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Prefeitura silencia sobre cessão de espaço público para camarotes privados

Laércio Portela / 15/03/2017

A maioria dos recifenses mal tinha começado a curar a ressaca de Carnaval quando o prefeito Geraldo Julio (PSB) e seu staff chegaram ao prédio do Paço do Frevo, no Centro, para fazer um balanço da festa em coletiva à imprensa, na tarde da quarta-feira de Cinzas. Os jornalistas receberam duas dezenas de dados (número de foliões nas ruas, percentual de ocupação dos hotéis, testes de HIV realizados, toneladas de lixos recolhidos e etc), mas nada foi dito ou perguntado sobre a ocupação de espaços públicos por camarotes privados.

Detalhe: há 30 dias adormecia nas gavetas do Poder Público Municipal pedido de informações da Câmara de Vereadores sobre as cessões de espaços públicos feitas pela Prefeitura a empresas e grupos privados que montaram camarotes e comercializaram milhares de ingressos na Praça Sérgio Loreto, na Avenida Dantas Barreto e na Avenida Sul, durante o desfile do Galo da Madrugada.

Tema caro à sociedade civil organizada, a conformação das relações público-privadas na ocupação e no desenho do espaço urbano não costuma comover a imprensa. Essa indiferença fica ainda mais evidente na cobertura apoteótica e ufanista do Carnaval. Mais vale falar do brilho, da alegria, das cores e da magia do folião ou das presenças “marcantes” de celebridades nos camarotes do que mostrar o outro lado da moeda: os mecanismos pelos quais o Poder Público e o Poder Privado se associam, legitima ou ilegitimamente, para colocar o “espetáculo” de pé.

O uso privado do bem público

O pedido de informações que está na Prefeitura desde o dia 31 de janeiro é fruto de requerimento encaminhado à Mesa Diretora da Câmara pelo vereador Ivan Moraes (PSOL). Nele são solicitados todos os documentos legais necessários para dar transparência à relação público-privada na cessão de praças, ruas e prédios públicos para montagem de camarotes privados.

A Câmara quer ter acesso à cópia do “Termo de Permissão de Uso de Bem Público de Uso Comum do Povo e de quaisquer outros instrumentos” relativos à cessão de espaços públicos pela Prefeitura do Recife para o Clube de Máscaras Galo da Madrugada nos últimos cinco anos, incluindo 2017.

Pede-se também cópia dos instrumentos legais que autorizam o uso do solo e a instalação de três dos maiores camarotes privados montados no desfile do Galo da Madrugada: o Camarote Downtown, na Praça Sérgio Loreto; o Camarote Spettus, na Avenida Dantas Barreto; e o Camarote Balança a Rolha, embaixo do Viaduto Capitão Temudo.

O requerimento encaminhado pelo vereador cita denúncias de que “o Clube de Máscaras Galo da Madrugada há alguns carnavais vem comercializando espaços públicos, com vendas de ingressos para o folião interessado a assistir a passagem da agremiação, chegando inclusive a sublocar áreas públicas para outras empresas montarem camarotes privados…”. Diante deste cenário, o documento questiona a Prefeitura sobre a base legal que autorizaria o Galo da Madrugada a ceder ou sublocar o espaço público, citando nominalmente o caso do Camarote Downtown.

O pedido de informações (ofícios 72 e 73/2017)  foi enviado ao gabinete do prefeito Geraldo Julio com a solicitação de que ele o encaminhe aos titulares da Secretaria de Cultura (Leda Alves) e da Secretaria de Mobilidade e Controle Urbano (João Braga) para que sejam devidamente respondidos.

A Lei Orgânica do Município prevê no parágrafo 2o do artigo 61 que “a Mesa da Câmara Municipal poderá encaminhar pedidos escritos de informação aos Secretários do Município ou a qualquer das pessoas referidas no parágrafo anterior (titulares e servidor público de órgãos diretamente subordinados ao Prefeito), importando em crime de responsabilidade, nos termos da legislação federal, a recusa ou o não atendimento no prazo de trinta dias, bem como a prestação de informações falsas”.

O Decreto-Lei Federal 201/1967, que dispõe sobre as responsabilidade de prefeitos e vice-prefeitos, em seu parágrafo 3o do artigo 4 define como infração político-administrativa dos prefeitos municipais sujeitas ao julgamento pela Câmara dos Vereadores e sancionada com a cassação do mandato “desatender, sem motivo justo, as convocações ou os pedidos de informações da Câmara, quando feitos a tempo e em forma regular”.

A reportagem da Marco Zero Conteúdo procurou a assessoria de imprensa da Prefeitura na manhã da segunda-feira (13) para saber o motivo da demora no envio das respostas e foi orientada a levar a demanda às assessorias de imprensa das duas secretarias. Fizemos contato por telefone com os assessores (no caso da Secretaria de Cultura foi enviado também email conforme solicitado pelo órgão), mas não obtivemos qualquer resposta até o final da tarde da quarta-feira (15) sobre o pedido de informações relativo à cessão dos espaços públicos no Carnaval.

Representações em análise

O gabinete do vereador Ivan Moraes ainda aguarda as respostas da Prefeitura, mas estuda três possibilidades para reagir em caso de não repasse das informações. A primeira é a de requerer à Mesa Diretora da Câmara – autora legal do pedido de informações – que entre na Justiça com mandado de segurança para garantir o envio imediato por parte da Prefeitura dos documentos solicitados A segunda é a de fazer uma representação junto à Mesa Diretora contra o prefeito, com base no parágrafo 3o do artigo 4 do Decreto-Lei Federal 201/1967, por infração político-administrativa. A terceira hipótese é encaminhar representação ao Ministério Público por ato de improbidade administrativa.

A Constituição Federal no seu artigo 49, inciso X, e a Lei Orgânica do Recife em seu artigo 23, inciso XIX, estabelecem como prerrogativa exclusiva do Poder Legislativo fiscalizar ou controlar diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder Executivo, inclusive da administração indireta.

Autor do requerimento que originou o pedido de informações, o vereador Ivan Moraes defende que a prestação de contas e a transparência das informações são fundamentais para que a Câmara fiscalize e a sociedade avalie as políticas e os benefícios públicos da relação entre o Executivo Municipal e os entes privados.

“Os pedidos têm muita relevância para que a população possa conhecer os mecanismos de decisão da Prefeitura sobre os eventos culturais e possa avaliar se eles de fato são adequados. Eles são um pedido de informação, eles não são pré-julgamento. Para poder monitorar, se informar e discutir sobre a importância da eficácia das ações do Poder Público é preciso conhecer a forma como elas estão sendo feitas”.

Ivan Moraes vê na prestação de contas uma oportunidade para a Prefeitura do Recife sentir a reação da sociedade à política de relacionamento com a iniciativa privada no Carnaval

Ivan Moraes vê na prestação de contas uma oportunidade para a Prefeitura sentir a reação da sociedade à política de relacionamento do Poder Municipal com a iniciativa privada no Carnaval do Recife

Ivan acredita que do mesmo jeito que a sociedade ganha com a transparência, a Prefeitura também pode ser beneficiada se entender a divulgação das informações como uma ferramenta de gestão. “Ao sonegar esse tipo de informação, a Prefeitura tá perdendo uma grande oportunidade de ver avaliada sua política para o Carnaval, na forma como está tratando o uso do espaço público”.

“É muito ruim quando a Prefeitura deixa de responder questionamentos como esses. Ruim para a própria Prefeitura porque eu considero muito benéfico para a gestão que esses assuntos sejam debatidos de forma ampla. É o debate que pode dar mais respaldo para as ações da Prefeitura no Carnaval do ano que vem. A importância de saber o que a população que elegeu essa gestão acha do que eles estão fazendo lá”, avalia o vereador.

Para garantir a ampla transparência sobre o processo de cessão do espaço público, a Câmara Municipal requereu, no pedido enviado no dia 31 de janeiro à Prefeitura, a relação completa de todos os espaços e prédios públicos cedidos pelo Poder Municipal ao Galo da Madrugada, bem como a lista de todos os camarotes privados instalados em espaços e prédios públicos durante o desfile do bloco. São solicitadas também as contrapartidas ou valores que a Prefeitura do Recife eventualmente receba pela instalação desses camarotes com as cópias de cada um dos contratos assinados.

A falta de transparência sobre a instalação dos camarotes privados em espaços públicos ao longo dos mais de seis quilômetros de trajeto do desfile do Galo da Madrugada foi abordada em matéria na semana pré-carnavalesca pela Marco Zero Conteúdo.

Explicações no passado foram questionadas

Em 2015, o produtor cultural Roger de Renoir e a professora da Faculdade de Direito Liana Cirne Lins entraram com pedido de informações para que a Prefeitura explicasse a cessão do espaço público no Carnaval. Questionavam especialmente o fechamento da Praça Sérgio Loreto à população para a instalação do Camarote Oficial do Galo e do Camarote Downtown. A Prefeitura informou que a Sérgio Loreto era cercada com tapumes para proteger o patrimônio público da degradação, garantindo que a medida era aplicada a outras praças, monumentos e prédios públicos no Centro da Cidade.

A resposta não satisfez Roger. “A Praça da República (em frente ao Palácio do Campo das Princesas) é cercada e quando acaba o Carnaval tiram-se os tapumes e ela está intacta, ninguém tem acesso ao local. Mas a Praça Sérgio Loreto, não. Ela é cercada e só entra nela quem paga. Quem paga ocupa a Praça. Ou será que os secretários de Cultura e de Mobilidade e Controle Urbano da Prefeitura desconhecem que existem camarotes privados funcionando ali durante o Carnaval?”.

Passados dois anos, a Praça Sérgio Loreto continua fechada ao público durante o desfile do Galo da Madrugada. Só tiveram acesso ao local no Carnaval 2017 os convidados de honra da diretoria do Galo da Madrugada (empresários, políticos, artistas e jornalistas) e os foliões que desembolsaram R$ 330,00 por cabeça para frequentar o “open bar” do Camarote Downtown.

Fotos tiradas pela reportagem da Marco Zero Conteúdo, dois dias antes do Carnaval deste ano, comprovaram o avanço dos camarotes privados sobre calçadas, ruas e praças públicas. O Camarote Balança a Rolha ocupava toda a parte inferior do Viaduto Capitão Temudo, na Avenida Sul. O Camarote Spettus, com ingressos individuais a R$ 500,00 tomava cerca de 70 metros de uma das vias da Avenida Dantas Barretos, levando caos aos usuários do transporte público e aos pedestres numa das áreas da cidade com maior circulação de ônibus e onde impera o comércio informal.

Mesmo no espaço nobre do Carnaval recifense (ou talvez por isso), no Marco Zero, os camarotes privados avançavam sobre as calçadas públicas. Era o caso do Camarote Skoll e do Camarote Palácio do Antigo. O mesmo acontecia com o Camarote instalado no prédio público da Caixa Cultural, que tomava a calçada na frente do prédio.

Cachês atrasados

Onze dias antes do envio do requerimento sobre a cessão de espaços públicos, precisamente no dia 20 de janeiro, a Câmara Municipal encaminhou à Prefeitura pedido de informações (ofício 55/2017), também de autoria do vereador Ivan Moraes, a respeito do atraso no pagamento de cachês para artistas, grupos, agremiações e orquestras contratadas para os Carnavais de 2013, 2014, 2015 e 2016. O documento pergunta quais deles ainda têm pendências de empenho, liquidação e pagamento das despesas contratuais e quais as motivações dessas pendências. É endereçado ao prefeito para ser distribuído ao presidente da Fundação de Cultura do Recife, Diego Rocha.

“Há evidências, inclusive verificáveis no Portal da Transparência da Prefeitura do Recife de contratos de empenhos sem liquidação ou pagamento realizado até o momento. Além disso, têm chegado à Câmara Municipal do Recife diversas denúncias de atrasos nos processos de contratação e pagamento dos ciclos carnavalescos da Prefeitura do Recife nos últimos anos. Desse modo é indispensável ter acesso às informações e à documentação comprobatória… para que se possa verificar cada situação”, diz o documento.

A chefia de gabinete da presidência da Fundação de Cultura entrou em contato com a reportagem solicitando o número do protocolo do pedido para verificar o andamento interno do processo. A reportagem apurou e encaminhou o número do ofício registrado pelo Poder Legislativo e o repassou. Tão logo tenhamos informações oficiais sobre a análise da solicitação feita pela Câmara Municipal sobre os cachês nós atualizaremos o texto e publicaremos os dados repassados pela Fundação de Cultura.

Em tese, não há justificativa para a demora da Prefeitura em repassar as informações solicitadas pela Câmara tanto no caso do atraso no pagamento de cachês quanto na cessão de espaços públicos para a iniciativa privada no Carnaval. Trata-se de contratos e termos de uso de solo que deveriam estar devidamente organizados, assinados e protocolados nos órgãos competentes da PCR. Assim sendo, a disponibilização deles poderia se dar praticamente de forma imediata. Tão ou mais prontamente quanto todos os inúmeros dados apresentados pelo prefeito Geraldo Julio e seu staff na coletiva à Imprensa na quarta-feira de Cinzas.

A demora no repasse das informações e documentos pode ter uma finalidade política: “esfriar” a pauta, contribuindo para o esquecimento do assunto.

Essa, aliás, parece ser também a estratégia utilizada no caso da apreensão arbitrária de fantasias e adereços da Troça Empatando Tua Vista pela Polícia Militar, quando seus integrantes se preparavam para ir às ruas protestar no desfile do Galo da Madrugada contra a especulação imobiliária no Recife e, por tabela, contra o prefeito Geraldo Julio e o governador Paulo Câmara.

Depois da avassaladora repercussão negativa nas redes sociais, a Corregedoria da Secretaria de Defesa Social abriu processo para investigar de onde partiu a ordem de apreensão. Uma questão aparentemente simples de ser esclarecida pelo Governo do Estado. Mas que permanece sem resposta.

Como se pode ver, nem tudo no Carnaval acaba na quarta-feira de Cinzas…

 

AUTOR
Foto Laércio Portela
Laércio Portela

Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República