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Carrero, o escritor que mudou de corpo

Samarone Lima / 11/08/2015

Tudo aconteceu há quase cinco anos. Num espaço de dois meses e 19 dias, um homem saiu do céu e visitou o inferno. Teve que passar pelo purgatório – e ele tinha um nome: o próprio corpo.

Vamos voltar no tempo.

No dia dois de agosto de 2010, Raimundo Carrero de Barros Filho, décimo filho de uma família de 11 irmãos, estava com 63 anos e chegara à final de um dos mais importantes prêmios literários do Brasil – o Prêmio São Paulo de Literatura.

Seu romance, Minha alma é irmã de Deus, já conquistara pouco antes o prestigiado prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional.
No Museu da Língua Portuguesa, concorrentes de peso aguardam o anúncio do vencedor: Chico Buarque, João Ubaldo Ribeiro, Luiz Rufatto, Reinaldo Moraes, Rodrigo Lacerda, Ricardo Lísias. Todos tinham passado por uma rigorosa seleção. Foram inscritos 217 romances.

Quando seu nome foi anunciado, Carrero deve ter pensado em muitas coisas. Talvez tenha passado o filme imaginário de sua grande luta com as palavras, desde a infância em Salgueiro, à primeira novela, escrita aos 21 anos, Grande Mundo em quatro paredes, compartilhada com seu primeiro mestre, Ariano Suassuana, e jamais publicada.

Ou talvez não tenha passado, é especulação barata de quem escreve este perfil ao avesso de Carrero. Pode ser que ele tenha apenas soltado aquela gargalhada estrondosa, os braços abertos, a celebração, e a pergunta – “cadê o cheque”?, como fez em outra famosa premiação. Além do reconhecimento nacional, desta vez um reforço no orçamento – R$ 200 mil brutos.

Durante dois meses e 19 dias, o homem esteve no céu. Entrevistas, convites, propostas, festivais, palestras. No brutal mercado literário, onde as grandes editoras investem pesado em seus autores, ele era a bola da vez. Com a disposição de um touro, ele não se negava às muitas entrevistas, viagens. E e farras, claro. O homem sempre gostou de festa, copo cheio, talheres e mesa farta por perto.

“Mas para o Escritor, café da manhã, durante muito tempo, era uma macarronada com vinho tinto. Só depois uma xícara de café. Em seguida, trabalho. Muito trabalho. Em casa, romances e novelas. Na repartição, matérias jornalísticas, críticas, resenhas de livros, a escrita da coluna. Para acabar a manhã, mais uma cerveja, seguida de uísque, muito uísque, arroz, feijão, carne em abundância, feijoada, galinha guisada ou um cozido. À tarde e à noite aulas, parando apenas para estudar ou para escrever. Mais adiante, jantar e leituras, dormir só depois da meia-noite e acordar de madrugada para escrever”.

Quem quisesse saber de sua vida, naquele momento de esplendor literário, bastava comprar o livro Raimundo Carrero – A fragmentação do humano, do escritor Marcelo Pereira, que acabara de ser lançado.

Era uma publicação definitiva sobre o “Sísifo pernambucano”, como o denomina Marcelo, com análise detalhada da vida e obra, artigos de especialistas, críticos, bibliografia detalhada, fotos.

Uma legião de alunos acompanhava sua conceituada Oficina de Criação Literária, projeto que iniciara em 1989, na extinta Livraria Síntese.
Dinheiro no bolso, bem casado com sua Marilena, matérias nos principais jornais do País, analisando sua obra, amigos e admiradores, Carrero estava na boa – e sem freio algum.

Mas seu corpo, “a única certeza que nos acompanha desde o nascimento até a morte”, nos dizeres de Clarice Lispector, preparava um salto mortal rumo ao chão. Chegou a pesar 110 quilos de farra.

“Você está tendo um AVC”

Há dois relatos sobre o amanhecer de 19 de outubro de 2010. Um “na vera”, outro literário.

Na vera:

Acordou às 4h30. Chovia muito no Recife. “Vou tomar um banho”, pensou Carrero.

Mas havia algo estranho.

“Procurei o corpo, e ele não me atendeu. Tentei para um lado, para o outro, e não saía do lugar”.

Literariamente: (texto do romance O senhor agora vai mudar de corpo).

Se não existisse outra palavra, poderia dizer que está feliz, dessa felicidade que é acordar ao lado da amada, a pele saudável e cheirosa. Porque ela está ali no sono de mulher serena: os cabelos negros derramados no travesseiro, o rosto pacífico de olhos fechados, a leveza de uma respiração de brisa. Uma pena, uma grande pena ter de acordá-la pelo nome e dizer “acorda”. Mas é preciso, porque, apesar da doçura da manhã, o corpo não obedece. Agora, já não tem mais escrúpulos. Chama-a pelo nome e, mais uma vez, definitivamente, impulsiona o corpo. Coisa esquisita isto de sentir o corpo sem movimento, sem agilidade, sem força. Tenta um pulo, cai sobre a mulher, que resmunga alguma coisa.

-O que é isso?

Parece responder:

-Estou sem forças.

Ela o afasta com vigor, mas sem agressividade.

– Você está sofrendo um AVC… Vamos para o hospital”.

Marilena de Castro, sua mulher, conta:

Na vera:

“Estava deitada e senti um braço batendo em mim. Estranhei. Depois, de novo. Levantei e acendi a luz. Ele estava com a boca torta, mas não falava coisa com coisa.

“Carrero, você está tendo um AVC”, disse.

Como é médica, ela sabia que começava uma corrida contra o tempo. Ligou e pediu uma ambulância, com urgência. Em 15 minutos, chegou. Em poucos minutos, chegaram ao Hospital Português.

Naquele momento, ela acredita que ele estava inconsciente.

Literariamente: (no conto E agora, Raimundo?)

No meio da noite senti seu braço bater no meu corpo e bater outra vez. No quarto escuro, esfreguei os olhos, ainda sonolentos, acendi a luz. Ele estava atravessado na cama, rosto desfigurado, sorriso torto. Tentava se levantar da cama, não conseguia falar, a voz engrolava.
A madrugada nos encontrou nas ruas que passavam rápido sem nos olhar, atenta apenas à madrugada que findava.
Passei o dia sonolenta e em estado de torpor. Sentia a vida pesar, sono os olhos, lágrimas sem choro, a angústia seca a garganta, faltava-me o sol, lembrava o sonho de chuva nas ruas desertas, a chegada ao hospital, a maca que rodava lenta, os monitores que mediam a vida, as paredes claras, pisos brancos.

Aí deitado de costas, luzes pousaram e passaram através do teu corpo. Você foi a um lugar que só você se reconhece”.
Carrero descreve a lembrança possível de seu caminho até o Hospital:
“… Agora, é apenas um traste velho interrompendo o trânsito da cidade com o corpo falido numa ambulância barulhenta”.

**

Um AVC isquêmico.

Carrero acordou “como um corpo rebelado, o lado esquerdo inativo, a perna rija, os músculos indomáveis”.

Dois dias na UTI. Tomografias, exames, medicamentos, entre a realidade e o delírio. No horizonte sombrio, duas possibilidades – ficar sem a voz e sem a visão. O primeiro dia foi de escuridão absoluta.

“Vamos esperar 48 horas”.

Aos poucos, a visão retorna. A fala, no entanto, é rachada, confusa. As palavras saíam a muito custo.

Os dias passam. O homem acostumado com a eloquência, dado à espontaneidade, à boa conversa, ao sorriso escancarado, agora sente que cada palavra é como “cuspir uma pedra”. Pior – “uma pedra de fogo”.

“E se recolhe no silêncio do espírito, no escondido silêncio do espírito que se enche de dor e de agonia, pleno de resignação e de desesperança. Mesmo assim, gosta de receber visitas, morto de vergonha, porque não consegue falar. Morto de vergonha, porque não pode falar, não pode se mover, não pode viver. Tudo é aterrador. Medonhamente aterrador. Estava com vergonha de viver. Com vergonha e com nojo.

E, no entanto, causava-lhe espanto morrer.

-Por pouco, muito pouco, amigo, você não perdeu a fala definitivamente. A fonoterapia irá ajudá-lo bastante, mas seu lado esquerdo está devastado…”

Dezessete dias, até voltar pra casa.

Uma cuidadora foi a primeira a dizer:

“O senhor agora vai mudar de corpo”.

A vida, agora, tinha um estranho: o próprio corpo. Um intruso, que se recusava a obedecer. As coisas tão simples, quanto falar, tomar um copo d’água, sentar e escrever, são coisas para o futuro. Ele estava fora do lugar. Mas ninguém sabia se ele, o antes bendito corpo, voltaria. Nem quando. Nem como.

A alma deste “Dostoievski hirsuto e sacana”, ou de um “Balzac barroco e bárbaro”, nas palavras do escritor e crítico Lourival Holanda, padecia. Era tempo de espera. Uma longa caminhada se anunciava.

“Não temas. Estou aqui”.

Que irônica é a vida. Parte do prêmio serviu para ajudar na recuperação. A estrutura montada em casa, com cama hospitalar, cuidadores, médico, fonoaudiólogo, fisoteraupeuta, precisava de complementos.

“É como se ele tivesse nascido de novo. Teve que aprender a sentar, pegar num copo, comer, escrever. Foi uma luta, Samarone. Foi passo a passo”, conta Marilena, com os olhos amorosos, voltados para Carrero, na certeza do amor.

A angústia, porém, era não conseguir escrever. Chegou a ditar trechos de um romance para a fisioterapeuta, mas não funcionou. A desesperança se instalou.

“O Escritor devastado pela angústia de não poder reagir”.

“Eu chorava muito. Bastava que uma irmã falasse comigo, que eu começava a chorar”, lembra Carrero.

Médica homeopata, Marilena percebeu o início da depressão e providenciou florais.

“Achei melhor usar a minha ciência. Segui minha medicina”, diz.

A agonia começou a se desfazer. O homem começou a reagir. Com o indicador da mão direita, começou a escrever um novo romance. A princípio, seria algo sobre a doença, mas um personagem recorrente seu, Tia Guilhermina, se apresentou.

De tecla em tecla, foi nascendo Tangolomango – Ritual das paixões deste mundo, publicado em abril de 2013, pela editora Record.

Em 2014, perdas irreparáveis. Quatro irmãos morreram, num intervalo de poucos meses: Felipe, Geralda, Waldemar e Thereza. Outra irmã levou uma queda e perdeu a perna. Em julho, perdeu seu grande mestre e amigo de décadas, o escritor Ariano Suassuna.

“Foi um baque muito grande. Eu rezava e pedia: Meu Deus, não deixe ninguém morrer mais! É arrasador”.

Um dia, o mistério surgiu. Uma iluminação? Uma epifania? Um lampejo divino? Escutou uma frase:

“Não temas. Estou aqui”.

Pergunto se era a presença de Jesus Cristo.

“Cheguei a pensar que era ele falando comigo. Mas não… não pode ser. Não, não era Jesus não. Eu sou pobre demais para ele falar comigo”, responde.

Mas sentiu, ali, a cura.

Com o mesmo indicador, escreveu o segundo romance, que aborda literariamente o AVC . O senhor agora vai mudar de corpo foi lançado este ano e já está na segunda edição.

Pergunto se fez promessa, para ter o corpo de volta.

“Fiz não. Eu tenho medo de estar negociando com Deus. Meu agradecimento vai ser escrever um livro sobre Jesus Cristo”.
Em nosso último encontro, chego atrasado ao seu prédio e vejo Carrero seguindo, sozinho, se amparando de vez em quando na parede, e o alcanço.

“Senti vontade de tomar uma Coca-Cola”, diz.

Seguimos juntos. Na esquina, ele avista uma garrafa de Teacher´s, vazia.

“Já fui muito bom nisso”, diz, sorrindo.

Na volta, fico sabendo pela cuidadora que ele já está se metendo em aventuras.

No dia 16 de julho, saiu de casa, pegou um táxi e foi ver a missa na festa de Nossa Senhora do Carmo.

Carrero assistiu uma parte da missa, no meio da multidão, depois voltou, sozinho.

“Se eu tivesse vontade mesmo, teria acompanhado a procissão”, diz.

É o lado exagerado do homem. A procissão sairia do Recife e iria até Olinda, uma distância de sete quilômetros.

Deve ter voltado com mais inspiração para seu novo romance sobre Jesus, que vai se chamar O condenado.

AUTOR
Foto Samarone Lima
Samarone Lima

Samarone Lima, jornalista e escritor, publicou livros-reportagens e de poesia, entre eles "O aquário desenterrado" (2013), Prêmio Alphonsus de Guimarães da Fundação Biblioteca Nacional e da Bienal do Livro de Brasília, em 2014. Em 2023, seu primeiro livro, "Zé", foi adaptado para o cinema.