uma ideia do que deve ter sido o êxodo bíblico. Era gente que não acabava mais. Uma fila que se estendida de Keleti até Blaha Luiza Tér (algo em torno de cinco quarteirões largos) e que parou completamente o trânsito. Crianças, mulheres, homens de todas as idades. Na frente, um senhor era levado em cadeira de rodas. Logo apareceram dezenas de carros de polícia e se puseram a acompanhá-los. Atravessaram o Danúbio numa marcha silenciosa e subiram a colina em direção ao norte. Ali os deixei.

Caminhando de volta para Keleti, onde muitos ainda permaneceram (cerca de dois mil), encontrei com alguns “retardatários” esparsos (provavelmente outros tantos descrentes como eu) perguntando em que direção haviam ido. Um deles me perguntou em tom jocoso “você não vem?”. Respondi no mesmo tom que estava cansado, mas a verdade é que tinha somente a câmera, alguns forints no bolso e nenhum documento. Eu poderia chegar bem longe com eles, mas não teria como voltar.

Já em Pest, passou por mim uma velhinha, a última retardatária. Andando curvada e muito lentamente, com a ajuda de voluntários para manter-se de pé, seguia o grupo já com um quilômetro de distância. Não creio que ela tenha conseguido ir muito longe. E, posso dizer que ver essa senhora e seu esforço me partiu o coração. Muito mais que as crianças, muito mais que o homem mordendo a manga de sua esposa, muito mais que a mulher grávida que conheci e me disse como foi espancada pela polícia na fronteira.

Diário de Keleti 3 – Agora a estação está (quase) vazia

Depois que o primeiro grupo partiu ontem em marcha, o governo húngaro, acabou liberando em torno de cem ônibus para levar até a fronteira da Áustria os que ficaram em Keleti. Por volta das duas da madrugada, a estação estava completamente vazia. Haviam partido às pressas nos ônibus, deixando brinquedos, roupas, cobertores, comida e barracas para trás. Admito que bateu uma tristeza ao ver tudo jogado e vazio, como se fosse o dia seguinte de uma grande festa. Claro que foi o melhor para eles, mas me sentia desamparado depois de dias tão intensos e hiperestimulantes.

Quando voltei hoje pela manhã, os funcionários da estação já haviam limpado quase tudo com jatos de água. Os banheiros tinham sido retirados, o ponto de água estava desligado e o posto do “Imigration aid” desocupado. Pensei que era o fim e que tudo voltaria a normalidade, até que, por volta das dez da manhã, começaram a aparecer mais refugiados vindos dos campos. Cerca de 500 pessoas (pelo menos até o momento que estive ali – alguns amigos me disseram que foram dois mil) irromperam de dentro da estação de metrô, trazendo novamente o ruído, as crianças, as mochilas, os sacos de dormir e, dessa vez, um sorriso de esperança. Encheram novamente a estação e com eles, uma quantidade ainda maior de voluntários independentes apareceu, trazendo água, engradados com maçãs, roupas, sapato, brinquedos.

Isso me chamou um pouco a atenção. Especialmente, porque começaram a aparecer funcionários aparentemente contratados trazendo doações. Uma caridade um pouco estranha. Balões de gás com marca de loja de informática, cestas de comida com o símbolo de uma rede odontológica, animadores de festa uniformizados. Me parecia agora um segundo tempo com merchandising.

Enquanto filmava a entrada dessa nova leva, um voluntário que distribuía comida me perguntou de onde eu era e depois de ouvir a resposta começou a falar mal da imigração. “Eu ajudo não sei porquê, acho que é vício. Como eu tenho vício em beber” – disse, me mostrando a lata de cerveja que trazia. A princípio, não quis dar muito atenção ao que ele falava, mas ele insistia em provar que aquilo não era certo. Me pareceu a coisa mais contraditórias do mundo. No final, para tentar livrar-me dele, acabei argumentando sobre os húngaros refugiados da segunda guerra, o que pareceu acalmá-lo um pouco.

Mas a nova leva que chegou a Keleti também não ficou por muito tempo. Tão logo chegava, partia. Muitos, em marcha, como o grupo do dia anterior. Estavam ansiosos para ir embora. Deixei a estação por volta das duas da tarde para repousar, devido à gripe que me atacou. Soube por amigos, entretanto, que, percebendo que era em vão resistir, a companhia de trens liberou linhas especiais para levar gratuitamente os refugiados até a fronteira. Às nove da noite, saiu o primeiro trem com refugiados em direção a Áustria. Houve aplausos e comoção. Vamos ver no que isso vai dar.

AUTOR
Foto Marco Zero Conteúdo
Marco Zero Conteúdo

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