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Dossiê revela como militares interferiam na vida acadêmica da UFPE

Inácio França / 19/09/2019

Dezenas de documentos que passaram mais de 30 anos guardados nos arquivos da reitoria demonstram como, em plenos anos 1980, após a anistia e no final da ditadura, os militares interferiam na vida administrativa da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Em 2013, os ofícios e memorandos, todos com o carimbo de “confidencial”, foram enviados ao Ministério da Educação e repassados para a Comissão Nacional da Verdade.

Por meio de sua assessoria, o reitor Anísio Brasileiro, explicou que a documentação foi catalogada e enviada atendendo a um pedido do ministério.

A documentação foi produzida de 1980 a 1983, período em que o reitor era Geraldo Lafayette Bezerra, que é remetente ou destinatário de todos os itens. Era intensa a correspondência oficial entre a universidade, a delegacia regional do MEC e a chefia do Serviço Nacional de Informações (SNI, a agência de espionagem interna da época da ditadura).

Invariavelmente, os militares pediam informações ou orientavam decisões de âmbito interno, muitas de natureza acadêmica. Ora faziam as recomendações diretamente ao reitor, ora usavam o delegado do ministério Francisco de Assis Balthar Peixoto como mensageiro. Este, por sua vez, as transmitia o reitor informando logo no primeiro parágrafo dos ofícios que se tratava de “um pedido de órgão superior”.

Assim, o coronel Clidenor de Moura Lima, diretor do SNI em Pernambuco, e seus agentes davam ordens na UFPE, recomendando cancelamento de bolsas de residência médica, modificando programação de seminários, cancelando eventos, requisitando dados pessoais de estudantes que tinham acabado de passar no vestibular e até garantindo a transferência de um aluno “do seu interesse”.

O reitor, que morreu em pleno exercício do cargo, em abril de 1983, atendia a praticamente todas os pedidos, os encaminhando aos seus subordinados pedindo que repassassem as informações ou tomassem as providências “confidencialmente”.

Um “favor” oficializado

O pedido para viabilizar a transferência do estudante Sérgio José de Adeildo Pinheiro Coutinho Beltrão parece ter sido mais do que um pedido de favor pessoal para ajudar uma pessoa amiga, pois gerou um ofício formal endereçado ao próprio reitor. O aluno tentava ser transferido do curso de Direito da UFPB para a Faculdade de Direito do Recife, mas sua primeira tentativa em fevereiro de 1980 havia sido recusada. O chefe da Divisão de Segurança e Informação (DSI, braço do SNI nas universidades) recorreu diretamente ao reitor.

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SNI mandou demitir médicos

No final de 1982, duas médicas e um médico que faziam residência no Hospital das Clínicas foram desligados e perderam suas bolsas depois que o próprio coronel Clidenor os denunciou à UFPE, informando eles tinham passado em seleções da secretaria estadual de Saúde e estavam recebendo salário. O programa exigia exclusividade. Nenhum dos três profissionais estava envolvido com atividades políticas, seja na univesidade ou em partidos políticos. A Marco Zero apurou que, pelo menos, o médico e uma das médicas atuam profissionalmente em grandes hospitais do Recife. Ele como cirurgião-geral e urologista, ela como especialista em ultrassonografia.

 Fofoca e intromissão

Os pedidos de informação sobre a rotina profissional dos professores eram frequentes. Em janeiro de 1983, o coronel Clidenor enviou ofícios ao reitor pedindo a carga horária e os horários das aulas do titular da disciplina de urologia da faculdade de Medicina, Antônio Carlos da Costa Cavalcanti. Em dezembro de 1981, o DSI quis saber se o professor de Educação Física Rômulo Cavalcanti Lacerda Júnior acumulava cargos ilegalmente, pois também era diretor da Escola Técnica Federal. Desta vez, a tentativa de interferência não funcionou, pois professor era auxiliar, com apenas 20 horas de aulas semanais, condição que permitia outro emprego.

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Coronel queria saber tudo de todos

Pelo menos em duas oportunidades entre 1981 e 1983, a reitoria fornecia nomes e dados de todos os alunos da universidade. Além disso, era comum o SNI e seu braço no MEC pedir dados dos professores estrangeiros, da situação de todos os diretórios acadêmicos e das associações de classe dos funcionários e dos docentes. O reitor não hesitava em fornecer as informações.

 Estudantes expostos

Durante o reitorado de Geraldo Lafayette, o coronel Clidenor e a DSI solicitavam, pelo menos duas vezes em três anos, os dados pessoais completos (data e local de nascimento, endereço, filiação e carteira de identidade) de dezenas de estudantes que participavam do movimento estudantil ou compareciam a eventos culturais. Com os dados nas mãos, os agentes passavam a acompanhar de perto a vida acadêmica desses estudantes, muitos dos quais viriam a exercer mandatos políticos ou se tornaram figuras públicas. Foi o caso do vereador e ex-prefeito do Recife João da Costa, do deputado federal Renildo Calheiros, do procurador Aguinaldo Fenelon, do advogado e professor Jayme Benvenuto, do advogado e ex-empresário Maurício Rands, do médico e cineasta Wilson Freire, e do jornalista Vandeck Santiago, atual editor-executivo do Diário de Pernambuco.

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Uma medalha para o reitor

Logo no início da gestão de Geraldo Lafayette, o comandante do IV Exército, general Florimar Campello, concedeu uma medalha para o reitor. Sinal de que a prestatividade ao repassar informações a todos os pedidos era tanto subserviência quanto compromisso com a ditadura militar.

O dossiê agora está nas mãos da equipe de pesquisa que estuda a vigilância dos órgãos de repressão da ditadura aos professores da UFPE, coordenada pelo professor Evson Malaquias Santos, do Centro de Educação:

“Ainda temos muito o que caminhar na pesquisa. Ainda é nebuloso o comportamento da administração central da UFPE frente aos órgãos de repressão de 64. Mas esses documentos nos revelam a ingerência direta e gritante da DSI (Divisão de Segurança e Informações) e da Delegacia do MEC na UFPE, particularmente, na gestão de Geraldo Lafayette. Ele cumpria rapidamente ordens de cima. Os outros faziam a mesma coisa? O que se sabe, pela pesquisa, é que o reitorado de Marcionilo Lins fora elogiado como colaborador da ditadura de 64 quando acionado. Esses documentos são os mais incisivos e diretos quanto à ingerência dos órgãos de informação na administração da UFPE.”

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AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.