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Jorge Furtado: “Agora, mais do que nunca, precisamos de um jornalismo comprometido com a verdade”.

Laércio Portela / 16/12/2016

Um quadro milionário de Picasso esquecido na parede de uma salinha na sede do INSS em Brasília, um objeto perfuro-contundente arremesado contra o candidato tucano a presidente José Serra na campanha de 2010, o impeachment constitucional da presidenta Dilma Rousseff. Ou seriam um pôster sem valor, uma bolinha de papel e um golpe parlamentar? “Que notícias apareçam já no título, aos senhores nenhuma novidade. Parecendo real, nada é verdade”.

A frase em aspas acima abre a peça teatral O Mercado de Notícias, do inglês Ben Jonson, encenada pela primeira vez no longínquo ano de 1626, em Londres. A sua atualidade e contundência inspiraram o cineasta gaúcho Jorge Furtado a escrever e dirigir um documentário lançado em 2014 – de mesmo nome – que, viajando 400 anos no tempo, da Inglaterra elizabetana até o então Brasil petista, faz uma reflexão profunda sobre o jornalismo praticado em nosso país.

“A minha ideia era valorizar o jornalista. Senti que havia uma visão de que o jornalismo não era mais necessário. Que com a internet, o facebook, o jornalismo estava sendo questionado, não precisava mais de diploma”, explica Furtado, em entrevista concedida à reportagem da Marco Zero Conteúdo. “Os jornais se encheram de opinadores, cronistas, colunistas, mas o jornalismo mesmo, a reportagem, começou a se desvalorizar”.


Furtado começou a trabalhar no roteiro do documentário em 2006. O primeiro passo foi traduzir, com a ajuda da professora Liziane Kugland, a peça de Ben Jonson para o português. O documentário mistura realidade e ficção. Intercala entrevistas de jornalistas consagrados – e que Furtado admira – com a encenação de trechos do texto do autor inglês. São discutidos temas como Poder, relacionamento com as fontes, o negócio por trás do jornalismo, os erros cometidos e ocultados pelas empresas de comunicação.

“Na hora em que se desvalorizava a atividade de jornalista, eu pensei que o momento pedia justamente o oposto. Com essa proliferação de mídias, a gente precisa agora, mais do que nunca, do profissional do jornalismo comprometido com a verdade. Diferente dos diletantes do facebook e das redes sociais que não têm o compromisso com o que disseram ontem e nem o de checar as fontes das notícias que publicam”, avalia Furtado.

O deserto da autocrítica

As análises e reflexões de jornalistas como Luis Nassif, Mino Carta, Bob Fernandes, Maurício Dias, Paulo Moreira Leite e Geneton Moraes Neto, entre outros, são fundamentais para entender os caminhos e os descaminhos que o jornalismo seguiu no Brasil recente, especialmente após a ascensão do PT à Presidência da República em 2003. O documentário é uma ilha fértil no mar de silêncio em que os veículos da grande mídia brasileira se escondem da autocrítica.

A autocrítica, aliás, é uma palavra que praticamente inexiste no dicionário do jornalismo brasileiro. Dos mais de 500 jornais de circulação regular no pais, apenas dois possuem a figura do ombundsman. Não é à toa que a seção Erramos fica escondida em letras miúdas no pé de página de jornais e revistas e que, no principal telejornal da TV brasileira, o apresentador só abra a boca para pedir desculpas ao telespectador quando erra o nome ou o cargo de um entrevistado.

“A gente conhece os fatos pela imprensa. A imprensa então é um dos poderes da democracia. Se a imprensa toma partido, como ela tomou desde a eleição do Lula, a imprensa majoritária, os grandes veículos tomaram partido, aí fica desequilibrado o jogo da democracia porque uma denúncia contra o Serra desaparece e uma contra o Lula ganha manchete. E aí a gente não sabe mais o que é verdade e o que não é. Fica tudo desequilibrado”, argumenta o cineasta.

Uma farsa burlesca: a bolinha de papel de Serra

O Mercado de Notícias, de Furtado, esmiúça o caso da bolinha de papel atirada na cabeça do candidato José Serra num evento de rua da campanha de 2010. Utilizando apenas imagens disponíveis nas redes sociais (e solenimente ignoradas pelos grandes veículos de mídia), Furtado destrói de forma avassaladora e retumbante a tese de que o candidato foi atingido por um objeto perfuro-contundente, como foi noticiado em matéria de mais de 10 minutos no Jornal Nacional da época.

O documentário de Jorge Furtado desvenda com clareza a farsa burlesca do "objeto perfuro-contundente" que teria atingido José Serra na campanha de 2010.

O documentário de Jorge Furtado desvenda com clareza a farsa burlesca do “objeto perfuro-contundente” que teria atingido José Serra na campanha de 2010.

O estaparfúdio episódio, noticiado com destaque em 2004 pela Folha de São Paulo, de um quadro milionário de Picasso exposto na parede (ao lado de uma foto do presidente Lula) de uma salinha do prédio sede do INSS, em Brasília, também é desconstruído. Não passava de um pôster em preto e branco de 30 centímetros, enquanto o quadro verdadeiro, colorido e de 1 metro de altura, descansava em berço esplêndido numa exposição no Museu Guggenheim, em Nova Iorque.

Furtado chega a acionar o ombudsman da Folha para falar do erro absurdo. O ombudsman agradece e diz que vai encaminhar a reclamação. Dois anos depois, pasmem, o prédio do INSS pega fogo e a Folha faz matéria de capa falando do esforço dos bombeiros para salvar o quadro milionário de Picasso. Quadro que, segundo a Folha, foi dado por um colecionador para o INSS como pagamento de uma dívida. Uma fraude. Essa era a reportagem a ser feita. Mas o jornal paulista ignorou os alertas e vendeu por duas vezes um estelionato por verdade absoluta para seus milhares de leitores.

De Gutenberg a Zuckerberg

Moldura para a reflexão sobre o jornalismo, a peça escrita por Ben Jonson se passa em um único dia, na data do aniversário de 21 anos de Pila Júnior. O pai dele, um nobre riquíssimo, finge estar morto e se passa por mendigo. Ele quer ver como o filho vai se comportar com toda a fortuna em suas mãos. E tudo acontece no momento da chegada à cidade de uma novidade, uma tal de agência de notícias (“ordinárias e extraordinárias”), que cativa a atenção e os interesses escusos do jovem milionário.

Dinheiro, poder e informação dominam a cena no palco do século XVII, com a recém invenção da imprensa por Gutenberg e a disseminação alucinada de informações, como acontece agora, no Brasil do século XXI, com o Facebook de Marc Zuckerberg.

Jorge Furtado no set de filmagem. Texto do século XVII do inglês Ben Jonson serve de gancho para a reflexão sobre o jornalismo moderno praticado no Brasil

Jorge Furtado no set de filmagem. Texto do século XVII do inglês Ben Jonson serve de gancho para a reflexão sobre o jornalismo moderno praticado no Brasil

As redes sociais, no entanto, não parecem para Jorge Furtado um espaço consolidado de contraponto às distorções e partidarismos da grande mídia.

“O espaço dos blogs é fundamental, é importante. Está crescendo, não parou de crescer, mas está mais do que provado que nesses espaços a direita é amplamente majoritária. Semana passada eu vi um estudo sobre isso. Os movimentos racistas, homofóbicos, separatistas e de todo o jeito são muito poderosos na rede. Então a rede como qualquer mídia, ela é a mídia. Quem está lá é que vai determinar seu caráter. Ela não é boa em si. Como o jornal de papel também não era”.

Furtado cursou medicina, jornalismo, psicologia e artes plásticas sem concluir nenhum deles. Optou pela carreira de roteirista, que começou no início dos anos 1980 na TV Educativa, de Porto Alegre. Hoje é um autor e diretor consagrado. O humor e a sagacidade são as marcas do seu texto.

Roteirizou e dirigiu filmes como O Homem que Copiava (2003), Meu Tio Matou um Cara (2004) e Saneamento Basico, o Filme (2007). Também é dele o roteiro de Lisbela e o Prisioneiro (2003), Ó Pai Ó (2008) e a Mulher Invisível (2011). Na TV, foi roteirista da minissérie Memorial de Maria Moura (1994) e da série A Comédia da Vida Privada (1995). Atualmente escreve a série Mister Brau, protagonizada por Lázaro Ramos e Taís Araújo. É o autor principal da minissérie Nada Será Como Antes, que retrata os primeiros anos da TV no Brasil, em exibição neste final de ano na TV Globo.

Debate e master class

Neste sábado (17), o cineasta estará no Recife para participar, às 18h30, de debate sobre o documentário O Mercado de Notícias, após a exibição do filme na Caixa Cultural, no Recife Antigo. O debate contará coma participação da editora da Revista Continente, Adriana Dória, e será mediado por Ângelo Defanti, curador da mostra de filmes de Furtado em exibição desde a terça (13) na própria Caixa. A entrada é gratuita com distribuição de senhas a partir das 17h30.

No domingo, o cineasta vai ministrar uma “master class”, das 14h às 17h, também na Caixa Cultural, para falar sobre sua trajetória profissional, as influências literárias e cinematograficas e o seu processo de criação narrativa. O acesso também é gratuito.

O óbvio ululante que é ignorado

“Eu tenho a esperança, que não é grande, de que as pessoas se dêem conta de que o jornalismo depende dos jornalistas”. A fala de Jânio de Freitas parece óbvia, mas nós vivemos tempos em que até o óbvio pode soar estranho. Um dos entrevistados por Furtado para o documentário, o colunista da Folha de S. Paulo, professa a mesma fé (“que não é grande”) do cineasta na figura do jornalista que apura e publica (ou deveria publicar) a verdade dos fatos.

Uma tarefa complexa em sua simplicidade, como alerta Geneton Moraes Neto: “Contar da maneira mais fiel e atraente o que você viu e ouviu. Acho que poucas profissões comportam uma definição tão simples quanto a do jornalismo”, definiu na estrevista para O Mercado de Notícias o jornalista pernambucano, recém-falecido.

Geneton Moraes Neto desmistifica o fazer jornalístico: saber ver e ouvir e contar tudo de forma atraente para o público

Geneton Moraes Neto desmistifica o fazer jornalístico: saber ver e ouvir e contar tudo de forma atraente para o público

O adesismo conservador nas redações

Um fenômeno tem chamado a atenção dos jornalistas mais experientes: a adesão quase irrestrita dos novos profissionais à linha editorial conservadora dos principais veículos de comunicação do pais, o que tem se tornado ainda mais visível em tempos de Operação Lava Jato e sua “caçada” aos corruptos, e de desconstrução dos direitos sociais conquistados na última década.

“Todo mundo passa a querer agradar o dono. Todo mundo passa a trabalhar no sentido de que eu vou me dar bem”, critica Paulo Moreira Leite, colunista do site Brasil 247 e autor do livro A Outra História da Lava Jato (Geração Editorial, 2016), segundo lugar na categoria Reportagem do Prêmio Jabuti 2016.

“E pior. Novas gerações de jornalistas que não têm anticorpos acham que o dono quer. A pessoa acha que o dono quer, vai lá e faz. Às vezes os caras são mais realistas do que o rei. Enão fazem sem que ninguém precise mandar fazer”, emenda Bob Fernandes, no documentário.

Para Leandro Fortes, o jornalismo praticado pela grande mídia está partidarizado. "A matéria é decidida dentro da redação. O repórter vai para a rua apenas buscar as aspas"

Para Leandro Fortes, o jornalismo praticado pelos grandes grupos de mídia no Brasil está partidarizado: “As matérias são decididas na redação. O repórter vai para a rua apenas para buscar aspas”

Jornalismo partidário

O jornalista Leandro Fortes deixa claro que muitas das matérias políticas e econômicas que ganham ampla repercussão na mídia são definidas pelos editores sem que precisem passar pelo teste da apuração minuciosa e precisa. “A matéria já sai da redação decidida. O repórter sai da redação para buscar as aspas. E isso é o antijornalismo”.

“A imprensa brasileira se aparelhou nos últimos anos como uma atividade partidária de oposição. Nitidamente, sem máscaras. Para se aparelhar como oposição partidária, necessariamente, esses veículos tiveram que deixar de exercer o jornalismo” argumenta Fortes.

As entrevistas de O Mercado de Notícias são reveladoras dos desafios que o jornalismo brasileiro enfrenta nesses tempos sombrios de crise da democracia (mais do que crise econômica) e ajudam a desmascarar os princípios supostamente intocáveis da profissão: objetividade, equilíbrio e isenção.

O Mercado de Notícias

“Aos jornalistas cabe achar solução para o seu jornalismo”

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 “O jornalista costuma pensar que um jornal é editado para fazer jornalismo, não é não. É editado para publicar publicidade, que é o que dá dinheiro. Os jornalistas não se dão conta de que eles são subalternos nas empresas de imprensa. A função fundamental deles é proporcionar à publicação a tiragem que justifique a venda mais fácil e o melhor preço do espaço publicitário no jornal. Essa realidade é terrível, mas enquanto ela prevalecer, a tendência é que as empresa continuem existindo. Aos jornalistas cabem buscar soluções para seu jornalismo. Não adianta colocar a culpa em causas externas”, Jânio de Freitas

“Não é que a imprensa cobre o poder. Ela é PODER”

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“Os jornalistas não gostam de falar disso, mas imprensa é poder. Não é que ela cobre o poder. Ela é PODER. Você vai atrás de algusn fatos, não vai atrás de outros. Você publica alguns fatos, você não publica outros. Você checa alguns fatos, você não checa outros. O editor que não quer publicar uma notícia e ele não quer dizer que não quer publicar uma notícia, ele diz ‘vamos checar mais uma vez?”. Paulo Moreira Leite

 “No Brasil, liberdade de imprensa é liberdade de os barões midiáticos dizerem o que bem entendem. Verdade factual ou não pouco importa”

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“A mídia brasileira é um partido político, os jornais brasileiros repercutem o que interessa a eles. A verdade factual eles não repercutem se não serve ao raciocínio deles. Não é assim na Inglaterra. Não é assim na Itália. Não é assim na França… No Brasil, liberdade de imprensa é liberdade de os barões midiáticos dizerem o que bem entendem. Verdade factual ou não pouco importa. Isso é a liberdade de imprensa no Brasil”. Mino Carta

O cineasta Jorge Furtado também não minimiza nas criticas quando avalia o quadro político atual do Brasil. “O governo todo (Temer) é ilegitmo. Está mais do que comprovado de que o golpe parlamentar contra a Dilma foi dado por um grupo de pessoas que estava preocupado com o encaminhamento das investigações policiais e tinha a clara intenção e o interesse de barrar a Lava Jato”.

Questionado sobre se a crise política pode inspirar o cinema brasileiro a produzir uma critica mais contundente da realidade, Furtado é enfático: “Eu entendo a pergunta, o sentido da pergunta, mas o que importa é que estamos vivendo uma crise econômica e política séria e ela repercute fortemente nos mais pobres. É isso o que importa. É isso que precisa ser denunciado. Você veja o que vai acontecer com a PEC 55, que congela os gastos sociais por 20 anos. Os mais pobres serão os primeiros afetados”.

E emenda: “É claro que a produção cinematográfica também vai ser afetada. A cultura vai ser afetada. Já está sendo. Se a PEC vai cortar recursos da saúde e da educação, imagine o que vai acontecer com a cultura”

E o vai e vem do Ministério da Cultura? A indicação do pernambucano Roberto Freire?

“O Roberto Freire não tem nenhuma identificação com a área da cultura. Não sabe absolutamente nada sobre o assunto. A entrevista dele ao programa Roda Viva deixou isso claro, muito claro. Ele não entendeu nem qual era a pergunta, não entendeu nem a pergunta. Então é péssimo. É péssimo para a cultura”.

O cenário político é tão devastador que o cineasta não imagina o que vem pela frente em 2017. “Eu não estou vislumbrando absolutamente nada e se alguém disser que está, estará mentindo. Eu não tenho a menor ideia do que vem pela frente. Eu te digo o seguinte, eu me vejo como um otimista. Mas, agora, no momento, eu não tenho esperança de uma mudança imediata. Eu realmente não tenho essa esperança”.

 

 

AUTOR
Foto Laércio Portela
Laércio Portela

Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República