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Diário de uma ocupação

Samarone Lima / 03/11/2016

Recife, 2 de novembro de 2016.

O dia de Finados, no Campus de Santo Amaro, da Universidade de Pernambuco (UPE) estava cheio de vida. A mobilização dos estudantes contra a PEC 241 e a Medida Provisória 746 completava uma semana e a Faculdade de Enfermagem (FENSG) era uma pequena mostra de uma nova face do movimento estudantil – uma mobilização que junta diversas alternativas para discutir o país, a educação e seu futuro, envolvendo alunos, professores e sociedade civil.

Na porta da Faculdade, estava a estudante Maria Eduarda Campos, de 19 anos, estudante do primeiro período de Enfermagem, ao lado do pai, Adilson Jardim, professor de letras da rede privada, e da mãe, Bárbara Borges, professora da rede pública de Olinda. Num feriado como este, deveriam estar visitando os mortos no cemitério ou em alguma praia. Estavam no Campus de uma universidade pública do Estado.

Mal começou a vida universitária, e Maria já encara uma ocupação.

“É claro que precisávamos tomar uma atitude”, conta ela, com uma postura altiva, de quem sabe que está no meio de um momento conturbado da vida política do país. “A greve é para incomodar eles. A gente vai ficar aqui e não vai ficar em silêncio”. Enquanto dá a entrevista, segura o livro “Desobediência Civil”, ensaio do norte-americano Henry David Thoreau, para ler numa “”Roda de Leitura”, uma das muitas atividades organizadas pelo comando da ocupação, diariamente. O livro foi escolhido pelo pai.

“A ocupação está sendo muito importante. A gente discute não só a PEC, mas racismo, preconceito, a importância do SUS, políticas públicas. Minha turma está bem envolvida e é muito bom ver que os professores também estão com a gente”, conta.

Na sexta-feira da semana passada, os professores da UPE declararam greve e estão participando ativamente das atividades organizadas pelos alunos.

Professor Fernando Ivo deu um “aulão” para cerca de 40 jovens que vão fazer o ENEM

Professor Fernando Ivo deu um “aulão” para cerca de 40 jovens que vão fazer o ENEM

A poucos metros dali, no auditório da Faculdade, o professor Fernando Ivo dava um “aulão” para cerca de 40 jovens que vão fazer o ENEM no próximo final de semana.  Ele, que não tem vínculo com a UPE, reservou quatro horas de trabalho voluntário porque acredita no movimento. O convite foi feito por uma ex-aluna, via Facebook, e ele topou na hora. A aula foi sobre um tema específico, que é dor de cabeça de quase todo jovem – redação.

“Esse movimento está me surpreendendo. Desde o início os jovens estão muito organizados, há diversas atividades artísticas e os professores participam ativamente. É como uma luz no fim do túnel”. Ele é professor do Instituto Federal de Educação, de Olinda, também ocupado há duas semanas.

“Lá, tem muitas atividades artísticas, oficinas de desenho, pintura, performances. Estou vendo que estas ocupações estão sendo extremamente criativas”, observa.

De um tudo

A mobilização dos estudantes é atualizada diariamente no Facebook. No dia anterior, a roda de conversa discutiu o impacto da PEC na saúde pública. Há comissões para cuidar da alimentação, a político-pedagógica, de manutenção, e tudo parece funcionar numa harmonia criada pela energia dos jovens.

As salas estão ocupadas por barracas de camping e colchonetes. Cada uma tem um nome de batismo.

Quem apresenta a “Ocupação” é Laleska dos Santos, de 22 anos, estudante de Educação Física e vice-presidente do DCE da UPE.

Altiva, desinibida e liderança nata, ela vai mostrando as salas e falando sobre a ocupação como uma nova conquista dos jovens. Quando vê, sobre uma barraca, a bandeira do DCE da UPE, pega e segura, para uma foto. É o orgulho de fazer parte de um movimento que se espalha por todo o país.

“Vamos ficar por tempo indeterminado. O movimento está tendo um valor enorme. Temos que repensar a própria sociedade. Os professores dizem que nunca deram aulas tão abertas como as que estão dando agora, depois da ocupação”, diz.

Ela estava tranquila conversando sobre todas as propostas do movimento, quando o pai de Maria, Adilson, avisa que três jovens que estavam fazendo uma grafitagem em um dos muros da UPE, estavam tento algum problema com a Polícia Militar.

Laleska vai ver a bronca. De fato, dois PMs abordavam três jovens que faziam uma grafitagem, ao lado de uma frase escrita com spray: “Sai do Facebook e vem ocupar!”.

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Um dos PMs, que tinha na farda o sobrenome Caetano, estava irritado por um motivo inusitado. Ele não gostou da cor usada no trabalho dos jovens.

“Um negócio preto… Tá parecendo um maracatu. Poderia ser verde e azul”. Na periferia, isso poderia dar em cana ou um Boletim de Ocorrência qualquer.

Ninguém entendia direito a abordagem. Questão estética virando questão policial?

Laleska explicou que estavam autorizados, que já foram feitas várias grafitagens durante a ocupação, e não se tratava de “pichação”. Depois de dez minutos de chateação, ela deu seu nome completo, disse que era vice-presidente do DCE e os PMs foram embora, não sem antes escutarem reclamações de Caetano, que estava achando tudo muito “feioso”.

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Ela voltou a tempo de agradecer a Fernando Ivo, no final de seu aulão.

Explicou aos jovens o sentido da ocupação, o que representava para a educação no país e pediu que eles ajudassem, participassem. Era quase um aviso – “o que está acontecendo no país, neste momento, pode afetar diretamente vocês, quando entrarem numa universidade pública”.

A moça é incansável. Saiu e foi ver como estava a turma da cozinha.

Fernando Ivo saiu e recebeu o convite:

“Vamos almoçar, professor?”

Ele iria visitar a mãe. No dia seguinte, já tinha outro aulão agendado, em Olinda.

Cozinha coletiva: na Ocupação o trabalho é dividido entre todos

Cozinha coletiva: na Ocupação o trabalho é dividido entre todos

Ocupa tudo

Neste momento, os estudantes da UPE já ocuparam os Campus de Petrolina, Palmares, Nazaré da Mata, Garanhuns e Santo Amaro. Somente no de Garanhuns, não foi decretada greve dos professores.

Cerca de 100 jovens dormem no Campus de Santo Amaro. Trezentos circulam e participam de alguma atividade, diariamente.

Para se manter, eles contam com doação de alimentos e dinheiro. Quem quiser ajudar, é só ver as páginas do Facebook ou ir pessoalmente.

AUTOR
Foto Samarone Lima
Samarone Lima

Samarone Lima, jornalista e escritor, publicou livros-reportagens e de poesia, entre eles "O aquário desenterrado" (2013), Prêmio Alphonsus de Guimarães da Fundação Biblioteca Nacional e da Bienal do Livro de Brasília, em 2014. Em 2023, seu primeiro livro, "Zé", foi adaptado para o cinema.