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Monólogo sobre o legado da esquerda recifense

Inácio França / 09/10/2015

0e6e94908cc2f582e3dffb6f9da396f3 (1)A conclusão da série Recife tem dono? poderia ter sido a reportagem de Luiz Carlos Pinto sobre os bastidores das negociações da Vila Naval, em Santo Amaro. Poderia, mas a reação dos leitores ao texto sobre a “privatização” do planejamento urbano nas gestões do PT e do PSB na prefeitura do Recife deixou alguns pontos que precisam de mais discussão.

Dos quatro textos da série, nenhum rendeu tantos debates quanto aquele publicado sob o título “Planejamento urbano privatizado, um legado da esquerda recifense”. Admito: a escolha da referência à privatização ao lado da palavra “esquerda” não foi casual. Foi para incomodar mesmo.

Primeiro porque, do ponto de vista da construção da imagem do Marco Zero Conteúdo, precisávamos deixar bem claro que não estamos a serviço da esquerda partidária e institucional, ao contrário do que parecem dizer os currículos de alguns de nós.

Não foi só isso. Avaliamos que seria saudável provocar um incômodo – ainda que mínimo – à esquerda tradicional por meio de uma crítica elaborada por um viés que lhe fosse caro, oposto ao discurso oportunista e hipócrita da classe média ou dos “esquerdistas arrependidos”. Uma crítica à esquerda.

Este texto pretende travar um diálogo com algumas pessoas, a maioria vinculada aos movimentos sociais, que se sentiram injustamente atingidas com o fato do título atribuir ao campo da esquerda um problema antigo, que jamais poderia ser atribuído aos segmentos progressistas que se recusaram a ser cooptados pelo PT ou pela chamada “Frente Popular”.

É bem verdade que é cômoda e até autoritária minha posição de selecionar os interlocutores com base em seus comentários nas redes sociais e travar, a partir daqui, um monólogo travestido de diálogo. Podemos minimizar isso oferecendo o espaço do Marco Zero Conteúdo para seus próprios artigos de opinião.

Mesmo correndo o risco de agir como manipulador das opiniões alheias, sigo adiante.

Começo citando Edinéia Alcântara, leitora do Marco Zero que compartilhou os textos, acrescentando suas ressalvas:

“…acho importante contextualizar que esse modus operandi de pressão das empreiteiras sobre prefeitos e gestores públicos não é privilégio apenas do Recife (…) Alguns chamam de governança corporativa, outrxs (sic) de cidade mercadoria, outrxs de captura do Estado pelo mercado. Enfim, é um fenômeno global, que está associado à reprodução do capital e se multiplica de forma mais nefasta em cidades e países onde o controle social por parte da sociedade é fraco, onde o poder judiciário também se ajoelha aos interesses do capital.

“Acho reducionista atribuir o que vem acontecendo no Recife apenas aos prefeitos citados, mesmo que a responsabilidade deles seja enorme. Mas ainda mais reducionista atribuir à esquerda e até assumir que esses prefeitos são de esquerda. Somos nós, que somos de esquerda e ainda estamos lutando por um projeto mais inclusivo e que escute a população.

Ao meu ver, a atual gestão não pode ser definida como de esquerda. Portanto, achei o título meio infeliz.”

Edinéia está certa quando se refere que esse fenômeno não se aplica apenas ao Recife. Certíssima, aliás. Sinceramente, lamento não ter incluído tais reflexões no texto original. Não o fiz por incompetência mesmo.

Discordo, contudo, quando ela recusa a assumir que João Paulo e João da Costa não estiveram à frente de gestões de esquerda. Ambos foram eleitos com discursos de esquerda, estrelinhas vermelhas na lapela, com os votos dos eleitores que sempre votaram nos candidatos da esquerda, comandando governos que tinham PCdoB, PSB, e PDT em sua base de sustentação. Insistir no discurso eu-sou-mais-de-esquerda-do-que-ele, soa como um velho vício comum a todos nós, esquerdistas. cada qual mais puro e mais vermelho.

Outra leitora, Nadja Granja Falcone, concorda com alguns dos meus argumentos e com os de Edinéia:

Eu só colocaria umas aspas nessa “esquerda” que você fala para não invalidar quem realmente tem pautas de esquerda. Todos dos partidos silenciaram em relação a essa falta de dialogo com a sociedade..

Continuo Alexandre Ramos, um amigo pessoal que se deu ao trabalho de tecer um longo comentário em uma das postagens que fiz compartilhando o link do Marco Zero. Ele refrescou minha memória ao citar exemplos anteriores da falta de planejamento urbano na cidade:

“Antes dessas gestões citadas ocorreram intervenções pontuais sem qualquer debate:

• Augusto Lucena implantou a Dantas Barreto que liga nada a lugar nenhum.

• Geraldo Magalhães fez o viaduto das Cinco Pontas que comprovadamente é desnecessário, com vários estudos para sua demolição.

• Veio Krause e com ele o estacionamento de Joana Bezerra;

• Joaquim Francisco fez o inútil gradeamento das praças (que finalmente estão sendo retiradas e que surgiram devido um grande estoque de aço de uma empresa de um amigo dele).

• De Jarbas tem o Mercado das Flores (hoje em ruínas), os banquinhos da José Estelita e a “requalificação” do Polo Pina, que funcionava bem até a intervenção da Prefeitura.

• De Bob Magal [Roberto Magalhães para os íntimos] temos o Terminal Marítimo (que não embarcou ninguém e foi substituído pelos bares da galera dos amigos do poder).

• E, finalmente, João Paulo Lima e Silva construiu o inútil Túnel do Pina (que termina num semáforo na Antônio de Góes), a passarela localizada em local errado na Herculano Bandeira (com escadas rolantes e elevadores quebrados como previsto) e o famigerado parque Dona Lindu (a população pedia outra coisa).”

Sem dúvidas, essa listade obras grotescas é uma contribuição valiosa de Alexandre. Talvez no futuro, as maquetes e fotos desses projetos acabem no acervo de um Museu das Inutilidades Caríssimas. Porém, todas elas confirmam – em minha opinião – o foco ou o gancho de meu polêmico texto, afinal todas essas obras nasceram na mente demagógica dos governantes.

Coisas como o Novo Recife, as Torres Gêmeas, os espigões da rua da Aurora e o que se pretende fazer na Vila Naval são projetos de origem privada, originados do interesse imediato de poucas empresas que exigem dos governantes uma postura de vassalos, tendo que se virar para viabilizá-las. Ou seja, os petistas e socialistas (sic) esculhambaram tudo de uma vez.

A melhor contribuição de Alexandre chegou por e-mail: um artigo acadêmico assinado pela doutora em Desenvolvimento Urbano Sandra Marília Maia Nunes. Esse texto detalha tintim por tintim como o projeto de “radicalização democracia” das gestões petistas do Recife virou pó no processo de discussão do novo Plano Diretor. O material é tão rico que mereceria uma publicação só para ele. Se tivesse chegado às minhas mãos, teria deixado a matéria original ainda mais robusta.

Em seu texto, Sandra Marília conta – com apoio de matérias de jornais, atas da Conferência do Plano Diretor e de sessões do Conselho de Desenvolvimento Urbano, além de outros documentos – como João Paulo e seu secretário de Planejamento João da Costa rasgaram ignoraram as contribuições dos movimentos sociais em favor dos interesses do “setor produtivo”, apresentados provavelmente naquelas “negociações fora do espaço de negociação”, para usar as palavras da professora urbanista Amélia Reynaldo. O artigo é o detalhamento e o registro permanente de uma traição.

Uma frase na página 16 reforça minha convicção de que acertamos ao escolher o título: “Este processo não avançou e não há registro de cobranças pelo CDU ou o resto da sociedade.”

Por fim, peço desculpas ao assistente-social Rud Rafael, que me questionou com excelentes argumentos na página do grupo Direitos Urbanos. Numa conversa inbox, me comprometi a concluir a série com uma quinta reportagem, bem apurada para valer, com várias fontes acadêmicas e dos movimentos sociais capazes de apontar detalhadamente como aconteceu o desmonte da estrutura de planejamento urbano da cidade. Não posso pagar a dívida, pelo menos não agora.

Como o Marco Zero ainda não rende um tostão (encarem isso como uma convocação para contribuir. Ou como um pedido de socorro), este escriba que vos fala precisou a se dedicar a alguns trabalhos free-lancers menos encantadores, porém mais rentáveis.

Para compensar minha incapacidade de honrar um compromisso, encerro com a lucidez e a advertência de Rafael, com quem só tive contato via facebook:

“Entendo que esse não é um legado da esquerda recifense. Se for colocado das gestões ditas de esquerda, ainda vai, embora acredite que também não é. Tem um caldo de questões muito complexas aí, mas acho que atribuir isso à esquerda que fora do campo institucional se contrapõe a esse modelo, é um risco muito grande.

Existe uma outra narrativa sobre a cidade que tem sido muito forte e que é construída por setores da esquerda também, como o Coque (R)Existe, o Comitê Popular da Copa, SINTRACI [Sindicatos dos Trabalhadores do Comércio Informal], Direitos Urbanos, Ocupe Estelita, Passarinho e de outros debates não tão diretos, como a da Marcha das Vadias ou dos jovens contra o extermínio da juventude negra”.

Leia a série completa:

Um vislumbre de quem manda de verdade no Recife
Planejamento urbano “privatizado”, um legado da esquerda recifense
Moinho do absurdo
Batalha Naval

AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.