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Centros de barbárie: tortura move estrutura dos presídios brasileiros, diz Pastoral Carcerária

Débora Britto / 19/12/2018

Foto: Pastoral Carcerária

A noção de tortura como algo que acontece dentro de quatro paredes, com técnicas e instrumentos específicos, não é suficiente para pensar a realidade da população carcerária no Brasil. Relatório da Pastoral Carcerária Nacional aponta que um em cada dez casos resultou na morte da pessoa presa. A pesquisa realizada durante quatro anos (entre 2014 e 2018) acompanhou 175 casos. “Esse mosaico de horrores nos ajuda a compreender as novas dinâmicas da tortura, bem como a produção da morte operada nas entranhas do sistema prisional”, diz o documento.

Existem várias formas de tortura, desde a negação de informação a agressões físicas, do constrangimento das famílias em dia de visita à falta de medicamentos para pessoas portadoras do vírus HIV. A tragédia se estende ao longo da pena do preso e segue com ele após a liberdade.

Na divulgação do relatório Tortura em tempos de encarceramento em massa, no último dia 15, em São Paulo, Paulo César Malvezzi Filho, assessor jurídico da Pastoral nos últimos quatro anos, ponderou que, apesar de ser um documento bastante enfático, o relatório talvez não consiga expressar a amplitude do sofrimento das pessoas presas e suas famílias. “O desafio de auxiliar de modo efetivo continua. Nós não fazemos um ranqueamento pois não dá para afirmar que um estado está em situação pior”, explica. Os casos acompanhados abrangem todos os estados da federação e o Distrito Federal.

A favor do abolicionismo penal, a Pastoral Carcerária defende que a solução para o problema das prisões precisa passar pelo desencarceramento. Ou seja, o fechamento de prisões. Para Malvezzi, as conclusões do relatório apontam que a questão é também política. “A prática da tortura está profundamente enraizada nos espaços de privação de liberdade, mas é dinâmica e está em constante transformação. As falhas do sistema de justiça no que tange à documentação e à apuração dos casos de tortura não são exatamente falhas, reiteradas de forma sistemática constituem um verdadeiro sistema de legitimação da violência estatal”, diz.

Segundo ele, o agravamento de casos de tortura no ambiente prisional está conectado ao processo de encarceramento em massa. “Esse processo só pode ser revertido por meio de uma política substancial de redução da população prisional, como apontamos na Agenda Nacional pelo Desencarceramento”, argumenta. Entre as conclusões do relatório, a Pastoral aponta que “o sistema de justiça, por meio de omissões e medidas absolutamente inaptas para documentar, apurar e responsabilizar o Estado e seus agentes pelos casos de tortura e outras violações de direitos no cárcere, opera, na prática, como uma rede de proteção e legitimação da ação estatal”.

Números da tortura

Segundo a pesquisa verificou, a tortura está distribuída em todos os espaços de privação de liberdade e atinge também as famílias, por meio de revistas vexatórias, tratamento humilhante durante as visitas e da negação de informações sobre os processos jurídicos.

Ao analisar o conteúdo dos casos, o relatório aponta que muitas vezes as vítimas sofrem mais de um tipo de violação de direitos e práticas de tortura. Portanto, a tortura acontece de forma complexa, multifacetada e está em constante mudança. Por esse motivo, a responsabilização dos autores também é um desafio para quem denuncia.

As denúncias envolvendo familiares de pessoas presas representam 16% do total dos casos acompanhados, com destaque para os relatos de revista vexatória e outros tratamentos humilhantes ou degradantes a que são submetidos os parentes durante as visitas.

O relatório também chama atenção para o número de mulheres vítimas de tortura. Apesar de representarem por volta de 5,8% do total de pessoas presas, na pesquisa elas aparecerem em 21% dos casos de tortura e outras violações de direitos denunciados à Pastoral Carcerária Nacional. Do total, 8% dos casos envolveram simultaneamente como vítimas homens e mulheres.

Tortura em presídios pernambucanos

O relatório contabiliza três casos em Pernambuco. A superlotação no Presídio Desembargador Augusto Duque, em Pesqueira, no agreste pernambucano, é uma das piores já verificadas pela Pastoral, que classificou como “gravíssima” a situação e chamou a unidade de “bomba relógio”.

“O Presídio de Pesqueira é um exemplo evidente de como a tortura deixou de ser apenas uma prática individualizada, com responsáveis bem definidos, e passou de fato a ser estrutural e difusa. Em uma unidade com quase 700% de lotação, imunda, com ausência de serviços básicos e onde a violência é rotineira, a própria experiência prisional torna-se um experiência de tortura, com profundos impactos psíquicos e fisiológicos nas suas vítimas”, explicou Malvezzi.

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Presídio Desembargador Augusto Duque, na cidade de Pesqueira/PE. Foto: Pastoral Carcerária

Projetado para abrigar 144 pessoas, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, o presídio tinha à época da visita, em 25 de outubro de 2017, cerca de 1.000 presos. A Pastoral registrou que meses antes o número era ainda maior, de acordo com relatos de servidores e presos.

A estrutura do presídio, nas palavras da Pastoral, está “absolutamente arruinada”, não sendo possível qualquer tentativa de reforma sem que se resolva a questão da superlotação. “Qualquer tentativa de reforma ou reconstrução é absolutamente fútil diante do quadro agudo de hiperlotação, que põe sob pressão extrema toda a estrutura física, sanitária, elétrica e hidráulica do edifício”, sentencia.

A vistoria detectou infiltrações, fios elétricos expostos, roupas, toalhas, colchões e tecidos inflamáveis espalhados por diversas alas da unidade. Além do modo como os próprios presos realizam a organização dentro da unidade, a equipe encontrou lixo espalhado, restos de comida e muitas moscas por todo o local, tornando insalubre a vida naquelas condições. Segundo a Pastoral, há evidente risco à vida e à integridade física de presos e trabalhadores do sistema.

o relatório também aponta superlotação, deficiência da estrutura física e de abastecimento de água potável, ausência de assistência jurídica e agressões em Arcoverde, no Presidio Advogado Brito Alves.

Na Colônia Penal Feminina, no Recife, uma denúncia anônima chamava atenção para a omissão de gestores e órgãos de fiscalização. A autora de denúncia declarou que já sofria perseguição devido a outras denúncias anteriores, por isso preferiu não se identificar. Entre as questões levantadas está o envio arbitrário das mulheres para celas de castigo, sem razão aparente ou por motivos fúteis. De acordo com a denúncia, “as celas são descritas como ‘medievais e desumanas’, tendo em vista o estado deplorável em que se encontram: “são muito sujas, fétidas, há presença de muitos mosquitos, baratas e ratos, e por vezes, o vaso sanitário fica entupido por dias. São escuras e insalubres, não há ventilação adequada, nem lâmpadas”.

Para a Pastoral, a natureza dos fatos denunciados confirma a prática de crimes de tortura, de acordo com a legislação brasileira (Lei n.º 9.455/97) e tratados internacionais que o Brasil subscreve. As condições a que as mulheres na Colônia Penal estão submetidas fere também a Lei de Execução Penal.

Histórico de negligência

Todas as denúncias realizadas pela Pastoral foram encaminhadas para o Tribunal de Justiça, Procuradoria Geral de Justiça e para a Defensoria do Estado de Pernambuco. Na avaliação de Malvezzi, em apenas uma das denúncias a Pastoral teve resposta de algum dos órgãos acionados. Ele considera que as instituições tem falhado ao não prevenir casos de tortura no estado.

“Falando desses três casos graves que acompanhamos em Pernambuco, a atuação das instituições que acionamos (Defensoria Pública, Ministério Público e Judiciário) foi extremamente insatisfatória. Em duas denúncias, em Pesqueira e Arcoverde, não obtivemos qualquer resposta formal e na terceira, em Recife, fomos apenas informados sobre medidas burocráticas e encaminhamentos internos. Nesses casos, essas instituições falharam na sua missão de combater a tortura e garantir os direitos fundamentais das pessoas encarceradas. No mesmo sentido, a falta de informações sobre as medidas adotadas desrespeita as pessoas diretamente envolvidas e indica um déficit de transparência que precisa ser superado”, explica Malvezzi.

Lixo espalhado a céu aberto no Presídio Desembargador Augusto Duque, em Pesqueira/PE
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*A reportagem acompanhou o lançamento do relatório a convite da Pastoral Carcerária Nacional.

AUTOR
Foto Débora Britto
Débora Britto

Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.