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“Eu danço porque eu preciso gritar”

Marco Zero Conteúdo / 27/08/2019

Crédito: Filipe Gondim

Por Chico Ludermir, com a colaboração de Mia Aragão*

Do Alto Santa Terezinha, Rebeca Gondim dança para o mundo. Entrecruzando elementos da performance, do audiovisual, do frevo e da poesia oral, a multiartista de 25 anos tem produzido espetáculos, vídeos, intervenções em diversos projetos solo ou dentro dos coletivos Encruzilhada e Rua das Vadias, que compõe. Um elemento central atravessa a inteireza da sua obra (de Terezinha a Urtiga, passando por Na Malandragem do Feminino): as periferias – em movimentos, sons, sentimentos, palavras e temas; desde as potências daquilo que está na marginalidade e invisibilidade àquilo que é perseguido, estigmatizado, diminuído. O corpo malandro, embriagado da rua, a dança operária daquelxs que constroem, também com seus corpos, o Brasil.

“Eu cresci escutando que essas pessoas não sabiam dançar… e toda minha vida eu vi essas pessoas dançando”, afirma Rebeca, nessa entrevista concedida a Chico Ludermir que inaugura a parceria do Programa Entre, da Rádio Universitária Paulo Freire, com a Marco Zero Conteúdo. “É uma questão de legitimidade”, defende. E essa defesa vem tanto com seu discurso crítico e consistente quanto com seu corpo, que dança para abrir espaço para ela e para os seus.

Rebeca traz consigo uma ambiguidade intrigante: quando fala com sua voz suave, é mansa, doce até, mesmo que as palavras que saiam sejam cortantes; quando está em cena é bomba de força e revolta, em movimentos fluidos e entrega visceral. Como ela mesma diz, a dança é seu lugar para explodir inquietações; é espaço para tensionar as desigualdades que atravessam os corpos de maneira estrutural – gênero, sexualidade, raça, classe. Provocada a pensar porque dança, ela, que é mulher, lésbica e moradora de favela, não titubeia. “Eu danço hoje pra existir. Pra lutar pelas que vieram antes e pelos que vão vir. Eu danço porque eu preciso gritar”.

Rebeca Gondim_ (3)

Crédito: Filipe Gondim

Rebeca, queria começar com uma provocação: por que você dança?
A dança apareceu pra mim por conta da minha hiperatividade. Eu era uma criança extremamente hiperativa. Eu estava numa dentista um dia e uma mulher olhou pra minha mãe e disse: “Coloca essa menina no frevo que ela tá precisando gastar energia”. E não poderia ser outro lugar… é nele em que me encontro. E nesse lugar, talvez essa pergunta faça mais sentido. A dança é onde eu explodo minhas inquietações… as desigualdades que atravessam meu corpo, as questões de gênero, de raça, classe que atravessam meu corpo. Eu danço porque eu preciso gritar. Eu preciso explodir. Eu preciso abrir caminhos, assim como outros que vieram antes (fizeram). Com o frevo, eu faço isso porque ele já é isso. Meu corpo, ele tá nesse lugar apenas sendo mais um instrumento desse disfarce que é sobreviver nessa sociedade. É disfarçar e abrir caminho ao mesmo tempo. É dar pernada de frente e abrir alas e seguir nessa munganga, nessa capoeiragem, criando sempre quilombos e barricadas. Eu danço hoje pra existir. Pra lutar pelas que vieram antes e pelos que vão vir.

Eu tive a oportunidade de assistir ao seu espetáculo Terezinha três vezes. A primeira, na ocupação do Centro de Artes e Comunicação, em 2016 – em um momento em que as escolas eram ocupadas, as universidades eram ocupadas no contexto da aprovação da PEC de congelamento dos gastos da educação e saúde por 20 anos. A segunda, foi no espaço do coletivo Lugar Comum, na Rua Capitão Lima, no evento “Ocupando a Casa”. A terceira foi na escola Arco-íris da Várzea, onde eu ensinava, para crianças e pré-adolescentes. Pareceram três espetáculo diferentes. Sobre esse espetáculo, queria que tu contasse de onde ele nasce, mas também o que ele é pra você. O que Terezinha te traz e no que esse espetáculo te transforma?
Terezinha é uma performance de dança que surgiu em uma disciplina do curso de graduação em licenciatura em dança, na Federal (UFPE). A professora Francini Barros foi instigadora dessa trabalho que, na verdade, foi um trabalho coletivo. Ela (Francini) nos instigou com algumas perguntas: “como você ama?”, “que evento te tira o chão”, “qual a cor que te move?” “qual o cheiro que te move?” No momento em que eu estava construindo esse trabalho, eu soube da notícia da mãe Maria Terezinha de Jesus, moradora do Morro do Alemão, que tinha acabado de perder seu filho, Eduardo, na frente de casa. Ele estava brincando de boneco e a polícia passou atirando e ele ficou estirado no chão. Isso me marcou muito. É mais uma mãe das periferias do Brasil que perde seu filho. Nesse momento, eu acho que todo periférico e toda periférica sente muita dor. São assuntos que me atravessam com muita facilidade. Esse foi o centro da discussão de Terezinha: o genocídio da juventude negra. E tem uma fala de Terezinha que ficou muito marcada – e que eu falo no meio da performance – que é “meu filho só queria ser bombeiro. Ele não queria ser mais nada. Era uma criança na frente de casa com um monte de sonho pela frente, uma vida pra ser planejada e a polícia vem e arranca a vida dele e arranca a minha com isso”.

Terezinha são essas dores. Essas nossas vidas que são arrancadas toda hora. A cada esquina, a cada sinal, a cada batida policial; a cada baculejo, a cada passinho que não pode ser dançado porque é um grupo de negros que está se reunindo pra dançar. Terezinha fala sobre tudo isso… E aí eu falo sobre o zigue-zague dos nossos corpos, a malemolência dos nossos corpos, desses corpos que precisam sobreviver, que é esse frevo, que é essa capoeira, que é essa macumba. O sobe desce da ladeira… eu também falo disso: “Quatro horas da manhã, acordado pra pegar ônibus lotado e ir por trabalho, ir pra fábrica, ir pra casa de pessoas em Boa Viagem, em lugares que a gente trabalha limpando o chão, varrendo casa…” Terezinha fala sobre esse cotidiano, que faz parte da minha vida. Eu, como negra clara, não vivi na pele batida policial. Não tive, felizmente – e nem sei se eu posso falar isso – alguém da família morto pela polícia. Mas vi meus amigos, amigos do meu irmão e meu irmão também, porque é pichador… enfim… todas essas dores e coragens. Porque se a gente tá aqui hoje, meu pirraia, é porque é muita coragem. E é por isso que eu acabo Terezinha recitando a poesia de Pedro Bomba que é “amor coragem”. “Coragens, meu amores, coragem”. É preciso o tempo inteiro. E a gente sabe sobre isso. A gente não fala sobre isso em vão. Se a gente diz que vai estar na linha de frente, vai estar. Porque não tem outra oportunidade. E Terezinha também traz esse espírito: de barricada, de canhão. De arma. E é por isso que eu falo que minha dança é uma arma e tudo que eu for fazer, espero, – porque daqui pra frente só quem sabe são os dias mesmo – estar caminhando sempre nesse lugar. Sabendo que lugar eu piso, sabe? De onde eu vim e de quem eu quero estar ao lado. Acho que Terezinha traz esse espírito.

Nos trabalhos do Encruzilhada, esse projeto coletivo que já conta com uma série de videodanças e vídeoperformances, a mistura da poesia com dança – já presente em Terezinha – se potencializa mediada pelo audiovisual. É a poesia enquanto dança e a voz enquanto parte do corpo. Seja no Alto Santa Terezinha seja em Brasília, vocês sempre mantêm um tom crítico, por vezes agressivo… O primeiro vídeo que vocês lançaram, o Alvos Móveis parece uma investigação genealógica de uma dança que nasce do corpo operário… Eu queria te ouvir falar do “Encruzilhada”. De onde ele nasce, o que ele propõe, pra onde ele vai e pra onde ele já está indo…
O Encruzilhada é formado por Priscila Melo, na fotografia, Felipe Gondim, que é também fotógrafo e artista visual-pichador

Que é teu irmão?
Que é meu irmão. E eu, que pego a parte mais performática do babado… a parte mais de movimento e da imagem corporal. A nossa pesquisa inicialmente era pra discutir corpos e espaços periféricos através do audiovisual. Somos os três de periferia e a gente queria levantar essas questões de como esses corpos se movimentam da periferia pro centro e do centro pra periferia. Queríamos também deslocar o holofote do centro e trazer para periferia. É massa quando tu fala isso, como tu observa essa dança do cotidiano e o diálogo entre arte e vida o tempo inteiro. Isso parte muito da dança negra. A dança negra é esse corpo que surge do trabalho. O cavalo marinho é isso, o coco é isso… se você pegar a origem histórica dessas danças todas estão ligadas a um trabalho.

Maracatu rural…
O próprio frevo também; a capoeira também. São esses disfarces, né? Essas formas de respirar pra poder continuar vivendo. E o ColetivoEncruzilhada também traz esse espírito de capoeiragem, de malandragem. E a pesquisa do corpo desses vídeos também parte da observação do cotidiano dessas pessoas… dos trabalhadores e trabalhadoras informais, dos moradores das nossas comunidades e tal… porque, inclusive, eu cresci escutando que essas pessoas não sabiam dançar e toda minha vida eu vi essas pessoas dançando. Minha inquietação na dança também parte disso: “como assim… eu vi todo mundo dançando toda hora e todo mundo diz que não sabe dançar”. É dança, mas é uma dança que não é legitimada pela sociedade. Uma dança negra, uma dança periférica. E aí minha vontade de pesquisar é para isso: legitimar esse corpo. E de me legitimar também. Porque eu tive que me pesquisar pra entender que eu sei dançar também. Que eu não tenho que entrar dentro da caixinha do balé clássico, da dança contemporânea branca europeia, tá ligado? Que minha dança veio do samba, da munganga. Veio do pagode, veio do brega. Que eu tenho outro corpo que não é esse estereotipado branco que me foi apresentado enquanto mulher inclusive…

E abrindo esse espaço pra tu, tu abre junto pra outro grupo de pessoas que podem dançar também.
Isso. E dizer assim: “eu sei dançar”. E a partir daqui eu posso pesquisar qualquer coisa. Dançando passinho, eu posso pesquisar sobre qualquer tema, discutir qualquer coisa. Porque as informações estão aqui. Meu corpo diz, meu corpo fala toda hora. A minha voz que não é legitimada pelo Estado, pela hegemonia branca.

Uma coisa que se torna característica dos vídeos do Encruzilhada é a relação com a câmera, a forma de filmar. Grande parte dos vídeos tem um primeiríssimo plano, um super-close no teu rosto, em que tu quase cospe na cara de quem tá te vendo e escutando. Isso me parece muito próprio desse projeto: uma interlocução direta com quem tá assistindo. Um afrontamento, um confronto…
Isso: esse trabalho é Urtiga. Urtiga também nasce de um evento, que é o assassinato de Marielle Franco. A gente se juntou e fez: “Véi, a gente precisa fazer alguma coisa. Não é possível assim, tá ligado?” E a gente se juntou num terreno baldio no Alto do Pascoal e eu comecei a dançar, Priscila começou a filmar e as coisas foram surgindo no improviso. Com essa revolta e com essa tristeza também… E os nossos trabalhos são atravessados por isso o tempo todo. Porque a gente fala desse cotidiano de onde a gente vem, o chão que a gente pisa, que a gente filma, que a gente dança, que a gente picha e tudo de forma muito improvisada, assim como são as danças negras.

Urtiga foi aprovado pelo Funcultura…
Felizmente fui aprovada no Funcultura. A gente está ocupando esse espaço que é nosso. Um edital público. Seria bom que todas as pessoas soubessem disso, que o edital é publico. Eu tive muita ajuda e consegui aprovar esse projeto. Ele é a continuação de algo que eu já estava estudando. Estou com pessoas muito especiais junto comigo. O projeto parte do que foi Terezinha. É um aprofundamento no tema do combate ao genocídio do povo negro e de periferia. Eu quero ir mais fundo nas histórias dessas mães que perdem seus filhos na favela seja por tiro, pros presídios… Eu quero alargar isso. Eu quero falar das mães que perderam seus filhos na ditadura militar, que estavam à procura dos seus filhos até há pouco… algumas morreram sem saber o paradeiro dos filhos.

A mãe de Fernando Santa Cruz, desaparecido politico, Dona Elzita, morreu recentemente sem saber exatamente o que houve com seu filho no período da ditadura militar. Uma figura bem importante nessa narrativa e nessa luta…
Exatamente! Como a mãe de Mário (Andrade) do Ibura, Joelma. Mães que morreram de depressão por terem seus filhos assassinados. Investigar esses corpos. As que estão vivas – será que estão mesmo vivas? – e as que já se foram. Urtiga é o prolongamento dessa pesquisa.

Tu falou de Marielle, aí eu lembrei que um dos projetos que vocês fizeram no coletivo Rua das Vadias, chamado Azul, é baseado em um texto de Marielle e nas questões de identidades e performances de gênero. Aproveito pra te perguntar sobre esse grupo e todo o debate de sexualidade e gênero que ele traz consigo – controle x autonomia dos corpos, desconstruções de gênero e padrões…
O Rua das Vadias é composto por mulheres. A gente discute gênero, sexualidade através da dança e da performance. Discutimos que estereótipos estão sendo colocados pra gente e levamos isso pra rua. A gente está querendo discutir isso com as mulheres que passam no nosso lado, que vivem isso cotidianamente nas paradas de ônibus, no metrô, nas esquinas… todas as nossas ações performáticas são feitas na rua. Em Água Dura, por exemplo, em que a gente fala um pouco sobre as mulheres do cavalo-marinho, mas também sobre as mulheres que trabalham lavando roupa, todas podem bater pano no chão, se revoltar. É massa porque não fica só na gente. As mulheres entram e assumem a revolta que têm em si. É foda. Elas param e começam a bater a roupa no chão, com sangue no olho.

Você falou que é passista de frevo desde os 12 anos e, quando eu perguntei como você se definia, ser passista apareceu como uma das tuas identidades. Atualmente você começou a dar aula de frevo – em diálogo com as linguagens da periferia. Me fala desse teu lugar de professora que se liga com esse teu lugar de passista.
Tive muitas questões e problemáticas dentro do frevo. Por um estereótipo que me foi apresentado de delicadeza, graciosidade e sensualidade, que fugia do que eu era. Por muito tempo, eu seguia esse estereótipo com muitas dores e desconforto. A partir do meu encontro com Daniela Santos, no Paço do frevo, eu comecei a construir um solo chamado Na Malandragem do Feminino que discute esses padrões dentro do frevo. O que é a mulher dançando frevo? O que é um homem dançando frevo? Porque é que a mulher dança desse jeito? Por que é que não existem outras possibilidades de se dançar frevo, tá ligado? E aí a partir desse solo eu comecei a explodir. Ela trouxe várias questões, Daniela, que me fizeram ir para outro lugar. Passei a enxergar o frevo de outras formas. Existem outras pessoas pesquisando esses outros frevos que é esse frevo da rua, o frevo do maloqueiro, que tá na esquina; o frevo do bebo, daquela galera que não tá no palco. É o frevo que você olha pro lado e a galera tá fazendo…

E é quem criou o frevo…
Exatamente. É o frevo negro. É um frevo dos trabalhadores e trabalhadoras…

O grupo Guerreiros do Passo tem feito essa pesquisa. Eu me lembro também de um espetáculo de Iara Sales, o Peba, que incorpora essa tiração de onda. Tem ainda o Faz Que Vai, de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca que é experimentando com esses outros corpos…
Com Edson Vogue. Dale!

Uma galera que tá experimentando o frevo na rua… Essa última pergunta é uma pergunta que eu faço a todos os meus entrevistados e entrevistadas que é “quem você acha que precisa entrar?” O programa se chama entre porque a gente tá construindo relações entre nós dois, entre nós e quem vai ler, mas também é um imperativo. Entre! É abrir espaço, é ocupar espaço, que é o que você tem feito. Ocupado e aberto espaço pra outras pessoas ocuparem junto com você. É essa também a nossa proposta. Pensando nisso, queria que você me respondesse: no nosso mundo é hora de quem – sujeitos, grupos, discursos, corpos – entrar? Quem precisa entrar?
Eu acho que os negros e as negras precisam entrar. Eu acho que os periféricos e periféricas precisam entrar. A gente segue empurrando muro, porta de universidade, mas eu acho que precisa mais. Eu acho que a galera do passinho precisa entrar. Ocupar os teatros – se quiser – mas ter legitimidade, ter grana, incentivo pra isso. É isso, boy. As danças que estão nas margens precisam ser vistas. A galera tá se organizando muito. A galera tá doida. Tá com sangue nos olhos. Tá dançando muito e pra mim é o que tem de mais incrível na dança hoje. É o passinho. Eu acho que a gente tem que ficar de olho nisso. Tem que adentrar.

*Parceria com o Programa Entre, da Rádio Universitária Paulo Freire

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Marco Zero Conteúdo

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