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Serviços de atendimento para Aids/HIV sofrem com descaso no Recife

Maria Carolina Santos / 03/12/2018

A cada dia, duas pessoas morrem vítimas de complicações da Aids. A cada seis horas, uma pessoa é infectada pelo HIV. Os dados se referem apenas ao estado de Pernambuco, onde mais de 26 mil pessoas convivem com a Aids/HIV. No sábado (1º) foi o Dia Mundial de Combate à Aids. Data que passou sem alardes no Recife e no estado. Nenhuma campanha nas ruas sobre prevenção. Para chamar atenção para a precariedade do atendimento nas redes municipal e estadual, a ONG Gestos e a Articulação Aids fizeram um protesto nesta segunda-feira (03) em frente à Policlínica Gouveia de Barros, na Boa Vista.

O local foi escolhido porque conta com uma sala e mobiliário para oferecer o Serviço de Atenção Especializada (SAE), programa desenvolvido para atender as pessoas com HIV/Aids com todas as especialidades que necessitam, mas que não funciona como tal. “Há dois anos estamos cobrando esse SAE. Segundo o Distrito 1 (órgão da Secretaria Municipal de Saúde), o local está pronto, mas não funciona”, afirma a coordenadora de programas institucionais da Gestos, Jô Menezes.

Imagens das condições do Hospital Correia Picanço. Imagens: Gestos

Imagens das condições do Hospital Correia Picanço. Imagens: Gestos

“Hoje mesmo vieram pessoas aqui na Gouveia de Barros para fazer o exame de HIV e não havia como, porque a pessoa responsável está de licença e não tem ninguém no lugar. Uma coisa simples, como um exame, não é feito”, reclama Jair Brandão, ativista do Movimento Nacional de Luta Contra a Aids e assessor de projetos da Gestos. “A prefeitura diz que o teste está disponível em todo canto, mas não é verdade, como hoje vimos aqui. Isso é um grande descaso, já que Recife está entre as capitais com maior número de HIV e é a segunda capital com mais registros de sífilis, só perde para Porto Alegre”, afirma Jair Brandão.

Marion*, 71 anos, descobriu que tinha Aids há 10 anos, quando teve uma súbita perda de peso. Fez vários exames, foi para vários médicos e não havia um diagnóstico. Por conta própria, foi na Policlínica Lessa de Andrade e fez o exame de HIV, que deu positivo. Tinha então 60 anos. “Naquela época, já fazia 10 anos que eu não tinha relações sexuais. Ou seja, passei dez anos com o vírus e os médicos não passavam o exame. É um alerta que eu faço: o vírus não escolhe idade”, diz Marion. Desde então ela se consulta e se medica no Lessa de Andrade.

Na rede municipal do Recife, apenas a Policlínica Lessa de Andrade tem um SAE ativo, mas com várias deficiências no atendimento. “Se você vai no Lessa de Andrade e procura um ginecologista, não tem. Um urologista, não tem. Então, é uma situação grave para as pessoas que vivem com o HIV. Com os serviços de saúde funcionando dessa maneira, o que uma pessoa que vive com HIV pensa? Pensa que não é cidadão. Que o atendimento para ela pode ser de segunda categoria, pode ser relegado. Aumenta o sentimento de preconceito, de estigma. Quando se chega em um lugar em que se é tratado com dignidade, é outra história”, diz Jô Menezes.

Roberto Brito convive com a Aids há 20 anos e cobra mais atenção para a saúde mental

Roberto Brito convive com a Aids há 20 anos e cobra mais atenção para a saúde mental

O ex-cozinheiro Roberto Brito convive há 20 anos com a Aids. Faz tratamento no Hospital das Clínicas. “Para o antirretroviral está normal, mas medicação para as doenças oportunistas está bem ruim. Para acesso a especialistas também está ruim. As pessoas que convivem com o HIV não precisam só do infectologista, mas de outras especialidades. Além das doenças oportunistas, a medicação causa reações adversas. No HC foram contratados novos médicos e está melhor o atendimento, em relação a infectologistas”, afirma. “Mas para quem está chegando agora, a situação está ruim. A primeira consulta demora até quatro meses. A pessoa precisa de atendimento logo, até para ficar mais tranquila, porque ainda há um estigma forte. Não há acompanhamento para saúde mental. Precisamos ter acesso a psiquiatras, psicólogos.”

Um exemplo do descaso é o hospital estadual Correia Picanço, que atende 80% dos casos de HIV no estado. Fotos do local denunciam o abandono, com refrigerador com mofo, móveis velhos, paredes descascando e cadeiras improvisadas. “Era para ter se criado no Correia Picanço um núcleo de coinfecção, de tuberculose, porque hoje é a doença oportunista que mais mata pessoas com HIV no mundo. Esse serviço era para ter sido criado desde 2012 e ainda não saiu do papel. Muita gente acha que a tuberculose não existe, mas Pernambuco é um dos estados com maior índice de morte por tuberculose no Brasil. Estamos em rankings que não deveríamos mais estar”, lamenta Jair.

Em nota, a Secretaria de Saúde do Recife afirmou que os testes na Policlínica Gouveia de Barros serão normalizados a partir desta quinta-feira (05) com 40 vagas por ida. E que não houve interrupção do serviço, apenas uma redução, por conta da licença de duas biomédicas. A Secretaria também afirma que mais de 100 unidades de saúde da capital realizam a testagem (HIV e sífilis) dentro das atividades de rotina.

Sem citar prazos, a Prefeitura do Recife diz que o novo SAE custou R$ 600 mil e “atuará com equipe formada por infectologistas, enfermeiros, farmacêutico, psicólogos, assistentes sociais e técnicos de enfermagem, prestando assistência ambulatorial com a instituição da terapia antirretroviral e solicitações de exames laboratoriais de controle e monitoramento do tratamento.”

Medicação
De acordo com a Gestos/Articulação Aids, há uma discrepância entre os números divulgados pelo Governo do Estado e o Ministério da Saúde. Pelos dados do Governo de Pernambuco são 26,6 mil pessoas com HIV/Aids no estado. Já o boletim nacional afirma que são 33 mil casos. “O estado precisa explicar para a sociedade o porquê de todo ano ter essa diferença”, cobra Jair.

Os antirretrovirais são oferecidos pelo Ministério da Saúde e estão com a distribuição em dia. O problema atualmente, dizem as organizações, é com os remédios para as infecções oportunistas, estes oferecidos pela rede estadual, e para DSTs, oferecidas pelas prefeituras.

Dificuldades em campanhas e prevenção

Neste ano, apenas o Governo Federal fez campanha para o Dia Mundial de Combate a Aids. “Agora, no carnaval, vai ter campanha. No Brasil se criou a ideia de que as pessoas só transam no carnaval. Mas é bom avisar que as pessoas transam o ano inteiro. Campanhas são necessárias, mas mais importante são as ações continuadas, nos serviços de saúde, nas escolas”, comenta Jô.

Para 2019, com o governo Bolsonaro, a expectativa é de retrocessos para campanhas e prevenção. “Uma escola com mordaça não vai permitir que se converse sobre prevenção. Porque conversar sobre prevenção envolve conversas sobre sexualidade, sobre direitos humanos, porque você vai ter que pensar em toda a população. Nas mulheres, na população LGBTI, nas mulheres e homens negros, que têm especificidades, porque vivemos em um racismo ambiental, em que muitas vezes eles não têm acesso aos serviços de saúde. Então, há uma série de questões que têm que ser debatidas nas escolas e que, com esse novo governo, serão prejudicadas”, diz Jô.

Há ainda uma cobrança para mais políticas voltadas para os jovens. “Hoje a população mais notificada é a população de 20 a 34 anos. A população precisa saber que a Aids existe e ainda mata. O HIV está aumentando”, alerta Jair Brandão. No Brasil são 15 mil mortos por ano e 40 mil novas infecções.

A Gestos e a Articulação Aids juntaram denúnciassobre várias unidades de saúde do Recife. Abaixo, as denúncias feitas pelas ONGs e encaminhadas aos órgãos competentes:

GOUVEIA DE BARROS
SAE do Gouveia de Barros não está funcionando. O CTA que funciona no Gouveia de Barros distribui apenas 12 fichas pela manhã para realizar testes para HIV, atendendo apenas de segunda a quinta-feira.

LESSA DE ANDRADE
Na Policlínica Lessa de Andrade não há mais possibilidade de consultas para pacientes antigos este ano. A testagem para Sífilis e HIV está sendo feita apenas para gestantes. Não há no Serviço de Assistência Especializada (SAE) médicos nas especialidades necessárias para os pacientes. O serviço oferece apenas infectologistas e clínicos gerais. Urologistas e ginecologistas, por exemplo, não estão disponíveis no Lessa de Andrade. Além disso, as paredes do SAE estão com infiltração.

POLICLÍNICA BARROS BARRETO
Em Olinda – SAE da Policlínica Barros Barreto não tem assistente social desde 2016. O serviço também não tem ginecologista, fazendo com que as mulheres sejam encaminhadas para outros hospitais, com muita demora para serem atendidas.

CORREIA PICANÇO
O Hospital Correia Picanço está com a UTI fechada; o mobiliário dos quartos está em péssimas condições. Além disso, o Ambulatório de Coinfecção, prometido desde 2012, ainda não saiu do papel.

HOSPITAL OSWALDO CRUZ
No Hospital Oswaldo Cruz, a enfermaria de doenças infecto-parasitárias (DIP) tem quatro leitos desativados desde 2016. O hospital não tem material para fazer hemograma. Só realiza exames de Carga Viral e CD4. Tem pessoas tentando há mais de um ano fazer hemograma, sem conseguir.

IMIP (Instituto Materno-infantil de Pernambuco)
As consultas no Imip estão demorando até 8 meses para serem realizadas, mesmo para quem já é atendido na unidade de saúde. Por lei, pessoas que vivem com o HIV devem ter acompanhamento com infectologista a cada 6 meses. No caso do Imip, esse direito está sendo violado, pois as pessoas vivendo com HIV têm acompanhamento apenas 1 vez por ano com o especialista. No hospital também está faltando preservativo feminino.

HOSPITAL DAS CLÍNICAS
A Gestos recebeu denúncia de exposição da sorologia por parte de funcionários do Hospital das Clínicas, despreparados para lidar com a confidencialidade do diagnóstico. Para indicar o local de atendimento, funcionários do hospital gritam em ambiente com diversas pessoas: “- Aqui é a fila da Aids!” ou “- A fila da Aids é aquela ali!”. Tal atitude é inadmissível, pois expõe as pessoas que vivem com o vírus HIV.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com