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Bairro do Recife 100 anos depois: História de vencidos e de esquecimento

Luiz Carlos Pinto / 15/06/2015

Há 100 anos a cidade do Recife precisava se re-inventar. Tinha que ingressar no circuito mundial de cidades modernas, antenadas com o que havia de mais interessante, eficiente, limpo e belo em termos urbanísticos. Era a forma pela qual a elite política, comercial e financeira local tinha de também ser reconhecida como tal. A estratégia mobilizada por esse novo Recife tomou a forma do que hoje é um dos principais cartões postais da capital de Pernambuco: o bairro do Recife.

A maneira pela qual ele foi construído deixou rastros que confirmam até hoje uma relação promíscua entre interesses privados e o governo; o desrespeito à legislação pertinente e a contínua adequação das regras ao interesse do capital; o privilégio restrito dos benefícios do desenvolvimento urbano; a formação de uma cidade legal e a construção enviesada de uma cidade de exceção.

O bairro do Recife completa um século sob a augusta sombra de uma modernização conservadora e excludente que impõe uma discussão inadiável: quem afinal planeja as cidades em que moramos? guiados por quais interesses? para quem nelas habitar?

Inês Campelo/Marco Zero

Inês Campelo/Marco Zero

Nenhum outro acontecimento na história do Recife expressa, de fato, a violência com a qual a cidade é ocupada pela força da grana que ergue e destrói coisas belas – até porque a construção do bairro, passados 100 anos, é a maior obra realizada em seu perímetro. Da população residente de 13 mil pessoas em 1910, 5 mil foram desalojadas em 12 meses. A evasão levou embora cerca de 10 mil pessoas num período de 13 anos. Isso, apesar da área total ter se expandido de 73 hectares para 90 hectares, graças ao aterro do mar e do mangue. Iniciadas em 1909, as obras se estenderam até 1926, mas o contorno atual do bairro já era conhecido em 1915.

O conjunto de remoções que atualmente acontece em terrenos e imóveis abandonados em todas as grandes regiões metropolitanas – por motivo de Copa, Olimpíadas ou por causa da especulação imobiliária – nas principais cidades brasileiras é só um indício de como a cidade legal e a cidade ilegal atualizam uma disputa que se dá em condições absolutamente desiguais.

Além da remoção pura e simples, outro aspecto marcou o processo, um século atrás: a elitização – ou gentrificação. Um total de 480 imóveis foram desapropriados e demolidos, além dos edifícios considerados ruinosos, não passíveis de desapropriação. Nesses casos, as pessoas neles residentes simplesmente tinham que se mudar antes das demolições começarem. Os 480 lotes desapropriados foram convertidos em apenas 127 à venda, com ágio que chegou a 300%.

A dificuldade de reaver seus bens forçou pequenos comerciantes, operários, artesãos, marinheiros, famílias inteiras a evadir-se para outras áreas, criando novos bolsões de miséria que a iniciativa higienista do período julgava ser capaz de debelar. Em seu lugar, o bairro do Recife passou a abrigar bancos, empresas de importação e exportação, associações comerciais, firmas de crédito. Não é por acaso que o primeiro imóvel erigido depois da onda de demolições tenha sido o do London and Brazilian Bank, em 1912. O conjunto de imóveis anteriores – em parte resquício da antiga aldeia construída pelos holandeses – se recolheu à vaga do esquecimento.

Inês Campelo/Marco Zero

Inês Campelo/Marco Zero

Eram majoritariamente pobres e pretos os removidos do velho bairro: soldados da fortuna, do amor ou da guerra; marinheiros desterrados, funcionários e empregados da Companhia das Índias Ocidentais, escravos de ganho, prostitutas e seus filhos, pequenos comerciantes, operários, artesãos, pescadores. Uma ralé que morava, trabalhava, dormia e amava no local que, além de servir como senha para entrada no circuito da modernidade, também deveria ser a porta de entrada ao visitante dessa cidade. Há uma história dos vencidos não contada sobre o Antigo, pois até agora o máximo que se tem feito é o registro histórico do legado arquitetônico atual – também o que foi demolido virou esquecimento.

A inadiável discussão que a efeméride impõe envolve os modelos adotados para a modernização das cidades brasileiras; e sua relação com as mudanças pelas quais o capitalismo vem passando desde pelo menos 1970.

Para a professora da Universidade de São Paulo, Ermínia Maricato, as obras de reforma que resultaram no conjunto arquitetônico do bairro do Recife são um claro exemplo do princípio de ideias fora do lugar. “Quando as obras de reforma do bairro do Recife aconteceram, a base produtiva, a forma de produzir riqueza no Brasil ainda dependia de relações herdadas do escravismo e do poder colonial, mas a cabeça que pensou as intervenções era liberal, impregnada de ideias e ideais importados da Europa”, afirma.

A matriz dessas ideias, no que se refere ao urbanismo, foi grande reforma realizada em Paris entre 1853 e 1870 – que pretendeu por sua vez solucionar questões relacionadas à segurança estratégica, saneamento, moradia, circulação, ambientes de socialização, abastecimento de água. “Embora realizada no conservador governo de Napoleão III e comandada pelo não menos conservador engenheiro urbanista Georges-Eugène Haussmann, o projeto pensava a cidade de Paris de forma global, inclusive em termos metropolitanos. Nós só começamos a pensar nesses termos em 1970…”, afirma o professor do Mestrado em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco, Tomaz Lapa.

Inês Campelo/Marco Zero

Inês Campelo/Marco Zero

É por essas razões que a reforma, realizada por um corpo técnico experiente (já havia sido testado nas intervenções bem sucedidas em Bourdeaux) influenciou diversas cidades no mundo e inspirou as obras de modernização mais ou menos no mesmo período no Rio de Janeiro e em São Paulo. É também nesse sentido que o conjunto de reformas que tornou possível o bairro do Recife como o conhecemos hoje é resultado de uma transposição das intervenções urbanísticas realizadas na cidade-luz .

Para Ermínia Maricato, no Brasil se consolidou “um urbanismo de exceção, que faz emergir uma cidade segregada, a partir de um aparato legal desenvolvido sem olhar a cidade como um todo e que beneficia somente uma parte da sociedade”, afirma. Ou seja, ao invés do que ocorreu em Paris, a intervenção em Recife foi pontual, contingente, para atender uma parcela da sociedade e uma parte da cidade. O mesmo padrão se repetiu nas reformas que ocorriam na mesma época em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Essa interpretação reforça o entendimento da pesquisadora Cátia Lubambo, da Fundação Joaquim Nabuco, cuja pesquisa de doutorado teve como objeto o conjunto de reformas do Bairro do Recife – ainda hoje o trabalho mais importante sobre as reformas de um século atrás. “A transformação do antigo bairro em um ‘centro moderno’ parece ter sido concebida como um projeto de grupos particulares locais, comerciais e financeiros, unidos a grupos estrangeiros, que detinham interesses no local, objetivando-se fortalecer-se à frente às elites sociais que se consolidavam no poder com a República”, escreveu. Esse intento não foi alcançado, visto a decadência a que se entregou a aristocracia canavieira de Pernambuco.

A pesquisadora identificou que a reforma do bairro foi tocada por práticas de concessão de privilégios, clientelismo e troca de favores – por exemplo na preferência ao uso dos terrenos abertos com as demolições. E também pelo benefício do Estado ao capital financeiro, na obtenção de recursos com os quais foram financiadas as obras de outros setores, incluindo não apenas quem adquiria novos terrenos, mas as firmas construtoras, fornecedores de material de construção e as companhias de serviços de montagem e transporte de materiais.

“A relação entre o capital privado e o governo, a busca por se obter um retorno o mais rápido possível da exploração da terra e da cidade, isso não muda. O que muda é a sociedade. As intervenções no bairro do Recife se diferenciam em muitos aspectos das intervenções realizadas hoje, sobretudo pela escala. Um século atrás todo um bairro veio abaixo. Hoje esse tipo de intervenção esbarraria numa sociedade civil mais informada, mais articulada”, afirma.

Se é verdade que o interesse em obtenção do retorno rápido dos investimentos e a relação com o Estado continuam os mesmos, por outro lado há que se considerar como o Estado brasileiro e seus governos se complexificaram, desenvolvendo mecanismos de regulação, instâncias de negociação e legislações que em tese deveriam fornecer as condições para que a cidade atenda às necessidades de sua população. Em tese.

“Apesar disso tudo, apesar da regulação, das instâncias de negociação, da disposição por pensar racionalmente a cidade, estamos reproduzindo o ornintorrinco de Francisco de Oliveira, pois nossa modernidade e nosso capitalismo são precários”, afirma. O Estado se transformou mas para continuar o mesmo.

Inês Campelo/Marco Zero

Inês Campelo/Marco Zero

 

Leis, reestruturação e exclusão urbana

Se por um lado as leis e instâncias de planejamento, fiscalização e controle não evitam – ao contrário, legalizam – exclusão urbana; por outro lado um processo mais básico vem orientando o desenvolvimento das cidades: a reestruturação do Capitalismo, que acontece pelo menos desde a década de 1970.

Para o professor Tomaz Lapa esse processo se reflete de maneira muito específica sobre o tecido urbano: “até 1950 as legislações procuravam orientar o crescimento da cidade como um todo. Depois desse período, a legislação passa a se desligar da cidade como tal para que assim o Capital possa atuar de maneira mais livre do que jamais esteve. Sem as amarras de intervenção legal impostas pelo conjunto de legislações anteriores”.

Na prática, depois de 1950, a legislação procura se adequar e fornecer as condições para que o capital imobiliário intervenha nos lotes e não sobre a cidade como um todo. Em Recife, essa mudança na legislação pode ser associada ao mapa da cidade: “a última grande intervenção na cidade como um todo foi o conjunto de obras que formou a avenida Guararapes e os prédios do entorno. A partir da Guararapes, o restante da cidade é uma grande colcha de retalhos resultante de intervenções contingentes e pontuais”, afirma o professor Tomaz Lapa.

Também não é por acaso que os principais pontos de tensão entre o interesse público e o setor imobiliário sejam formados por grandes glebas, ao invés de pequenas áreas: o bairro de Santo Amaro, Vila Naval (125 mil metros quadrados), Ilha do Zeca (258 mil metros quadrados), Cais José Estelita (100 mil metros quadrados), Ilha do Amor (18 hectares), Paiva (área de 526 hectares com uma faixa de 8,5 Km de praias e 200 hectares de Mata Atlântica preservada) são todos casos em que se procura instalar ilhas de prosperidade isoladas.

Inês Campelo/Marco Zero

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A professora Ermínia Maricato concorda em parte com essa tese: “na verdade, o planejamento urbano no Brasil nunca reconheceu a cidade como um todo. Recentemente isso ficou mais claro, mais evidente, na forma de cidades dentro de cidades, de ilhas de higiene e ordem cercadas de caos por todos os lados”, afirma.

“No caso de Recife, Salvador e São Paulo, a necessidade de atender aos desígnios do Capital vão além da pulverização e flexibilização da legislação. Trata-se da ilegalidade aberta”, reforça a professora Erminia Maricato. “Os países do primeiro mundo controlaram a terra. A terra regulada é um obstáculo. Isso agora está solto”, diz.

Política e Lei

Esse cenário macro-econômico de flexibilização da legislação é agravado pelo caráter dos financiamentos de campanhas – que dependem do setor imobiliário pesadamente – e pela dificuldade que o Judiciário também tem de pensar a cidade de forma mais global. “O Brasil tem um arcabouço legal novo no que se refere às cidades. O Estatuto da cidade e novos Planos Diretores. Mas essas legislação é desconhecida pelo Poder Judiciário. Ou seja, os juízes não conhecem essa legislação. Assim como parte dos integrantes de Ministérios Públicos Estaduais e Federais”, afirma Maricato.

Inês Campelo/Marco Zero

Inês Campelo/Marco Zero

Se o conjunto de reformas de um século atrás foi possível é, em grande parte, por causa da inexistência, então, de uma sociedade mais protagonista, afirma a professora Cátia Lubambo. “É preciso diferenciar os tipos de intervenção realizados no Bairro do Recife e o conjunto de intervenções que acontecem atualmente por sua escala, que hoje é menor. Um século atrás um bairro inteiro foi demolido sem a mínima preocupação com o patrimônio histórico. Isso não aconteceria hoje pois a sociedade amadureceu e pressionaria, como vem pressionando no caso do Cais José Estelita”, afirma, referindo-se à disputa empreendida entre setores da sociedade civil organizada, contra a administração municipal e o consórcio Novo Recife.

“Por outro lado, nós precisamos qualificar o Judiciário. Não adianta termos uma legislação moderna como o Estatuto da Cidade e termos juízes que não sabem nada de Planejamento e geografia urbana. Precisamos qualificar o Judiciário para evitar os abusos que se verificam em todas as grandes regiões metropolitanas do país”, completa Ermínia Maricato.

Nesse sentido, uma questão fundamental é problematizar a afirmação do caráter social propriedade, assinalada na Lei, mas que só é interpretada de forma absoluta pelos integrantes do Judiciário.

Para ser bem sucedido, o urbanismo de exceção depende da ignorância e do desconhecimento. “Assim além de qualificar o Judiciário, precisamos realizar a crítica radical dessa situação e um dos locais privilegiados para que isso aconteça é justamente as ruas”, afirma Maricato.

A disposição documental de Benício

O conjunto de reformas que transformou a Ilha de Antônio Vaz no cartão postal da elite pernambucana no início do Século XX foi extensamente documentada. A maior parte das fotos está sob a guarda da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), mais especificamente sob a coleção Benício Tavares Whatley Dias. Entretanto, nem todos os registros foram feitos por esse que é um dos mais importantes fotógrafos e colecionadores do início do Século XX.

Nascido em 8 de novembro de 1914, Benício Dias não chegou a testemunhar as demolições e obras de construção do Bairro do Recife. Só viria começar a fotografar em 1930, antes de completar 16 anos. Isso não impediu que logo cedo começasse a colecionar álbuns de fotografias, que lhe chegavam às mãos de variadas maneiras. Mas, mais do que colecionar, Benício logo desenvolveu um acurado olhar documental.

Não é por acaso que a coleção que leva seu nome tem tão importante conjunto de registros dos imóveis e ruas reviradas durante o processo de invenção do novo bairro. A coleção sob a guarda da Fundaj tem 2.392 documentos fotográficos. Um livro sobre a vida do (também desportista) Benício Dias está em processo de construção, por iniciativa da Companhia Editora de Pernambuco e da Fundaj.

A seguir, um passeio pelo acervo da coleção.

A construção do bairro como resultado das três reformas urbanas

As intervenções urbanísticas que criaram o Bairro do Recife ficaram conhecidas como os Planos de Melhoramentos e Reforma do Porto e do Bairro do Recife (1909-1926), e o Plano de Saneamento do Recife (1909 – 1915). Foram ações que propunham a modernização portuária, a melhoria do acesso ao porto, além da abertura de duas avenidas (Marquês de Olinda e Rio Branco) e o alargamento de ruas transversais. Tais intervenções implicaram em um número expressivo de demolições, praticamente tudo o que ainda restava do bairro holandês, incluindo a Igreja do Corpo Santo, seu largo e o conjunto de sobrados seus vizinhos. E nas construções de novos imóveis.

Propostas de remodelação do bairro começaram a surgir ainda no Século XIX. Mas foi somente no início do Século XX que se consolidaram em um programa de intervenções. Além dos interesses dos grupos particulares locais, as intervenções também procuravam atender à influência cultural e econômica de estrangeiros, cujos investimentos se intensificariam entre 1900 e 1932. Nesse período, as sociedades comerciais estrangeiras chegavam a ser 65% do total, atuando principalmente nas grandes obras públicas e na estruturação da rede bancária.

Os ingleses (44% das empresas com capital estrangeiro) se dedicavam à construção de estradas de ferro, seguros, empréstimos públicos e bancos; os americanos (23%) se dedicavam à produção agrícola e comercial e à exportação de café; o capital francês (15% das empresas estrangeiras) investiam na indústria açucareira, construção de portos, equipamentos de cidades, transações financeiras (bancos, companhia de seguros), estrades de ferro; já os alemães (43% dos negócios de fora) preferiam investir em comércio externo e no setor bancário.

A efetividade desse conjunto de intervenções também se explica pela pressão realizada por transformações no tecido social: nas últimas décadas do século XVIII a economia açucareira passava por uma forte transformação, convivendo com uma ideologia da modernização e esses dois fatores resultaram na transformação da paisagem rural por padrões e estilos tipicamente urbanos. Ao mesmo tempo, proprietários e trabalhadores do capo eram forçados a trocar de atividades e a mudar-se para o Recife – onde os novos valores urbanos que acompanhavam a modernização aportavam. Esses fatores pressionaram a elite burguesa e urbana local a acompanhar hábitos do Rio de Janeiro e da Europa.

É interessante observar também que o porto do Recife precisa escoar uma certa produção local e receber de forma mais bem estruturada os bens que viam de fora. Daí a necessidade de abrir avenidas, extinguindo as vielas por onde se equilibravam um grande número de construções precárias. A grande densidade populacional da Ilha de Antônio Vaz se explica pela existência de muitos sobrados, com atividades comerciais em seu térreo e moradias nos andares de cima.

Passado, presente e futuro

Apesar da evasão provocada pelas obras de 100 anos atrás, o bairro do Recife ainda abriga moradias. Assim como no início do século XX, muitos trabalham e moram nas ruas em condições de precariedade contínua. Como antes, essa parcela da população presta pequenos serviços e convive com a condição de invisibilidade e vulnerabilidade social.

A retomada do bairro do Recife como ponto turístico nos anos 2000 e a atual consolidação como referência de parque tecnológico, centro de consumo e entrada da cidade (graças às mais recentes obras requalificação e reurbanização de áreas usadas para operação portuária) não alterou o cenário do trabalho e da moradia precarizada do local.

É possível afirmar que esses são efeitos das intervenções pontuais e contingentes que se dirigem ao benefício específico de parcelas da cidade e da sociedade. O festejado ecossistema da informação e serviços que usa o bairro como plataforma física também é uma ideia fora do lugar, ou descolada do lugar.

Bem o comprovam três moradores e trabalhadores do bairro, com perspectivas e vínculos diferentes à vida do local.

Teresa Cristina lembra com saudade do bairro na década de 50. Foto: Inês Campelo/Marco Zero

Teresa Cristina lembra com saudade do bairro na década de 50. Foto: Inês Campelo/Marco Zero

Tereza Cristina da Silva ainda lembra com carinho o ramo de alecrim que recebeu numa carta que seu namorado marinheiro lhe enviara do Egito. Corria o ano de 1955 ou 1956, “o melhor tempo desse lugar. Como era lindo ver a movimentação das ruas, o porto cheio de barcos, tanta gente diferente falando outras línguas”.

– “Eu morava numa das pensões perto da rua da Moeda, trabalhava no porto fazendo mandados, não era funcionária. Levava recados, transportava pequenas mercadorias de um lado a outro”.

– “Namorei muito. Como namorei… minhas amigas todas já morreram, meus filhos cada um tem sua vida”.

Hoje dona Tereza Cristina trabalha guardando carros. Trabalhava. Os setenta anos pesam na hora de competir com rapazes e moças na disputa pelo canto da rua de cada dia. Aposentada, tem tido dificuldades de manter as contas em dia. Mudou-se para Pau Amarelo, mas vez em quando chega no velho bairro, talvez saudosa da sorte de quem já morou em área portuária – onde as constantes chegadas e partidas oferecem as chances de um trabalho e ou do encontro com o amor.

Na última sexta-feira, a namorada do marinheiro egípcio olhava com ternura uma fotografia que já não há, que ninguém fez, mas que é (era) colorida e promissora.

Marlene mora no bairro do Recife e paga R$ 600 no aluguel de um quarto. Foto: Inês Campelo/Marco Zero

Marlene mora no bairro do Recife e paga R$ 600 no aluguel de um quarto. Foto: Inês Campelo/Marco Zero

Marlene Maria da Silva está no presente e não vê fotografias. Opera a conta diária de um certo número de chapéus que precisa vender. Marlene, ou Aninha, como prefere que lhe chamem, paga mensalmente um aluguel abusivo de R$ 600 por um quarto no bairro do Recife. Provável que encontrasse valor menor e para mais amplo local.

– “Mas eu sou daqui, aqui é meu bairro. Minha família desistiu de mim e foi aqui que fiz amizade”.
Aninha consegue todos os dias vencer o crack, que não usa há mais de um ano, mas que lhe deixou com poucos dentes. “Vou consertar isso também. Viciei porque tava apaixonada, namorava uma prostituta dali – aponta para a rua da Moeda.

Marlene vive o dia a dia no bairro sem pressa pelo que vem, nem saudade do passado.

Edimilson guarda carros e sonha em tirar a carteira de motorista. Foto: Inês Campelo/Marco Zero

Edimilson guarda carros e sonha em tirar a carteira de motorista. Foto: Inês Campelo/Marco Zero

Edmilson Maciel Caldeira ouve Marlene calado e sério, atento aos clientes que conseguiu fazer nos últimos seis anos em que atua como guardador de carros no bairro. Espera a chegada de cada um deles na manhã de cada dia, um molhe pesado de chaves no bolso denuncia a confiança dos que deixam seu carrinho para ser guardado. Seis anos atrás foi Biu (raro caso de um Biu que não se chama Severino, mas Edmilson), quem desistiu da família, “cansei de me dizerem que era vagabundo. Minha mãe me acusava de viver para bater panela”.

– “Hoje moro aqui do lado (aponta pra um dos maiores representantes arquitetura eclética que transportaram para o bairro 100 anos atrás), o dono do prédio mandou instalar chuveiro, banheiro pra mim”.

– “Tô esperando juntar mais dinheiro. Tô fazendo meus documentos. Vou trabalhar noutro lugar”.

– Vai fazer o quê, Biu?

– “Vou ser motorista, aproveitar que aprendi a dirigir aqui”.

Biu explica que vai conseguir. “Um dia desses encostei no carro dum cliente. Ele não me culpou. Descontou o serviço em seis meses de trabalho. Outra vez foi um guarda que me pegou. Não tenho carteira né? O dono do carro ficou com a multa e também descontou devagarzinho”.

Biu espera com a calma da certeza o dia em que dormirá na sua casa depois de um dia inteiro de trabalho como motorista.

AUTOR
Foto Luiz Carlos Pinto
Luiz Carlos Pinto

Luiz Carlos Pinto é jornalista formado em 1999, é também doutor em Sociologia pela UFPE e professor da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisa formas abertas de aprendizado com tecnologias e se interessa por sociologia da técnica. Como tal, procura transpor para o jornalismo tais interesses, em especial para tratar de questões relacionadas a disputas urbanas, desigualdade e exclusão social.