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Visões sobre a crise da democracia brasileira a partir da França

Marco Zero Conteúdo / 27/03/2019

Por Maria Eduarda Rocha e Yvana Fechine, de Paris, especial para a Marco Zero Conteúdo

É crescente o interesse acadêmico pelo contexto político brasileiro como testemunhou o colóquio “La crise de la démocratie et le néolibéralisme à lumière de la situation brésilienne (A crise da democracia e o neoliberalismo a luz da situação brasileira), realizado nos dias 20 e 21 de março e organizado pela Universidade Paris Nanterre por meio do Laboratoire de Sociologie, Philosophie et Antropologie Politiques (Laboratório de Sociologia, Filosofia e Antropologia Políticas). Os debates sugerem algumas tendências na forma como o país está sendo visto na França.

Em primeiro lugar, existe um esforço para situar o caso brasileiro dentro de uma onda global de ascensão da extrema-direita. Isso coloca em um primeiro plano fatores que extrapolam a vida política brasileira, como o fato de que o fascismo tem sido uma resposta política a várias formas de insegurança que se acentuam no contexto atual, do medo da perda do emprego ao sentimento de identidade ameaçada, potencializado por discursos que pretendem defender uma comunidade imaginária diante de seus “inimigos”.

Esta comunidade pode ser imaginada a partir de elementos étnicos, raciais, de gênero, religião e orientação sexual, entre outras coisas, mas, em todos os casos classificáveis como “fascismo”, há uma proposta mais ou menos violenta de restauração da “pureza perdida” através da extirpação da ameaça ou, em outras palavras, um apelo a um certo “darwinismo social”.

Possivelmente, a diferença maior em relação à primeira onda fascista, na década de 1930, seja a centralidade das questões de gênero e sexualidade nesses discursos, o que amplia o apoio à extrema direita entre homens brancos heterossexuais. Se isso é verdade, as discussões recentes, também na França, permitem concluir que o caráter reativo da onda conservadora ao avanço dos direitos de mulheres e LGBTs precisa ser mais destacado e analisado, especialmente no caso brasileiro no qual a questão da imigração não tem o mesmo peso que na Europa e nos Estados Unidos.

Outro ponto em destaque foi o espelhamento entre os dois grandes do continente americano. No Brasil, a enorme inoperância da justiça e da justiça eleitoral permitiram o uso das táticas de guerrilha das redes sociais já testadas com sucesso na eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos. No Brasil, foi o sistema ainda mais oligopolizado de mídia que preparou o terreno para a guerra de desinformação disseminando, desde muito tempo, o ódio ao PT e o anti-lulismo.

Mas o que salta aos olhos de analistas que vimos circular por Paris é o caráter “grotesco” ou “disfuncional” do protagonista do “fascismo à brasileira”. As declarações de Jair Bolsonaro ainda como deputado e suas atitudes na Presidência são inimagináveis em qualquer contexto com um mínimo de cultura política democrática e com algum respeito pela liturgia do cargo.

Como mencionado por vários analistas, o presidente não desligou o “modo campanha”, e seu estilo dificilmente seria tolerado em um país como a França, apesar da escalada autoritária traduzida nas medidas recentes do Governo Macron contra o direito à manifestação e no potencial de crescimento da extrema-direita francesa nas próximas eleições europeias. Ou seja, por enquanto, bater tão abaixo da cintura como faz Bolsonaro nas redes sociais é algo ainda difícil de aceitar e explicar mesmo na França de Emmanuel Macron.

É evidente também entre analistas franceses a falta de articulação entre as três forças do Governo Bolsonaro, a neoliberal, a fanático-religiosa e a militar, para não falar da tumultuada relação com o Congresso. Tudo leva a crer que Bolsonaro, convertido no “cavalo de tróia” do anti-lulismo (na falta de apelo eleitoral dos candidatos de centro-direita), não tem proposta a não ser destruir as políticas públicas em nome de um neoliberalismo mais tosco, que pretende cortar direitos sociais, entregar para o capital privado os serviços de saúde e educação, além de privatizar as estatais. Criticou-se tanto a “militarização da administração pública” quanto o desrespeito às minorias que parecem conduzir o Brasil a uma “democratura” (uma espécie de ditadura com aparência de democracia).

Márcia Tiburi lamenta que, apesar do crescente interesse de acadêmicos e entidades pelo Brasil, as lideranças políticas da Europa parecem não se interessar muito pelo que está acontecendo no país sulamericano. “Nesse sentido é bom, entre aspas, que sujeitos que possam falar fora do Brasil alertem para tudo isso porque o que conhecemos do nosso destino até aqui é terrível. Temos histórias prévias que nos ensinam que precisamos puxar o freio de mão da história”, conclui a filósofa, referindo-se, entre outros, a movimentos como o Nazismo e reconhecendo a necessidade de maior pressão internacional. Tiburi juntou-se esta semana em Paris às vozes que denunciam os riscos que corre a democracia brasileira.

Homenagens a Marielle e o “sonho político” que ela representava

A situação política no Brasil foi o tema de pelo menos seis eventos acadêmicos e políticos realizados em Paris ao longo deste mês que marca um ano das execuções da vereadora Marielle Franco e do seu motorista, Anderson Gomes. O último deles foi realizado, na terça-feira (26), na sede da Prefeitura de Paris da décima região administrativa da cidade, com as presenças da deputada carioca Mônica Francisco (PSOL), que trabalhou com Marielle, e da filósofa, escritora e ex-candidata do PT ao Governo do Rio, Márcia Tiburi, que deixou o Brasil por receber ameaças de morte de grupos de extrema-direita.

O seminário “Marielle à Paris” foi organizado pela Red.br – Réseau Européen pour la Democratie au Brésil, que entrou com solicitação junto à Prefeitura de Paris pedindo que um lugar público da cidade receba o nome de Marielle Franco para marcar a solidariedade dos franceses com os defensores de direitos humanos no Brasil, sobretudo aos que estão engajados nas lutas das mulheres, dos negros e LGBTs, como Marielle.

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Para Márcia Tiburi, Marielle representava um “sonho político” que afrontava diretamente o “pesadelo” que o Brasil vive desde o Golpe de 2016 e que se aprofundou com o Bolsonarismo. “Marielle é o espectro que assombra o fascismo”, completou o ex-deputado do PSOL, Jean Wyllys, no vídeo exibido no evento como parte da campanha junto à Prefeitura de Paris para homenagear a vereadora do Rio, assassinada em 14 de março de 2018. Jean Wyllys, que também deixou o Brasil por sofrer ameaças de morte, gravou o vídeo e proferiu três palestras em Paris sobre a situação política brasileira ao longo da semana passada, uma delas na École de Hautes Études em Sciense Sociales (EHESS), a convite do Groupe de Refléxion sur le Brésil Contemporain (GRBC).

Nas manifestações em homenagem à vereadora carioca em Paris, com a participação de Wyllys e Tiburi, chegou-se a uma mesma constatação: a centralidade da luta das mulheres na resistência ao fascismo fez de Marielle um personagem universal. E por que Marielle se tornou esse símbolo? Em todas as intervenções, destacou-se sua condição de mulher, negra, lésbica, de origem pobre, mas sem esquecer sua ascensão social através da educação e da política, o que, segundo Marcia Tiburi, tornaram Marielle a materialização desse “sonho político” que ela encarnava.

“É mais que um nome de rua, é a prova da força da democracia e da vida”, disse a deputada carioca Mônica Francisco, dirigindo aos franceses e representantes da prefeita de Paris, Anne Hidalgo, presentes no evento. Mônica Francisco lembrou que a morte de Marielle lançou luz sobre a crescente violência política no Brasil e advertiu que precisa haver muita pressão externa para que se responda, de fato, a questão “Quem mandou matar Marielle?”. Responder essa questão, segundo Mônica Francisco, não diz respeito apenas ao caso Marielle, no qual há, comprovadamente, envolvimento das milícias cariocas. Para ela, a elucidação das execuções de Marielle e Anderson é importante também para a situação de outros militantes dos direitos ameaçados ou mortos no Brasil. Assim como fez Jean Wyllys, em Paris, Mônica Francisco voltou a denunciar as ligações da família Bolsonaro com as milícias do Rio de Janeiro.

O seminário, que, também teve o apoio da associação Autres Brésils e da Coletiva Marielles, faz parte da campanha da Red.br para obter uma decisão favorável da Prefeitura de Paris quanto ao seu pedido de homenagem a Marielle. A decisão do Conselho Municipal de Paris deve ser tomada na próxima semana. Marielle também foi homenageada na capital francesa, ao longo do mês, em outros dois eventos realizados pela associação Autres Brésils e pela Coletiva Marielle.

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