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Investigados em João Pessoa e Natal são parceiros da prefeitura no Recife

Inácio França / 08/09/2015

A popularidade da então prefeita de Natal, Micarla de Sousa, já rastejava em 2012, quando a Polícia Federal jogou a pá-de-cal em seu futuro político: uma operação chamada Assepsia trouxe à luz um amplo esquema de corrupção camuflado de gestão terceirizada dos serviços da saúde. Dois ex-secretários municipais chegaram a ser presos, a própria prefeita responde por seis crimes na Justiça Federal, junto com os empresários envolvidos.

E por que recordar tudo isso aqui?

Porque entre os empresários do esquema estavam Eugênio Pereira Lima Filho e Myriam Elihimas Lima, donos da ITCI Tecnologia e agora são sócios de uma empresa que, há dois anos, também terceiriza serviços de saúde para a prefeitura do Recife.

Eugênio parece levar a sério a nordestinidade. Desde abril do ano passado, ele está sendo investigado pelo Tribunal de Contas da Paraíba, suspeito de fazer parte de um esquema de desvio de dinheiro público do Hospital de Emergência e Trauma de João Pessoa.

Não há crime no fato da administração de uma capital contratar uma empresa ligada a pessoas que lesaram os cofres públicos da administração em outras capitais tão próximas. Coincidências acontecem, mas a história tem tantos detalhes interessantes que merece ser contada.

Não bastassem as relações entre o poder público e a iniciativa serem repletas de meandros legais distantes da rotina de um cidadão comum, quando se trata de gente que ganha a vida encontrando formas de drenar dinheiro público, a coisa complica: os truques e atalhos usados tornam mais difícil a tarefa de quem vai descrevê-los ou traduzi-los. Por isso, para facilitar a compreensão, vamos por partes.

Como despistar os intrometidos

Para começar, voltemos à primeira linha desse texto para relembrar o ano em que o escândalo estourou: 2012. Em 26 de maio, por exemplo, a Justiça começou a ouvir os depoimentos de réus e testemunhas. Duas semanas depois, os jornais potiguares registram que a prefeita Micarla caiu no choro ao ser interrogada. No dia 5 de junho daquele mesmo ano, os sócios formalizavam a alteração contratual da empresa Mais Vida Serviços de Saúde. É preciso procurar com atenção para encontrar o nome de Myriam Elihimas Lima nesse documento. Ela, na verdade, é a “representante legal” da Êxito Gestão de Participações Societárias, pessoa jurídica dona de 1/3 da Mais Vida.

Essa, na verdade, foi a segunda alteração contratual. A primeira foi em fevereiro de 2012, quando um pequena empresa de informática foi comprada e se transformou em Mais Vida, com a infalível Myriam Elihimas como representante da Êxito, uma das compradoras. Pouco mais de um ano depois, a jovem empresa Mais Vida já conquistava um contrato por inexigibilidade, ou seja, sem licitação, no início do mandato de Geraldo Júlio.

Na terceira alteração de contrato, eis quem aparece como sócio da Êxito: Eugênio Pereira Lima Filho. Ou seja, os nomes dos envolvidos no esquema de corrupção em Natal aparecem, na verdade, bem escondidos sob a pessoa jurídica Êxito e ao lado de outros sócios que nada tem a ver com o escândalo de 2012.

IMG-20150907-WA0000Só para não deixar passar uma minúcia: o endereço da Êxito é rua do Apolo, 161, Térreo, Caixa Postal 31, exatamente o mesmo da ITCI Tecnologia, que ficou amaldiçoada pela Operação Assepsia, suja demais para figurar em qualquer contrato ou licitação. Ali, funcionava um escritório virtual, mas hoje o prédio está vazio, como mostra a foto com a placa de Aluga-se.

Como se manter em alta depois do escândalo

Do indiciamento por crimes como peculato (desvio de dinheiro público por funcionário público ou por quem o administra), formação de quadrilha e falsidade ideológica a um novo contrato de prestação de serviços para a prefeitura do Recife não demorou muito. Um ano e três meses, para ser mais exato.

Como a dupla aproximou-se da equipe da secretaria de Saúde do Recife, não sabemos. Por meio de licitação não foi, já que a contratação da Mais Vida se deu por inexigibilidade. O contrato inicial, datado de 22 de outubro de 2013, foi de R$ 708 mil para alugar ambulâncias por seis meses ou enquanto o processo de licitatório não chegasse ao fim.

A licitação 040/2013 transcorreu dentro do prazo previsto. E quem ganhou? A Mais Vida. A empresa abocanhou em 4 de março de 2014 um contrato de R$ 2,5 milhões. Logo depois, Eugênio Pereira Lima Filho aparece como sócio da Mais Vida ao lado de André Luiz Leitão. Myriam seguiu como representante legal.

A leitura do Diário Oficial de um mês atrás, dia 8 de agosto de 2015, faz supor que o pessoal da secretaria de Saúde está satisfeito com os serviços empresa. O contrato foi aditado por mais um ano, desta vez no valor de R$ 1 milhão e 750 mil, pois o número de ambulâncias foi reduzido. Essa redução na quantidade de veículos não deverá atrapalhar a vida de ninguém, pois, na mesma semana, a Mais Vida faturou mais uma: venceu o pregão eletrônico para mais um contrato de aluguel de ambulâncias no valor de R$ 1 milhão e 450 mil. Faça as contas: a brincadeira já vai em quase R$ 6,5 milhões.

A posição da prefeitura

Na quinta-feira, 3 de setembro, entramos em contato com a gerência-geral de Relações com a Imprensa da prefeitura do Recife e enviamos e-mail com algumas perguntas sobre o caso. Como até às 8h de terça, dia 8, foi enviado novo e-mail informando que o material seria publicado e que, se a versão da administração municipal for enviada, seria publicada.

Eis o e-mail enviado para a prefeitura:

Os empresários da ICTI, Eugênio Pereira Lima Filho e Myriam Elihimas Lima, estão respondendo na Justiça do Rio Grande do Norte por cinco crimes, incluindo formação de quadrilha, desvio de dinheiro, falsidade ideológica. O contrato deles era para terceirização de serviços na área de Saúde.
A ex-prefeita Micarla Souza responde por seis crimes, pois há indícios de que ela recebeu dinheiro diretamente. Depois, ela nem teve forças políticas para tentar a reeleição. Dois secretários municipais chegaram ser presos, o de Saúde e o de Finanças.

Pois bem, enquanto o escândalo rolava em Natal, a dupla Eugênio Pereira Lima Filho e Myriam Elihimas Lima montaram outra empresa, a Êxito, no mesmo endereço da anterior. Essa empresa é sócia da Mais Vida Serviços de Saúde, que tem contrato desde 2013 com a prefeitura (depois do contrato inicial por inexigibilidade venceram duas licitações) para alugar ambulâncias para a secretaria de Saúde. Os dois são os responsáveis pela sociedade da Mais Vida junto com André Leitão Filho.

Daí, tenho 3 perguntas:

1) Qual a razão do primeiro contrato de aluguel de ambulâncias ter sido feito por inexigibilidade com uma empresa criada há apenas um ano?

2) O secretário de Saúde ou alguém de sua equipe tinha conhecimento da presença de Eugênio Pereira Lima Filho e Myriam Elihimas Lima na composição societária da empresa contratada?

3) Se tinham, o secretário de Saúde ou alguém de sua equipe sabiam do envolvimento deles com crimes que lesaram o patrimônio público?

4) Qual postura que a PCR irá assumir?

Como funcionava o esquema em Natal

O processo 0135229-77.2012.8.20.0001, da 7ª Vara Criminal da Justiça do Rio Grande do Norte – só depois, o caso foi para a jurisdição da Justiça Federal – conta algo curioso: a ITCI, uma empresa de tecnologia e de informática, foi contratada pela prefeitura da Cidade do Sol para tocar as ações do projeto ‘Natal contra a dengue’. Se nós não entendemos o que uma coisa tem a ver com a outra, imagine como ficaram curiosos os policiais federais e os promotores.

Talvez os investigadores não tenham matado essa curiosidade, mas encontraram coisas muito mais interessantes. O contrato entre a ITCI e a prefeitura durou meros 90 dias, mas custou mais de R$ 8 milhões ao bolso dos natalenses.

A prestação de contas apresentada pela ITCI para a prefeitura, por exemplo , foi considerada pelos promotores “uma peça de ficção”. Eis alguns itens detalhados no processo:

• Não há um só documento que comprove a contratação dos agentes de endemias por R$ 192,5 mil.

• No contrato do médico Ricardo José de Oliveira e Silva, assinado em 13 de abril de 2011, a remuneração foi escrita assim: R$ 15.000,00 (seis mil e duzentos reais). Mais tarde o próprio Ricardo disse que não tinha nenhum contrato formal com a ITCI.

• Há um contrato com a Delta Sistemas e Métodos, empresa do Piauí, no valor de R$ 257 mil. O problema é que essa empresa pertence a um diretor da própria ITCI.

• A ITCI pagou R$ 6,5 mil por um kit hidratação vendido pela mãe do representante da própria empresa em Natal. Depois que o sigilo bancário foi quebrado, que o valor depositado na conta da mãe do rapaz foi bem menor.

• A ITCI diz ter pago R$ 597 mil à empresa Tefe Serviços de Saúde por aluguel de vans e um call center que sequer existiam.

Naquele ano, foram registrados mais de 6 mil casos de dengue na capital do Rio Grande do Norte, dos quais 366 foram considerados muito graves. Uma pessoa morreu.

Um pouco sobre o escândalo na Paraíba

A terceirização da gestão do Hospital de Trauma de João Pessoa, principal hospital público da capital paraibana, também está em xeque.

Lá, Eugênio Pereira Lima Filho apareceu ligado à outra empresa, a UpGrade, contratada pela Organização Social Cruz Vermelha, gestora terceirizada do hospital, para implantar um software de gestão hospitalar. O contrato era de R$ 691 mil, mas a empresa recebeu R$ 1,1 milhão.

A auditoria do TCE paraibano revela nomes e procedimentos que você leu alguns parágrafos acima: a UpGrade tem como sócios Eugênio e, isto mesmo, a Êxito. No endereço informado à Receita Federal não funciona empresa alguma, só existe uma casa vazia, segundo os auditores.

A empresa de Eugênio assumiu, em seguida, o controle de estoque de medicamentos e próteses do hospital. O TCE, então, constatou novas irregularidades. A mais comum: compras feitas e pagas, referentes a mercadorias que nunca chegaram a ser entregues. Só aí foram mais de R$ 4 milhões de gastos sem comprovação.

Confira os documentos que comprovam as denúncias desta reportagem:

Compromisso com a transparência

As mais de 700 páginas xerocadas que relatam o envolvimento da dupla de empresários com o escândalo em Natal e sua ligação com uma empresa contratada pela Prefeitura do Recife não caíram do céu, tampouco recebemos uma ligação misteriosa fornecendo algumas pistas que nos colocaram numa investigação cinematográfica. Nada disso, aliás esse tipo de coisa raramente acontece no Brasil, por mais que jornalistas gostem de posar como super-heróis.

O material nos foi oferecido pela vereadora Marília Arraes. Aceitamos a oferta, mas condicionamos a publicação à checagem das informações. Saímos em campo  e mergulhamos na web para conferir tudo. Com os dados confirmados, informamos à assessoria da parlamentar que a matéria seria publicada hoje. A vereadora irá dar entrada, nos próximos dias, em pedidos para que o relacionamento entre a Mais Vida e a prefeitura seja investigado pelos Tribunais de Contas do Estado e da União – afinal, os recursos usados foram repassados pela União -, e também pelos Ministérios Públicos de Pernambuco e Federal.

AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.