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Encontro de agroecologia pretende integrar lutas rurais e urbanas

Inácio França / 31/05/2018

Foto: Gabriel Amorim/Asacom

Quando, durante a greve dos caminhoneiros, a falta de gasolina e a ausência de alternativas para o transporte ameaçaram as refeições diante da perspectiva de falta de alimentos, muitos brasileiros devem ter percebido o quanto a vida nas cidades depende daquilo que é produzido no campo. Em meio às consequências e desdobramentos da greve que tornou ainda mais intensa a crise política, começa hoje em Belo Horizonte o IV Encontro Nacional de Agroecologia exatamente com o tema “Agroecologia e democracia unindo campo e cidade”.

Até domingo, 3 de junho, dois mil agricultores, técnicos agrícolas, ativistas de movimentos sociais e professores universitários de todo o País irão discutir como encontrar estratégias para, no confuso contexto político atual, levar a população dos grandes centros urbanos a compreender e defender a importância de produzir alimentos saudáveis de maneira socialmente mais justa, garantindo a biodiversidade e o respeito à natureza.

A Marco Zero Conteúdo irá acompanhar o Encontro, a convite da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), instituição formada por 23 redes estaduais e regionais, compostas por centenas de grupos, associações e ONGs, além de 15 movimentos sociais de atuação nacional.

Para o coordenador do Centro Sabiá, Alexandre Pires, para realizar o objetivo de “unir campo e cidade” é preciso ir além de apenas convencer o público urbano. “Sentimos que é possível chegar a um número cada vez maior de pessoas estabelecendo o diálogo com os grupos de comunicação contra-hegemônicos, a mídia independente. No entanto, já estamos iniciando um processo de produzir alimentos nas cidades, aplicando os fundamentos da agroecologia em verdadeiras roças urbanas”.

De acordo com Pires, as melhores e mais consolidadas experiências de produção de alimentos nas grandes cidades estão em Florianópolis, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Mesmo sendo novidade até mesmo para o Centro Sabiá, a equipe da ONG fundada há 25 anos para desenvolver a Agricultura Agroflorestal no interior do estado, agora acompanha a produção de verduras e hortaliças conduzida pelas mulheres da comunidade da Palha do Arroz, na beira do fétido canal do Arruda.

As entidades das redes agroecológicas apostam num amplo leque de ações para chegar aos moradores das cidades. Está virando rotina ações em conjunto com os sindicatos de categorias profissionais das grandes cidades.

“A inclusão da merenda escolar produzida com produtos da agricultura familiar na pauta de reivindicações de professoras e demais trabalhadores da educação é resultado desse relacionamento”, explica Pires. O mesmo raciocínio vale para as discussões sobre o direito ao saneamento com o movimento comunitário e sindicatos.

Outra tática é procurar artistas conhecidos nas cidades para “apadrinhar” experiências de agroecologia. Chico César gravou a música Reis do agronegócio, Lia de Itamaracá marcou presença na IX Marcha da Vida das Mulheres na Paraíba, Isaar acompanha de perto a experiência do Centro Sabiá na cooperativa de mulheres na Palha de Arroz.

A soma de todas essas ações, segundo Alexandre Pires, tem por finalidade “construir afinidades na luta pela democracia, demonstrando que a luta do campo e da cidade, apesar de parecerem diferentes, é a mesma”.

Um dos pontos altos desse processo de “construção de afinidades” teria sido, para o coordenador do Centro Sabiá, o Ocupe Campo-Cidade, em abril de 2015, quando MST, Núcleo de Agroecologia e Campesinato da UFRPE, Movimento dos Atingidos por Barragens, Pastoral da Juventude Rural, Rede Coque e o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Comércio Informal (SINTRACI), se juntaram ao Ocupe Estelita. Em um dia, pelo menos cinco mil pessoas passaram pelo Cais José Estelita para participar de uma série de oficinas de bioconstrução, feira de orgânicos, aulas públicas e debates e exibição de filmes.

Cenário adverso principalmente para as mulheres

O IV Encontro Nacional de Agroecologia acontece sob expectativas completamente diferentes dos três encontros anteriores. Na última edição, em Juazeiro (BA), os agricultores familiares contavam com a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), anunciada pela então presidente Dilma Rousseff em plena Marcha das Margaridas de 2011. Para quem não tem intimidade com os movimentos sociais do campo, a Marcha das Margaridas é uma manifestação anual, que acontece desde 2000 em Brasília como forma de homenagear a trabalhadora rural e líder sindicalista Margarida Maria Alves, assassinada em 1983 por usineiros na Paraíba.

A PNAPO e seu desdobramento imediato, o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, construído com a participação das entidades do campo, viraram letra morta após o golpe. O Plano considerava a mulher agricultora como protagonista para garantir a produção de alimentos saudáveis, daí terem sido elas as maiores prejudicadas no governo Michel Temer.

Não à toa, horas antes da abertura oficial do Encontro, haverá uma plenária específica das mulheres agricultoras, que são 50% do público do IV ENA.

marcha das mulheres_Catarina de Angola ASACOMEntre as participantes, o ambiente é de luta para recuperar as conquistas tomadas pelo golpe. A técnica Beth Cardozo, do Centro de Tecnologias Alternativas (CTA), de Viçosa, na Zona da Mata de Minas Gerais, explica que o desmantelamento das políticas para as agroecologia e as mulheres do campo foi logo percebido na formação dos ministérios: “Nós dialogávamos com uma diretoria específica no MDA [Ministério do Desenvolvimento Agrário]. O que existe agora é uma coordenação sem autonomia, sem recursos, sem status, dentro da Sead [Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário], que por sua vez faz parte da Casa Civil”.

Assim, segundo Beth, a primeira coisa a se perder foram as políticas integradas. “Um exemplo: a diretoria de políticas de gênero dialogou com a Secretaria de Políticas para Mulheres e criou uma estratégia de combate à violência contra a mulher vinculada à agricultura familiar. Isso não existe mais”, denuncia a técnica do CTA.

Beth, que faz parte do Grupo de Trabalho de Mulheres da ANA, ressalta a importância do papel da mulher para a agroecologia: “A maioria das iniciativas de fazer a transição para a agroecologia parte das mulheres, isso se explica em parte por conta da ausência dos homens por força da migração em busca de trabalho, em parte pela preocupação da mulher com a saúde dos filhos. Ela quer alimentos variados e saudáveis, não quer veneno na mesa de casa”.

Por conta disso, antes do golpe, 50% dos recursos da assistência técnica tinham de beneficiar mulheres, 30% dos recursos para folha de pagamento tinham de ser usados para contratar técnicas agrícolas; 30% das verbas de capacitação custeavam atividades com e para mulheres.

Sem dinheiro para assistência técnica

O dinheiro para a assistência técnica rural destinado à agricultura familiar já foi parar em outras mãos. Em fevereiro, a Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Anater) recebeu R$ 184 milhões da Sead que, em tese, deveriam ser destinados à agricultura familiar. Nenhum centavo irá para as centenas de instituições cujo foco de trabalho é a agricultura orgânica e a agroecologia. Todo o montante está sendo repassado para as empresas estaduais de assistência técnica, as Emater, que tradicionalmente atende às cadeias produtivas do agronegócio, com uso de venenos e fertilizantes químicos.

Beth Cardozo conta que, com o golpe, centenas de contratos ainda em vigor do MDA com ONGs simplesmente foram ignorados. “Em todo o Brasil, milhares de técnicos agrícolas cujo trabalho e conhecimento contribuíram para que famílias fizessem a transição da agricultura tradicional para a orgânica ou agroecológica, nunca receberam salários por serviços já prestados”, conta a técnica.

As entidades, recorda ela, procuraram a Anater para saber se aqueles milhões não seria usados para honrar os contratos existentes. “Disseram que aqueles recursos não tinham relação alguma com os contratos do MDA”, afirma. O mesmo MDA que virou Sead, que havia repassado os R$ 184 milhões para a Anater.

Procurada pela Marco Zero, a Anater respondeu de imediato com a mensagem que reproduzimos na íntegra:

“A Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Anater) é uma instituição autônoma, de direito privado, sem fins lucrativos, de interesse coletivo e de utilidade pública, cujo papel é coordenar o serviço de assistência técnica e extensão rural do país. Para isso, ela recebe recursos do Governo Federal, que são repassados às empresas públicas prestadoras de Ater (as Emateres) através de instrumento específico de parceria, e às empresas privadas (cooperativas, associações etc), através de chamadas públicas.

Sendo assim, não está sob a responsabilidade da ANATER o pagamento de nenhum contrato firmado por órgãos do governo, a exemplo dos realizados pelo MDA, citado em sua mensagem, mas somente pelos novos contratos, firmados diretamente pela ANATER com as entidades prestadoras de Ater, públicas ou privadas.

Em relação aos contratos firmados pela ANATER, informamos que os projetos já estão sendo realizados em 21 unidades da Federação, em parceria com as Emateres. Também estão em andamento três chamadas públicas para entidades privadas prestadoras de Ater, que irão beneficiar cerca de 30 mil famílias de agricultores, e quase 400 municípios, observando o atendimento ao percentual mínimo de 50% de mulheres rurais e 25% de jovens do público total”.

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Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.