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O caso Valadares (ou como se exerce o poder em Pernambuco)

Inácio França / 22/06/2018

A precoce e ruidosa demissão do jornalista João Valadares das funções de colunista do portal OP9 e comentarista de política da TV Clube, pertencentes ao Grupo Opinião, ligado à Hapvida Assistência Médica, expôs o que qualquer estagiário novato das redações está cansado de saber: a subserviência das empresas de mídia e seus prepostos a quem exerce o poder em Pernambuco.

As ameaças e pressões não costumam chegar ao conhecimento público. Desta vez, porém, um fato novo tornou evidente aquilo que costuma ser absorvido pelo medo: os profissionais envolvidos não aceitaram a pressão.

João Valadares não mudou o tom dos seus artigos e o diretor de redação do portal, o jornalista Márcio Markman, também reagiu imediatamente: entregou o cargo apenas duas horas após a demissão do seu subordinado pelo conselho empresarial do Grupo Opinião.

No dia seguinte à demissão, as postagens do blog Zero Filtro com os artigos e reportagens mais ácidas de Valadares foram apagados.

Protagonista e coadjuvantes do episódio foram procurados. Valadares e Markman pediram reserva e preferiram não conceder entrevista.

O diretor do Grupo Opinião, Daniel Cabral, também foi contactado via whatsapp e também por telefone, mas não respondeu às mensagens nem deu retorno aos telefonemas.

Para se entender o poder de pressão dos integrantes dos três poderes sobre o Grupo Opinião é preciso conhecer um pouco das relações e da história do plano de saúde Hapvida em Pernambuco.

A Hapvida é beneficiária, desde agosto de 2017, de um contrato de R$ 22,8 milhões para prestação de assistência médico-hospitalar aos funcionários do Detran. O problema é que, em março deste ano, o setor de Benefícios e Assistência do órgão apresentou um relatório sobre a incapacidade da Hapvida em cumprir o contrato. Hoje, o contrato está sob análise do Tribunal de Contas do Estado e pode ser rompido.

Há uma semana, João Valadares publicou na Folha de S.Paulo, para onde escreve como correspondente no Recife, reportagem com a lista de parentes de desembargadores do Tribunal de Justiça e do próprio governador Paulo Câmara abrigados com cargos comissionados bem remunerados no Tribunal de Contas. Basta ligar os pontos para conhecer como e porquê se exerceu a pressão.

Manter a conta do Detran é vital para as finanças e para a imagem da Hapvida.

Em 2011, antes de entrar no mercado de comunicação, a Hapvida enfrentou problemas junto ao Governo de Pernambuco. Beneficiada por uma dispensa de licitação que gerou um contrato emergencial de R$ 2.364,551,16. Poucos meses depois, teve o contrato suspenso por causa da má qualidade do atendimento. Foi punida e ficou sem poder participar de licitações no Detran até 2014.

Na mesma época, a Agência de Tecnologia de Informação de Pernambuco (ATI) já havia punido a Hapvida pela mesma razão. O plano de Saúde ficou dois anos sem o direito de apresentar propostas nas licitações da Agência.

Apesar dos percalços, a empresa mantêm plano de saúde para os funcionários da Empetur (contrato de R$ 1,8 milhão), Lafepe (R$ 1,9 milhão) e Secretaria de Administração de Pernambuco (R$ 2,6 milhões). Nesta última, o secretário que assinou o contrato foi Milton Coelho, personagem de uma das postagens de Valadares, que tornou público o fato dele estar sendo investigado pela Polícia Civil por peculato.

Pausa para juntar lé com cré e compreender os interesses em jogo.

Processos e manobras na Assembleia Legislativa

Como não são apenas os funcionários dos órgãos públicos que reclamam do mau atendimento da Hapvida, existem inúmeros processos judiciais movidos por clientes que precisam recorrer à Justiça para ter direito a tratamento de saúde. Em maio, a Hapvida ocupou a 37ª posição no ranking de reclamações da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), mas costuma aparecer com frequência entre as 20 piores.

Em meio a tantas demandas judiciais, João Valadares denunciou no OP9 a compra de 50 SUVs da Honda a serem usadas pelos desembargadores do Tribunal de Justiça por quase R$ 4 milhões. Boa hora para ligar os pontos novamente.

Tantas queixas abriram outra frente de pressão no Poder Legislativo. Em 12 de junho deste ano, o jornalista já havia concluído a apuração da matéria para a matéria da Folha de S.Paulo sobre o nepotismo cruzado entre TJ-PE e TCE-PE. A Comissão de Direitos Humanos e Participação Popular da Assembleia Legislativa havia marcado para aquela data uma audiência pública cuja pauta tratava exclusivamente da “atuação do plano de saúde Hapvida em Pernambuco”.

A audiência só pôde acontecer a duras penas. O presidente da Assembleia Legislativa, Guilherme Uchoa (PSC), fez de tudo para impedir sua realização. O caso levou Uchoa, que controla o legislativo estadual com mãos de ferro há 11 anos, a ser denunciado à comissão de ética pelo deputado estadual Edilson Silva (PSOL).

Em plenário, o parlamentar do PSOL contou que, na manhã do dia 12, os representantes das instituições convidadas para participar da audiência sobre a Hapvida começaram a receber telefonemas da mesa diretora da Assembleia Legislativa informando que a audiência estava suspensa. De acordo com Edilson Silva, os auditórios estavam fechados à chave e os funcionários receberam orientação para impedir que a audiência acontecesse. Um técnico de som chegou a sair correndo para não colaborar (veja aqui o vídeo com as denúncias)

Naquele mesmo dia, o portal OP9 não publicou a reportagem de João Valadares sobre as pessoas que ocupam cargos comissionados no TCE, inclusive a Evalúcia Góes Uchoa Cavalcanti Barbosa, neta de Guilherme Uchoa, beneficiada com uma função com salário de R$ 14,3 mil mencionadas na matéria.

A matéria só foi publicada no dia seguinte pela Folha de S.Paulo.

Texto atualizado em 25 de junho de 2018, às 13:57min.

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Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.