Calda tóxica
Os moradores de Tabuleiro do Norte têm razão em estarem preocupados com o uso excessivo dos agrotóxicos por parte da Nova Agro em suas plantações de soja e algodão. Basta ver o que vem acontecendo com os municípios e comunidades vizinhas na Chapada do Apodi. Desde que o modelo de grandes empresas produtoras de frutas irrigadas começou a ser implantado na região – primeiro no Ceará (final dos anos 1990) e depois no Rio Grande do Norte (a partir de 2010) – aumentaram muito os casos de doenças provocadas pelo uso de agrotóxicos.
Desde 2006, o Núcleo Trabalho, Ambiente e Saúde (Tramas), vinculado ao Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Federal do Ceará (UFC), pesquisa os impactos dos agrotóxicos na população da Chapada do Apodi. Os dados levantados são alarmantes. Um estudo, realizado pelo Núcleo, em 2009, a partir da coleta de 24 amostras de água dos canais que abastecem as comunidades, das caixas d’água e de poços profundos próximos às áreas de cultivo revelou a presença de princípios ativos de agrotóxicos em todas as amostras. Um ano antes, a Companhia de Gestão de Recursos Hídricos do Ceará (COGERH) já havia constatado a presença de ingredientes ativos de agrotóxicos em cinco de dez amostras de água coletadas em poços da região.
A médica Ada Aguiar também é pesquisadora do Tramas e participou de um grande estudo epidemiológico multidisciplinar na Chapada do Apodi. O trabalho, publicado em 2011 em forma de livro, trouxe dados chocantes. Dos 520 trabalhadores homens investigados, 97% haviam tido algum contato com agrotóxico. Destes, 60% relataram algum tipo de intoxicação aguda por conta dos produtos tóxicos. Os exames laboratoriais mostraram que 30% apresentaram algum tipo de alteração na função hepática ou nas células sanguíneas.
O estudo mostra que os trabalhadores investigados haviam tido múltipla exposição a ingredientes ativos que variavam de quatro a 30 tipos diferentes. “Uma verdadeira calda tóxica”. Mas o nível de exposição variava de acordo com a função exercida. “A pessoa que prepara o agrotóxico, claro, estava muito mais exposta do que o porteiro, por exemplo. Embora todas as exposições sejam importantes, existem níveis diferentes.”
Segundo a pesquisadora, as pessoas investigadas, todas entre 20 e 30 anos, tinham muitas outras vias de exposição além do local de trabalho. “A grande maioria vivia na região. O ambiente também estava contaminado, a água, os alimentos. Existia a pulverização por avião. Eles estavam expostos a uma chuva de veneno”.
A contaminação da água certamente causaria problemas na saúde da população. Foi o que mostrou o trabalho apresentado, em 2013, pela professora Raquel Rigotto. A coordenadora do Tramas realizou um estudo comparativo de indicadores de mortalidade por câncer nos municípios de Limoeiro do Norte, Quixeré e Russas, que fazem parte do lado cearense da Chapada. Utilizando dados de 2000 a 2010, evidenciou 38% a mais na taxa de mortalidade por neoplasias nesses municípios, em comparação com outros 12 locais onde se desenvolve apenas a agricultura familiar, em que a utilização de agrotóxicos é pequena. Todos esses trabalhos – e muitos outros sobre o assunto – podem ser baixados no site do Núcleo.
Vitória
No início de 2019, a população da Chapada do Apodi no lado cearense teve uma importante vitória. Depois de muita mobilização, foi sancionada pelo então governador Camilo Santana e publicada no Diário Oficial do dia 08 de janeiro de 2019 a lei 16.820/19 proibindo a pulverização de agrotóxicos no Ceará. O caso foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF) por conta de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ajuizada pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).
A batalha de Eleomar
O caso de Eliomar Sena Soares, de 43 anos, é emblemático. Nascido e criado na comunidade de Macacos, em Quixeré (CE), ele ainda não se recuperou dos cerca de 20 anos em que trabalhou como empregado do agronegócio. Mesmo com todo histórico de problemas de saúde, ele tem dificuldade de relacionar seu quadro clínico ao longo período de contato com agrotóxicos.
Eleomar trabalhou por 17 anos na Del Monte, uma das maiores produtoras de frutas frescas do mundo. Lá, começou como trabalhador rural, virou tratorista e chegou a fiscal. “Trabalhei muito com veneno. Primeiro a gente trabalhava com enxofre para balancear o PH da terra. Depois de plantar, que era abacaxi na época, aí vinha o veneno. Muito veneno…”
Segundo ele, na época da Del Monte fazia exames de seis em seis meses. Foi em um desses exames que “apareceu o problemas das plaquetas”, que estavam muito baixas. “Inchei muito. Dentro de 15 dias cheguei a aumentar de 7 a 8 quilos. Não era normal. Não era gordura, era inchaço. Quando fiz o tratamento, melhorei”.
Na época da Del Monte, Eleomar trabalhava com mais nove fiscais. Desses, pelo menos três morreram. “Um morreu com 25 anos, o Talison, teve câncer no fígado. Outro foi o Francisco, ali do Tomé. Teve uma parada e morreu. Teve outro de Limoeiro, este faleceu também de câncer. A gente começou a trabalhar lá tinha 18, 19 anos, era uma turma só”, lamenta. “Não foi comprovado que foi por conta do veneno porque nunca foram atrás disso”.
Cerca de um ano depois de sair da Del Monte, Eleomar iniciou uma nova batalha. “Tive uma depressão profunda. Coisa que vem… Lutei muito até pedir socorro. Tentei disfarçar ao máximo, até que tomei os calmantes todos de uma vez…”
Até conversar com a reportagem da Marco Zero, Eleomar nunca tinha relacionado a sua depressão com a exposição aos agrotóxicos. Mas, em um rápido esforço de memória, lembrou que Talison, antes do câncer, também teve depressão. Outros colegas também apresentavam sinais. “Só que naquela época, há uns 20 anos, depressão era uma coisa que nem era conhecida”.
Outro caso de depressão que pode ser relacionado ao contato com agrotóxico aconteceu com uma família que mora em Tomé, a poucos quilômetros de Eleomar. Uma senhora entrevistada, que iremos preservar a identidade, conta que a filha tentou suicídio quando tinha 13 anos. Isso aconteceu há quase 12 anos, na época em que o marido trabalhava como vigia em uma empresa ligada ao agronegócio.
À noite, ela e os quatro filhos pequenos iam visitar o marido no trabalho e dormiam em uma casa de bomba onde era armazenado o veneno. Os sinais de depressão na criança surgiram logo depois. Atualmente, a senhora conta que a mãe e a tia também estão diagnosticadas com depressão.
Uma reportagem realizada pela Agência Pública e pela Repórter Brasil sobre o assunto, ouviu cinco especialistas que estudam saúde mental e agrotóxicos, e todos afirmam que o surgimento de um quadro depressivo e a tentativa de cometer suicídio tem fatores multivariáveis, e não é possível apontar apenas uma causa. Mas, segundo eles, o contato com os pesticidas é um influenciador.
Crianças expostas
A médica e pesquisadora Ada Aguiar também participou de um dos estudos mais recentes envolvendo o uso de agrotóxicos na região. Em 2017, ela apresentou ao Mestrado em Saúde Pública da UFC a dissertação “Más-formações congênitas, puberdade precoce e agrotóxicos: uma herança maldita do agronegócio para a Chapada do Apodi (CE)”. No trabalho, a médica investigou as relações entre os casos de malformações congênitas e puberdade precoce, ocorridos na comunidade de Tomé (Limoeiro do Norte/CE), e as exposições ambientais e ocupacionais aos agrotóxicos nessa localidade.
Tomé é cercada por grandes plantações de fruticultura irrigada, nas quais se utiliza um grande volume de agrotóxicos. Entre o final de 2014 e início de 2016, nasceram na comunidade cinco crianças com malformações congênitas (um caso de focomelia e quatro casos de cardiopatias congênitas). No período do estudo também havia duas crianças em acompanhamento médico por puberdade precoce.
O estudo comprovou que existia uma exposição ambiental intensa das crianças e suas famílias aos agrotóxicos. Dos sete domicílios nos quais foram coletadas amostras de água, seis tiveram ddetectada a presença de, pelo menos, um ingrediente ativo de agrotóxico. “Pode-se afirmar que existem fortes evidências que nos levam a concluir que os casos de malformações congênitas e puberdade precoce na comunidade de Tomé têm relação com a intensa exposição dessas crianças e suas famílias aos agrotóxicos na região”, concluiu Ada Aguiar.
Pesquisas realizadas ao longo dos últimos anos têm demonstrado a contaminação das fontes de água (superficiais e profundas) e do ar por agrotóxicos”, relata a pesquisadora que durante o período do estudo conviveu de perto com os moradores de Tomé.