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Um fim de semana em Paris

Marco Zero Conteúdo / 17/11/2015

por Alexandre Rocha (de São Paulo)

Era por volta de 22 horas de sexta-feira, 13, voltava ao hotel após beber duas cervejas no pub The Bombardier, no Quartier Latin, em Paris, mas o metrô não parou na estação République, onde eu deveria descer, nem em outras duas. Do alto falante veio informação que as três estações estavam fechadas a pedido da polícia. Saltei do trem mais adiante e fui a pé em direção à Place de la République, ao mesmo tempo em que viaturas da polícia, ambulâncias e carros dos bombeiros, rasgavam em alta velocidade pela rua na mesma direção, com as sirenes ligadas.

Parei num café, onde um garçom limpava as mesas apressadamente, e perguntei se ele sabia o que estava acontecendo. “Foi um atentado, senhor, aqui perto”, respondeu. No momento em que eu retornava ao hotel localizado num dos cantos da Place de la République, a carnificina se desenrolava em bares e restaurantes da região, e na casa de shows Bataclan, no Boulevard Voltaire.

Continuei caminhando na direção da praça, até que uma barreira policial se formou mais adiante, e uma agente, aos berros, mandava todo mundo dar meia volta. Retornei ao café, mas o mesmo garçom disse que eu não poderia ficar, pois iriam fechar o estabelecimento a pedido da polícia. Pensei: “E agora?”

Enveredei por uma rua lateral, mas, junto com um casal, fui recebido por outro policial aos berros. Acabei seguindo meio a esmo por outras vias, até que, por sorte, acabei dando de cara com o hotel, que fica na Rue Léon Jouhaux, numa das laterais da praça.

A porta estava trancada, e o recepcionista, nervoso, foi logo perguntando qual era o meu quarto. Eu não lembrava se era o 110 ou o 111, pois havia passado rapidamente lá pela manhã para deixar a bagagem.

Aliás, aquela manhã anunciava o início de um final de semana promissor. Estava em Paris vindo da Arábia Saudita, onde fiz a cobertura da 4ª Cúpula América do Sul-Países Árabes (Aspa) para a Agência de Notícias Brasil-Árabe (ANBA), da Câmara de Comércio Árabe Brasileira, onde trabalho. Mudei a passagem de volta ao Brasil da sexta para o domingo para aproveitar alguns dias na capital francesa.

Havia levantado cedo e saído para ver a exposição Osíris, Mistérios Submersos do Egito, no Instituto do Mundo Árabe, com relíquias resgatadas do fundo do mar nas proximidades de Alexandria. Lá vi também a primeira Bienal de Fotógrafos do Mundo Árabe, depois segui para a Galeria Sakura, próxima ao Hôtel de Ville, para ver uma mostra muito legal com obras baseadas em Star Wars.

De noite, porém, o cenário mudou, e a sensação passou a ser de tristeza. No saguão do hotel, hóspedes se aglomeravam em frente à TV assistindo as primeiras notícias sobre os ataques. Eles e os funcionários faziam ligações telefônicas e enviavam mensagens de texto freneticamente.

Subi para o quarto, que era o 110, e liguei a televisão, mas logo em seguida começaram a chover mensagens e ligações de colegas de trabalho, amigos e parentes. Minha mulher já havia tentado ligar duas vezes e estava preocupada. Passei um bom tempo respondendo às mensagens, depois, morrendo de fome, pois só tinha feito um lanche à tarde, comi as negras tâmaras de Medina que eu havia comprado em Riad para dar de presente.

A sensação de depressão não era nova. Era parecida com a que eu senti há dez anos, quando fui pela primeira vez ao Cairo, em 2005. Estava num táxi na Ponte 6 de Outubro, uma das várias que cruzam o Nilo, e na altura em que ela passa atrás do Museu Egípcio, eu e meus companheiros ouvimos uma explosão e vimos subir a fumaça que vinha do vão logo abaixo. Quando saímos da ponte, deixamos o carro e corremos a pé até o local a tempo de ver o corpo estraçalhado do homem bomba, que alguém já havia coberto com um jornal, antes que a polícia isolasse totalmente o perímetro. Não houve vítimas fatais, além do próprio autor, ao contrário dos pelo menos 129 mortos em Paris, mas a proximidade do ocorrido me deu um nó no estômago. Não de medo, mas de tristeza.

No sábado (14), acordei com as notícias de que escolas, museus e outras instituições públicas estariam fechadas. Ao sair, fui direto em direção ao Bataclan. A polícia havia cercado alguns quarteirões em volta de local, e jornalistas e curiosos viam a movimentação à distância. E eram muitos jornalistas! De todos os lados, falando diferentes idiomas, fotógrafos, câmeras, transeuntes dando depoimentos e uma infinidade de veículos de canais de TV com links para transmissões ao vivo.

Boa parte do comércio na região estava fechada. Aos celulares, pessoas falavam sobre os acontecimentos, e o tempo nublado e chuvoso contribuía para o clima de velório. Imaginei que num sábado normal as ruas estariam muito mais cheias de gente.

Resolvi caminhar até o Museu Nacional Picasso, no Marais, próximo dali, para confirmar se estava mesmo fechado. Estava. A cena se repetiu em vários outros pontos da cidade, com turistas encontrando portas fechadas no Jardim de Luxemburgo e até na Catedral de Notre Dame, onde as missas foram canceladas. Pensei: “E se alguém quiser rezar pelas vítimas?”. Ali perto, a tradicional livraria Shakespeare & Company estava fechada também. Lembrei do livro Paris é uma Festa, de Ernest Hemingway, e imaginei que o autor ficaria surpreso!

No final da tarde, sentei num bar na Rue Mouffetard, no Quartier Latin, para tomar uma cerveja, ao lado de um casal de parisienses residente ali perto, na Rue Monge, e puxei conversa. O homem logo me disse que resolveram sair como forma de resistência, de não se submeter ao terror, e ficamos conversando por um longo tempo. Embora o estabelecimento estivesse razoavelmente cheio, eles me disseram que normalmente todos os cafés e restaurantes ao redor, que são muitos, estariam absolutamente lotados, e havia muitos lugares vazios.

Ao contrário dos museus e parques, o transporte público estava funcionando. Desta vez consegui desce na estação République, e vi que a praça começava a ser tomada por gente acendendo velas em memória das vítimas. A cena era tocante, mas me veio à cabeça a recomendação do governo de se evitar aglomerações públicas.

O domingo (15) amanheceu ensolarado e com mais gente nas ruas. Na Place des Vosges, no Marais, crianças e adultos curtiam dia ao ar livre, e um grupo de modelos negras posava para fotos atraindo a atenção de curiosos. Outros lugares, porém, seguiam fechados, como o Louvre, a até o Jardim das Tuleries, em frente ao museu. Resolvi comprar alguns presentes, pois embarcaria para o Brasil à noite.

O dia transcorreu sem incidentes, passei por vários lugares, a Opéra Garnier, a Place Vendôme, a Place de la Concorde, o Trocadero – para checar se a Torre Eiffel continuava lá – e a Avenida Champs Elysées.

Até que eu voltei à Place de la Republique no final da tarde, e naquele momento o local estava completamente abarrotado de gente cantando a Marselhesa, acendendo velas, em meio a outras manifestações em memória das vítimas. Sentei no Café République, que estava cheio, para fazer uma refeição.

Estava terminando de comer quando a multidão na praça partiu em disparada, como num estouro de manada. Muitas pessoas correram para dentro do restaurante, assim como quem estava sentado na parte externa, numa reação em cadeia, saltando por cima de mesas e cadeiras. Quando eu percebi, estava caído no chão, com outras pessoas apavoradas deitadas ao redor. Um rapaz veio correndo lá de fora gritando e chorando, e por um momento achei que pudesse ser um terrorista. Ele pulou por cima de mim com tanta força que acabou aterrissando nos fundos do café. Pensei com certa preocupação em pessoas de idade mais avançada que estavam no local. Ao redor, gente se lamentava em várias línguas, inclusive em português do Brasil: “Meu Deus”, “Senhor”.

Após alguns momentos, as pessoas começaram a se levantar, e um garçom começou a gritar que era um alarme falso, pedindo para todo mundo evacuar o local. De pé, vi que o que restava do meu “tatare de boeuf” estava esmagado no chão. Curiosamente, meu copo de cerveja meio cheio estava intacto. Esvaziei-o, pague a conta – coisa que muita gente não fez – e saí. Na parte externa do restaurante, um garçom irado chutava mesas e cadeiras caídas em meio a um mar de copos e pratos quebrados.

Tentei voltar ao hotel pelo caminho mais curto, mas, mais uma vez, policiais aos berros me mandaram dar meia volta. Contornei a praça toda e em frente ao hotel Crowne Plaza vi um porteiro acalmado uma mulher e seus dois filhos, apavorados, dizendo que de fato era um alarme falso. Tentei confirmar a informação com um grupo de policiais mais adiante, mas eles me ignoraram, apenas um fez um sinal positivo com a cabeça. Passei por um “gendarme” e fiz a mesma pergunta, mas ele não estava tão certo. Um rapaz de bicicleta ouviu a conversa e disse que pessoas relataram ter ouvido tiros. Ao redor da praça, gente chorava e se lamentava.

Passei no hotel para pegar minha mala, e o recepcionista disse que havia sido mesmo um falso alerta. Pouco tempo depois, a notícia do pânico coletivo estava na TV, que colocava a culpa em alguns espíritos de porco que haviam soltado fogos de artifício. Depois ouvi falar que o estouro de uma lâmpada havia desencadeado a confusão, ou então o vidro de uma vela que se partiu. Pensei: “Tchau, Paris”.

O percurso de trem até o aeroporto foi rápido e tranquilo, assim como o check-in, a imigração e a inspeção de segurança. Mais tranquilo até do que em outras vezes em que eu passei por lá. No horário marcado, meu voo partiu para São Paulo.

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Foto Marco Zero Conteúdo
Marco Zero Conteúdo

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