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Escritor usa fontes militares para desmontar mentiras de Bolsonaro

Inácio França / 31/07/2019

Jair Bolsonaro mentiu pelo menos duas vezes na segunda-feira, 29 de julho.

A primeira foi logo cedo, quando insultou o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, e disse que poderia revelar como seu pai, Fernando Santa Cruz, havia morrido.

Horas depois Jair Bolsonaro mentiu novamente ao dizer, enquanto cortava cabelo, que Fernando Santa Cruz teria sido assassinado por outros militantes da organização Ação Popular.

O presidente mentirá novamente caso tenha de contar, diante da Justiça, sua versão sobre a morte do pai de Felipe.

Quem faz essas afirmações é o jornalista e escritor Marcelo Godoy, autor do livro A casa da vovó, sobre o funcionamento do centro de torturas dirigido pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. O livro ganhou o prêmio Jabuti de Livro do Ano em 2015. “Digo mais: corto meu braço direito se Bolsonaro apresentar qualquer prova documental ou uma testemunha idônea para tentar atestar suas mentiras”.

Godoy conhece como poucos o tema da repressão às organizações clandestinas durante a ditadura militar. Desde o início dos anos 1990, ele pesquisa em fontes oficiais e realiza entrevistas com os próprios agentes da repressão. “Recorro a policiais civis, militares, oficiais, soldados que estavam na linha de frente e frequentavam os porões da tortura exatamente porque gente como Bolsonaro e seus simpatizantes costumam dizer que os militantes da esquerda são fontes sem credibilidade. Então, não há como desmentirem as fontes que consulto”.

Mentira nº 1

De acordo com o escritor, a primeira mentira está na afirmação que a Ação Popular (AP) era o “grupo terrorista mais sanguinário que tinha em Pernambuco”. Para demonstrar a falsidade da afirmação, Godoy recorre ao processo 46/70 da Justiça Militar de Pernambuco sobre a investigação do atentado à bomba no aeroporto dos Guararapes em 1966, que recebeu no Superior Tribunal Militar o número 38.605/71. São 1.375 páginas sem qualquer menção à AP.

“A especulação de que militantes da AP seriam os autores só apareceu no início da década de 1990”. Naquela época, o repórter pernambucano Duda Guenes entrevistou o ex-militante Alípio de Freitas em que ele insinua ter sido responsável pelo atentato. O escritor Jacob Gorender incorporou a informação à segunda edição do seu livro Combate nas Trevas, consolidando a versão. Antes disso, ninguém sabia de alguma ligação entre a AP e a violência política em Pernambuco.

Para Godoy, o Exército passou a concentrar sua atenção na AP em 1973, quando parte da organização decidiu fundir-se ao Partido Comunista do Brasil. Na época, o PCdoB tentava fazer decolar a guerrilha do Araguaia e os militares temiam, não sem razão, que os jovens militantes da organização entrassem na fila para tornar-se guerrilheiros.

Mentira nº 2

Segundo o pesquisador, Bolsonaro tirou da própria cabeça (ou de um dos seus filhos) a versão de que Fernando Santa Cruz foi assassinado pelos próprios companheiros. Antes deles, nenhum outro militar levantou essa hipótese. Nem mesmo seu querido coronel Ustra.

No livro A verdade sufocada escrito por Ustra, usado como referência pelo presidente da República, não há qualquer menção a esse respeito.

Mais: nas 925 páginas do Orvil – projeto do Exército mantido em segredo por mais de duas décadas para contar a versão dos militares sobre a luta armada – não há qualquer alusão ao justiçamento de Fernando Santa Cruz por parte da AP. Justiçamento era o nome dado às execuções de traidores por parte das organizações de esquerda.

“O Orvil tem um capítulo todo dedicado aos justiçamentos. São uns 30 casos. E nada sobre Fernando Santa Cruz. Você acha que o general Agnaldo Del Nero Augusto, um dos coordenadores do projeto, iria deixar passar isso? Del Nero não falou disso nem em seu próprio livro, A grande mentira, afirma Marcelo Godoy.

Para Godoy, quando Bolsonaro diz “De onde eu obtive essas informações? Com quem eu conversei na época, ora bolas. Conversava com muita gente, estive na fronteira…”, está inventando mais uma mentira para justificar a mentira anterior. “Essa informação simplesmente não existia entre os militares nos anos em que o atual presidente serviu ao Exército”.

O Exército matou Fernando Santa Cruz

IvandaSilveiraSerpaNão vieram dos “comunistas” as informações que levaram ao reconhecimento da morte de Fernando Santa Cruz pelo Estado brasileiro. O caso só voltou à tona em 1993, quando o então ministro da Marinha no governo Itamar Franco, almirante Ivan Serpa, enviou ao ministro da Justiça um oficio informando que havia nos arquivos do Centro de Informações da Marinha (Cenimar) documentos registrando que Fernando Santa Cruz havia sido preso em 23 de fevereiro de 1974. Serpa, falecido em 2011, entra na saga da família Santa Cruz graças à sua responsabilidade e respeito às funções que ocupava.

Depois, foram encontrados outros documentos no Dops de São Paulo e do Centro de Informações da Aeronáutica com a mesma informação. A informação teria sido compartilhada para os três órgãos pelo Centro de Informações do Exército (CIE).

Entrevistado dezenas de vezes por Godoy, o sargento Marival Chaves, ex-agente do Doi-Codi, contou que Santa Cruz foi morto numa operação do CIE do II Exército comandada pelos oficiais José Brant Teixeira e Paulo Malhães.

A ação militar do Exército contra a AP teria começado em setembro de 1973, com a prisão do ex-deputado paulista Paulo Stuart Wright, e concluída seis meses depois, com as prisões realizadas no Rio de Janeiro. “Tenho documentos militares e centenas de horas de gravações onde agentes da repressão confirmam as ações do Exército contra a AP. Já com Bolsonaro é tudo a base de ‘la garantia soy yo’.”

AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.