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Quatro anos depois do surto do Zika, crianças com microcefalia não têm assistência adequada

Mariama Correia / 06/08/2019

Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

“Estou desesperada”. A mensagem que Nadja Bezerra, 45 anos, mandou pelo Whatsapp pouco antes desta reportagem ser publicada falava sobre o agravamento do quadro de saúde da filha dela, Alice. Aos três anos, a menina, que nasceu com microcefalia por infecção do Zika vírus durante a gestação, teve complicações respiratórias que podem levar a uma traqueostomia, cirurgia para permitir a passagem de ar pela traqueia.

Alice não come sozinha e se engasga com a própria saliva frequentemente. Quando isso acontece, precisa de socorro imediato. O hospital mais próximo fica a duas horas da casa da família, no Ibura, um dos bairros mais pobres do Recife. Esperar seria fatal. A mãe, que se dedica em tempo integral à menina, conta que ela tem uma média de seis convulsões por dia, mesmo tomando pelo menos cinco anticonvulsivantes. A alimentação por sonda é feita  com um leite especial,  que nem sempre está disponível nos estoques da rede pública.

Depois de diversas internações, a família pediu o atendimento domiciliar, chamado home care. O plano de saúde Hapvida negou. Esse tipo de atenção não é oferecida pelo SUS e, pela legislação atual, não é obrigatória para a rede privada . Porém, uma decisão liminar da Justiça garantiu o tratamento desde fevereiro. Todos os meses, o plano tem contas bloqueadas para cobrir os custos com equipes e aparatos montados no quartinho de Alice, cômodo mais estruturado da casa. No espaço, há ar condicionado e um banheiro adaptado em anexo, fruto de doações. O custo mensal da manutenção do atendimento domiciliar é de R$ 35 mil, valor que a renda de um salário mínimo (R$ 998,00) da família jamais seria suficiente para cobrir. O processo ainda terá o mérito julgado pela Justiça.

Quatro anos depois do pico da epidemia do vírus Zika, transmitido pelo mosquito Aedes Aegypti, muitos dos nascidos com síndrome congênita que causa a microcefalia estão no impasse entre as falhas da assistência pública e o engessamento das regras na rede privada. Passado o alerta do surto, que mobilizou a comunidade científica global e a mídia, ambas as redes de atendimento não conseguiram acompanhar o desenvolvimento das vítimas.

De 2015 a 2018, menos de 30% das crianças com microcefalia associada ao Zika no Brasil receberam atendimento adequado considerando três eixos: puericultura (acompanhamento do desenvolvimento infantil), estimulação precoce e atenção especializada. Em números absolutos, apenas 831 dos 2865 casos confirmados, segundo o próprio ministério da Saúde.

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“Enquanto minha filha piora, o plano briga na Justiça para tirar o atendimento domiciliar. Não aguento mais essa situação”, desabafa a mãe de Alice.

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A impessoalidade da assistência privada 

Pernambuco foi o epicentro da epidemia de Zika. No estado vivem 468 crianças com microcefalia associada ao vírus.  Por causa das falhas na rede pública, muitos pacientes como Alice são impelidos para os planos de saúde, em busca de tratamentos que não constam no rol de procedimentos do SUS. Mas eles esbarram na legislação engessada da saúde suplementar.

“As mães relatam dificuldades até para contratar os planos. Algumas operadoras não querem aceitar as crianças por serem portadoras de doenças preexistentes”, diz Poliana Dias, presidente da Aliança de Mães e Familias Raras (Amar). A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) não confirma que haja lastro legal para que o plano rejeite um contrato por doença preexistente, mas admite que, pela legislação vigente, “pode haver restrição ao uso do plano durante um período para procedimentos de alta complexidade”.

Atendimento domiciliar não é oferecido pelo SUS, nem pelos planos de saúde (Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo)

Atendimento domiciliar não é oferecido pelo SUS, nem pelos planos de saúde (Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo)

Pela lei dos planos, a cobertura do home care não é obrigatória, “exceto quando estabelecido no contrato do beneficiário”, informa a ANS. O que a regra não considera são as particularidades de casos como o de Alice ou o de Annika, que vai completar quatro anos e também tem microcefalia. A mãe dela, Micaela de Souza, 30 anos, conta que a menina já foi internada 15 vezes com pneumonia e dificuldades respiratórias. Ela precisa de monitoramento constante, mas o plano Hapvida  nega o atendimento domiciliar.

“Como o quadro dela se agravou com o passar do tempo, sabíamos que o SUS não iria cobrir os tratamentos. Por isso fizemos o plano”, conta a mãe, frustrada. Por mês, a assistência médica custa R$ 388,00 que ela paga com o Benefício de Prestação Continuada (BPC), equivalente a um salário mínimo, única renda deles e de grande parte das famílias dessas crianças em Pernambuco. Micaela deixou de trabalhar para cuidar da menina, assim como mais de 90% das mães de crianças com microcefalia, segundo a União de Mães de Anjos, e o marido dela está desempregado. O que sobra vai para a compra de remédios, que consomem aproximadamente R$ 350,00 por mês.

Casos assim provam que existe uma lacuna entre a legislação que rege os planos de saúde e as necessidades dos usuários, para o secretário da comissão de direito e saúde da OAB e presidente da comissão de defesa do consumidor, Joaquim Guerra. “Não houve atualização das regras com foco nas vítimas dessa epidemia de proporção nacional, cujas consequências ainda estão presente no Brasil”, ressalta. A única via possível termina sendo a da judicialização.

Embora não exista informações precisas sobre quantos processos contra planos de saúde envolvendo crianças com microcefalia pelo Zika já foram registrados no Brasil, desde o ano passado, pelo menos 25 ações foram abertas em Pernambuco, segundo a União de Mães de Anjos (UMA), que acolhe as famílias. A maioria dos processos pede a autorização para home care e de tratamentos avançados que não estão no rol de procedimentos do SUS, nem dos planos, como o therasuit, um tipo de terapia motora que se mostrou eficiente, mas só é acessada por dez crianças no estado, que participam de um programa de voluntariado.

São necessidades que a  lei dos planos de saúde, escrita em 1998, muito antes da epidemia, não conseguiram antever, admite Flávio Wanderley, presidente da Associação Brasileira dos Planos de Saúde (Abramge). “ Não se previu que se teria uma patologia como essa, com uma frequência como foi observada no Brasil”, declara. Para ele, cabe à ANS atuar diante da situação excepcional e “inserir no rol de procedimentos os tratamentos que são específicos para essas crianças”. Esse rol é atualizado de dois em dois anos.

“ Não se previu que se teria uma patologia como essa, com uma frequência como foi observada no Brasil”, Flávio Wanderley, presidente da Associação Brasileira de Planos de Saúde.

Wanderley ressalta os altos custos da saúde suplementar, que são pagos pelos usuários, porque o sistema é de mutualidade (divisão de custos entre os beneficiários). “É claro que pacientes precisam de assistência, mas  qualquer novo procedimento incorporado vai onerar mais o sistema e ser repassado para a conta dos usuários”, adverte.

O plano de saúde Hapvida só se pronunciou após a publicação desta reportagem, pedindo que a resposta fosse publicada na íntegra. Reproduzimos a nota integralmente abaixo.

Olhar para a assistência privada é considerar apenas uma fração mínima do problema. De acordo com a UMA, os planos saúde são acessados por apenas 5% das crianças com microcefalia em Pernambuco. A maioria esmagadora depende totalmente do SUS e de atendimentos gratuitos em instituições de apoio, mas a rede é insuficiente.

Continue a leitura: Desarticulação do SUS prejudica crianças com microcefalia 

NOTA À IMPRENSA

O Hapvida é rigorosamente seguidor da legislação e das normas da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão regulamentador do setor. Até hoje, home care não está listado entre os serviços que devem ser prestados pelas empresas, tampouco consta em contrato, assim como Therasuit é considerado um método experimental por muitas entidades da área da saúde.

As operadoras são gestoras de recursos de seus clientes para que na hora que eles mais precisem tenham acesso aos procedimentos listados no rol e indicados por sua equipe médica. A operadora que oferece serviços não listados pode comprometer o recurso do seu grupo de clientes e, futuramente, não ter condições financeiras de honrar seus compromissos, quando devidos por lei.

Nossa empresa reitera o compromisso com todos os seus clientes e, seguindo a lei e a justiça, procura oferecer o que há de melhor e mais seguro no rol de procedimentos determinados pela ANS.

AUTOR
Foto Mariama Correia
Mariama Correia

Jornalista formada pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e pós-graduada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi repórter de Economia do jornal Folha de Pernambuco e assinou matérias no The Intercept Brasil, na Agência Pública, em publicações da Editora Abril e em outros veículos. Contribuiu com o projeto de Fact-Checking "Truco nos Estados" durante as eleições de 2018. É pesquisadora Nordeste do Atlas da Notícia, uma iniciativa de mapeamento do jornalismo no Brasil. Tem curso de Jornalismo de Dados pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e de Mídias Digitais, na Kings (UK).