Água desigual
Tabuleiro do Norte, e os outros municípios da Chapada do Apodi como um todo, não se tornaram atraentes para o agronegócio por acaso. A região, além de um solo adequado, possui dois elementos fundamentais que as plantações precisam para se desenvolver: sol e água. Se tem sol o ano todo, a água não é tão abundante e de fácil acesso. Como as outras fontes não são suficientes, a irrigação das plantações é feita, principalmente, através de poços profundos. A Chapada está localizada sobre os aquíferos Jandaíra e Açu.
Do lado cearense da Chapada, parte da água usada na irrigação vem também do rio Jaguaribe. Em sua dissertação “Apropriação Desigual da Água na Chapada do Apodi: Espoliação, Privatização e Exportação”, submetida ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente (Prodema), da Universidade Federal do Ceará, a tecnóloga em Saneamento Ambiental Amanda Gonçalves Moreira mostra que em torno de 47% das águas do rio são utilizadas para esse fim. “O sistema de produção adotado no polo do Baixo Jaguaribe (CE) é classificado como ‘de alto insumo’, largamente utilizado em áreas voltadas à exportação”, escreveu em 2018.
Os resultados da pesquisa feita por Amanda Moreira confirmam o que várias organizações da sociedade civil vêm denunciando sistematicamente: a distribuição da água na Chapada do Apodi ocorre em benefício do agronegócio. As grandes empresas da área estudada (Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi) exploraram o equivalente a 3.178 caminhões pipas de água, por dia, durante um ano, enquanto a comunidade rural do Tomé (Limoeiro do Norte/CE) era abastecida com um único caminhão-pipa por semana.
A pesquisadora acredita que o incentivo governamental para a expansão do agronegócio na região semiárida brasileira, através de subsídios e obras de infraestrutura, contribui para a distorção na distribuição da água, dificultando a produção por agricultores familiares. “Na prática, a apropriação privada dos bens públicos tem causado inúmeros desastres ambientais, tais como a poluição dos lençóis freáticos, o consumo predatório da água, o empobrecimento e desertificação da terra e a carência dos povos rurais. Ao final, a disputa pelo uso desses bens fica concentrada entre os grupos sociais mais ricos, uma vez que os mais pobres são excluídos da tomada de decisão sobre sua distribuição”.
“Buraco seco”
A pouco mais de 50 quilômetros da área rural de Tabuleiro do Norte, os pequenos produtores de Lagoinha, distrito de Quixeré (CE), veem seus poços secando desde que as grandes fazendas de fruticultura irrigada se instalaram por lá, há duas décadas. “Os primeiros poços aqui eram cavados com 30, 35 metros e dava água. Depois de 2001, com a chegada de três grandes empresas (Delmonte, Agrícola Famosa e João Teixeira), os pequenos não tiveram mais vez”, conta Aldemir Lima Silva, o Didi, agricultor de 48 anos nascido e criado na região.
“Um poço hoje custa R$ 100 por metro, só a escavação. Fora a tubulação. Os pequenos agricultores, de uma média de 5 a 10 hectares, só têm condições de cavar até os 30 metros, porque sabem que não vai precisar o encamisamento. Se der água deu, se não der, para”.
Deuselino da Silva, de 36 anos, mora próximo a Didi e compartilha os mesmos problemas do vizinho. Com os poços secando, ele, que sempre foi agricultor, teve que arrumar outra fonte de renda e passou a ser comerciante. Só planta agora em sequeiro. “Meu sonho é voltar a viver da agricultura mesmo. Tendo água…”
Escassez de chuva, mais o consumo das grandes empresas é igual a poços secos. Deuselino aprendeu da pior forma possível essa perversa equação quando o semiárido nordestino passou por um intenso período de estiagem, principalmente, entre 2012 e 2015. “Até 2009, eu tirava água de cuia na cacimba. A natureza já vinha avisando. 2013, 2014, cada vez secando mais. Parecia um efeito dominó. Em 2016 foi um ano crítico, todos os poços secaram. Foi uma perda total. Entre 2013 e 2017 todo mundo perdeu”.
Mesmo com o arrefecimento da seca, os períodos de chuva não têm sido suficientes para garantir a produção. “Não adianta arriscar colocar bomba nos poços que os pequenos agricultores já têm. No inverno até aparece água, mas não sustenta. Quando chega em outubro já não tem mais. São no máximo quatro meses com água”.
Didi relata que, à medida que os poços iam secando, grande parte dos pequenos produtores iam mudando de profissão, como Deuselino, ou indo trabalhar como empregado nas fazendas de fruticultura, como aconteceu com ele mesmo. “Quando as grandes empresas foram vendo o potencial da região para produzir frutas, foram se instalando. Agora, quando não tem mais água, algumas já se foram. A maioria só deixou os buracos secos”.