.1
As Humanas são fundamentais em projetos de pesquisa de ponta no Brasil
Um dos principais polos de desenvolvimento de Inteligência Artificial do Brasil fica na UFJF, em Juiz de Fora, Minas Gerais. Chama-se FrameNet e desenvolve linguagem computacional para Inteligência Artificial. Sabe quando você pede pra Alexa ou Siri te passar uma receita de bolo, colocar uma música calma pra estudar ou contar uma piada porque você está se sentindo muito solitário num domingo à noite? Simplificando, o laboratório ajuda a refinar o entendimento de robôs e máquinas que usam Inteligência Artificial para esse tipo de interação, fazendo com que a máquina entenda nossas intenções, ironias e figuras de linguagem, por exemplo. Um exemplo de produto desenvolvido pela FrameNet Brasil foi um aplicativo que funcionou como “Dicionário da Copa do Mundo” para otimizar a experiência de estrangeiros no país durante a Copa de 2014:
Infelizmente, até hoje, nada foi produzido pra atenuar a experiência traumática que nós brasileiros sofremos depois do 7 a 1. Ainda dói.
Mas como eles fazem isso? Vocês acham que é só contratando um monte de programador? Não… Eles fazem isso com estudantes de Letras. Sim, aqueles que as pessoas acham que não fazem ciência e só ficam analisando livros do século 19 com palavras rebuscadas. “Para nossos experimentos eu preciso de programadores, claro, mas da mesma forma como preciso de profissionais que saibam identificar padrões de estrutura argumental. Por exemplo: uma condição que tenha sujeito, verbo, objeto direto e em função ativa, como “eu quebrei as nozes pra fazer o bolo” versus uma construção que tenha verbo, sujeito e objeto em sentido passivo, tipo “eu quebrei o braço” em que, efetivamente, você não quebrou o braço porque quis, ou “o celular quebrou a tela” em que ambos, o celular ou a tela sofrem ações de serem quebrados. Isso tudo precisa ser identificado, com todas as complexidades culturais que envolvem, para depois se tornar um modelo legível pelas máquinas”, explica Tiago Torrent, formado em Linguística pela UFJF e coordenador do FrameNet.
A história que ele sempre conta quando se depara com o estranhamento diante da sua necessidade de pesquisadores de Letras e Linguística no laboratório é uma ocorrida em 1954, no surgimento da disciplina da linguagem computacional, na primeira vez que usou-se o termo “cérebro eletrônico”, muito antes da famosa música do Gilberto Gil.
“A linguística computacional nasceu de um experimento feito na Georgetown University, nos Estados Unidos, com a IBM, durante a Guerra Fria. Foi o primeiro experimento de tradução automática. Era um tradutor do russo para o inglês, com o objetivo de traduzir automaticamente mensagens russas. E a hipótese desenvolvida na época era a de ‘quebrar uma criptografia’. Contava com 250 palavras, 250 correspondências bilíngues e 6 regras sintáticas. Uma reportagem entusiasmada com a novidade escreveu: ‘o cérebro eletrônico vai acabar com a necessidade de tradutores em cinco anos’. O governo americano levou isso a sério e construiu um comitê governamental para estudar esse experimento. Depois de seis anos, aproximadamente, esse comitê chegou à conclusão que era mais eficaz, rápido e até barato formar tradutores humanos do que investir na tradução automática”, diverte-se Tiago.
“Sempre conto essa história quando estou recrutando alunos. A gente aprendeu uma coisa com isso: se você quiser fazer um sistema que entenda a linguagem humana em algum nível, ou apresente alguma capacidade linguística, você não pode achar que vai haver um modelo computacional para cada aspecto da linguagem. Não adianta olhar para a língua humana como se olha para uma tabela de, sei lá, “taxa de reprodução do carrapato bovino”. A língua humana não é um dado. É simplesmente o aparato cultural mais complexo que existe na Terra. Não dá para alimentar a máquina só com regras. A gente tem um paper, por exemplo, só sobre as nossas tentativas de traduzir o conceito brasileiro de ‘jeitinho’ , ‘dar um jeitinho’, para a máquina”.
Sem os profissionais de Humanas, a Inteligência Artificial pode se tornar racista
Um sistema que tente alimentar a Inteligência Artificial só com regras pré-estabelecidas e padronizadas tende ao racismo, ao etarismo e à misoginia, explica Tiago: “Essa Inteligência boa em reconhecer face, e face de gente branca, importante dizer, porque ela é treinada com fotos de pessoas brancas, é um problema seríssimo. Ela pode ‘prever’, baseada no seu perfil, se você vai bater o carro ou não, aí a seguradora pode se negar a fazer o seguro de automóvel pra você porque ela acha que não compensa se arriscar com esse perfil de cliente”.
Foto: Carolina de Paula / UFJF
E quem melhor “supervisiona” o aprendizado da máquina é um profissional de Humanas, porque só ele terá ferramentas para “modelar” um aparato cultural. Se a máquina usar apenas os padrões que ela encontra prontos na internet, por exemplo, começa a reproduzir os discursos nazistas do Reedit, os crimes da Deep Web. Ela começa a dar vida às opiniões da caixa de comentários do Uol, imaginem só. Foi o que aconteceu com a Tay, a Inteligência Artificial da Microsoft, criada para interagir com jovens de 18 a 24 anos no Twitter em 2016. Treinada para ter as habilidades de linguagem aprimoradas conforme interagisse com outros internautas, em menos de 24 horas, Tay se tornou racista, transfóbica e intolerante. Praticamente um intensivão em bolsonarismo. Os discursos majoritários do Twitter a corromperam. Foi também o que aconteceu em um estudo deste ano feito em parceria por três universidades americanas: John Hopkins, Washington e Instituto de Tecnologia da Geórgia. Na pesquisa, um robô com Inteligência Artificial tirou conclusões xenófobas e racistas sobre pessoas baseado apenas no rosto delas.
Tiago acrescenta: “Então por que tenho que ter um aluno de Letras, Filosofia ou de História pensando robótica? Porque somos nós que fazemos esse tipo de pergunta, somos nós que problematizamos como uma tecnologia pode combater o racismo, e não reproduzi-lo. A nossa solução não é olhar para um problema e solucioná-lo como uma taxa de reprodução do carrapato bovino. Nós vamos interpretar, analisar criticamente, pensar nas consequências humanas de determinado problema, vamos dar dois passos adiante pra ver onde vamos chegar. Mas, para isso, também precisamos ter mais pesquisadores de Humanas interessados em Robótica”.
Filosofia e Covid-19
Quem ousaria imaginar que uma das disciplinas que ganharia atenção durante a pandemia de Covid-19 fosse a Filosofia? Que em meio de tanta reversão industrial para a produção de respiradores, de uma gincana mundial para a produção de vacinas e construção de hospitais de campanha contaria com o auxílio precioso dos questionamentos feitos por gregos antes mesmo do nascimento de Jesus Cristo? Professora do departamento de Filosofia da Puc/Rio e pós-doutoranda no Museu Nacional/UFRJ, Alyne Costa estuda, entre outros temas, o negacionismo. Sim, o tipo de discurso que nega que a Terra seja redonda ou que estamos vivendo um colapso ambiental. Para surpresa de Alyne, o interesse por sua pesquisa explodiu durante a pandemia – quando foi chamada para lives, entrevistas, artigos e livros.
O mundo, de repente, se dava conta de que era preciso ouvir quem se recusava a acreditar em discursos que vinham prontos – a exemplo da própria Ciência:
“Especificamente na área que estudo, mesmo quem não falou diretamente percebeu o link entre a pandemia e a questão ecológica e o quanto isso não deveria ficar só nas mãos dos técnicos, dos tecnocratas, dos governos. Olha quanta gente começou a estudar ciência por conta própria, a pesquisar sobre vacina. Todos sentimos a necessidade de nos apropriarmos desse conhecimento, mas aí faltou ferramenta para pensarmos a questão para além do que o técnico diz, do que o cientista diz, do que os relatórios dizem. Houve a necessidade de pluralizar e de trazer mais perspectivas”, pondera ela, frisando como a Filosofia pode fornecer um instrumental precioso para a Infectologia, a Virologia, a Medicina etc.
“A colaboração entre as ciências não enfraquece as ciências técnicas. Pelo contrário, elas se solidificam, tornam-se mais robustas, porque vão considerar mais pontos de vista, vão ter a percepção de historicização da própria disciplina. Essa separação entre o que é objetivo e o que é subjetivo é a raiz dessa ideia que se formou e que acaba apartando as Ciências: o que está ligado ao humano é meramente subjetivo. Toda essa ideia de prova, de certificar um experimento em laboratório, vai criando uma ficção, uma ilusão de uma grande ciência. Mas isso é uma grande mentira. Existe uma série de historiadores e sociólogos da ciência do laboratório que mostram como todas essas produções tecnológicas e científicas têm um contexto social. Isso não enfraquece essas produções, pelo contrário, essas produções se dão em rede”, opina.
Foto: Tânia Rêgo / Agência Brasil
.2
A maior diversidade racial das universidades brasileiras está na área de Humanas
Se dividirmos as universidades do Brasil entre os alunos de Exatas e Biológicas de um lado, e os de Ciências Humanas e Sociais do outro, veremos muito mais pretos, pardos e indígenas de um lado só. Os cursos de Humanas concentram a maior diversidade racial no país. De acordo com dados do Censo Nacional do Ensino Superior de 2017, enquanto os cursos de medicina e veterinária têm um negro para cada 16 brancos, os cursos de sociologia e filosofia têm 1 negro para cada 3 e 4 brancos.
No ano em que a Lei de Cotas completa 10 anos, uma das especialistas na política afirmativa, a socióloga e doutora em Educação pela UFBA Dyane Brito, diretora do Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo Baiano – a universidade federal considerada “a mais preta” do Brasil pela grande proporção de alunos negros e pardos – analisa as razões que justificam tamanha discrepância:
“Muitos dos nossos alunos vêm da escola pública, então muitos escolhem os cursos pela nota de corte. Quanto menor a nota de corte maior a quantidade de alunos da escola pública. Como no Brasil não é possível desmembrar raça de classe, então esse alunos são também negros. Muitos vêm de um estudo deficitário, não tiveram aula de química, professor de biologia. Então, escolhem a área de Humanas porque é também a aula que teve, a que conhece porque teve aula de Redação, de Português, de História. Outra razão é que são também cursos mais baratos. O curso de Sociologia pode ser feito só com livros da biblioteca e xerox. Já Medicina não é possível fazer desse modo. Um terceiro elemento nessa equação é que os cursos de Humanas têm menor duração, ocupam menos horas do dia. Engenharia, Medicina ou Odontologia são cursos integrais, em que o aluno estuda sem trabalhar até entrar no mercado de trabalho. Quem é pobre precisa de um curso que lhe permita estagiar, trabalhar”, explica Dyane, que atuou como pesquisadora da Unesco e do MEC na avaliação das ações afirmativas no ensino superior. Ela lembra ainda de um último perfil: o aluno que não acredita que tenha capacidade para levar adiante um curso considerado “difícil”. E acaba disputando um que considera “mais fácil”.
“Ao ingressar, ele ainda se pergunta se dá conta de ficar ali. Então, as políticas de permanência simbólica precisam ser eficazes e elas passam por acolhimento, bolsa, alojamento, projetos de iniciação científica. Não é sem motivo que a gente encontra uma política de desintegração desses cursos, que são cursos também do pensar, de elaborar a situação social, econômica, cursos que vão interpretar a realidade social”, analisa ela.
Proporção de negros e brancos
por curso universitário
Alunos de Ciência Política
Alunos de Pedagogia
1 negro para cada 5 brancos
Alunos de Filosofia
Alunos de História
Alunos de Letras
1 negro para cada 4 brancos
Os impactos da Lei de Cotas
Quando questionada sobre a síntese do impacto da Lei de Cotas dez anos depois de criada, Dyane lembra da primeira turma de médicos formada pela UFRB, com impressionante foto de formatura de maioria negra, e cita ainda dois estudantes indígenas beneficiados pelo sistema de cotas: “Uma é Rute Morais Souza, de 24 anos, de Fortaleza, da etnia Anacé, que graças às cotas fez graduação em Ciências Sociais na UFRB, enveredou pela Antropologia no mestrado na Universidade de Brasília e, agora, está fazendo doutorado na Espanha, na Universidade de Salamanca. Sua tese é sobre a luta por território da sua tribo”.
“E outro é Felipe Tuxá, primeiro professor indígena de Antropologia da UFBA “.
“Já são dados significativos de estudantes indígenas e quilombolas produzindo conhecimento acerca dos seus territórios. Essa discussão era feita pelo pesquisador estrangeiro, e agora é feita por essas pessoas, falando desse lugar. O mestrado em História da África da Diáspora e de Povos Indígenas é um curso que tem um percentual de cotas direcionado para professores da rede pública que faz toda diferença aqui no território do Recôncavo Baiano”, detalha Dyane.
Ela lembra que cada entrada de um aluno por sistema de cotas na universidade é coletiva: “Esses jovens levam, ainda que simbolicamente, a mãe, o pai, que muitas vezes sequer tiveram ingresso na educação básica. Aqui na Bahia, o que acontecia era que as meninas do interior eram levadas para se tornarem empregadas domésticas em Salvador, então muitas agora rompem com essa história. São filhas e netas de empregadas domésticas que romperam com esse futuro e hoje são assistentes sociais, professoras de história e de artes visuais, jornalistas, cientistas sociais, fazem cinema. O curso de cinema da UFRB é um dos mais procurados do Brasil. Esses são elementos que precisam ser considerados pra gente pensar no que é a democratização aqui e todos cursos da área de Humanas”.
Felipe Tuxá. Foto: Arquivo Pessoal
Se, por um lado, as Ciências Humanas analisam e provocam o progresso de jovens negros no Brasil, também vem deste campo as disciplinas que estudam a morte desses mesmos jovens negros. É a sociologia, afinal, quem se debruça sobre um dos temas mais caros do país: a segurança pública. E suas políticas públicas.
“Seria de esperar que o governo se preocupasse em saber, por exemplo, que a maioria da população morta com a violência é negra e jovem. Harvard e Princeton, instituições privadas, têm excelentes escolas de sociologia, por entenderem sua importância até para a formação de estudantes de outras áreas. Seria importante que médicos soubessem mais sobre as populações que eles atendem, por exemplo. A ideia mais empobrecedora nas declarações do governo é a de que o conhecimento precisa ser imediatamente útil. Se fosse assim, não teríamos a teoria da relatividade. As grandes descobertas científicas vêm primeiro do pensamento abstrato e, depois, podem ou não encontrar uma utilidade prática. Fazer o contrário é um emburrecimento”, declarou a cientista social Angela Alonso à Folha, em artigo sobre a pressão para produzir conhecimento tido como “rentável”.
Segundo o IBGE, entre 2010 e 2019, o número de negros nas universidades do país cresceu
%
O Censo da Educação Superior do Inep de 2018 mostra que a participação de indígenas aumentou entre 2010 e 2017
%
das 69 universidades federais já possuem sua comissão de heteroidentificação, segundo a Defensoria Pública da União em parceria com a Universidade Federal de Ouro Preto
.3
Os cursos de Humanas não custam caro
e concentram pouca gente
Ao contrário do que o senso comum acredita, os cursos de Humanas e Ciências Sociais Aplicadas custam pouco no orçamento das universidades brasileiras. É um mito que sejam onerosos e excessivos. Esse aliás é um dos maiores problemas que o Brasil vem sofrendo: acreditar demais em mitos.
Para efeito de comparação, se tomarmos como exemplo um projeto considerado “caro” na área de Humanas, ainda assim ele terá custado muito menos do que um projeto “barato” nas outras áreas. Um exemplo é o Pari-C, um projeto desenvolvido pela antropóloga Maria Paula Prates para documentar a maneira pela qual diversas aldeias indígenas no Brasil enfrentaram a pandemia de Covid-19. De que forma se organizaram, se cuidaram, se defenderam da doença – tendo como perspectiva a sua cosmovisão. Um trabalho essencial, que envolveu 95 pesquisadores – entre indígenas e não-indígenas – e resultou em um site com diversos artigos e materiais de apoio que servirão de base a inúmeras pesquisas em desenvolvimento.
Enquanto o governo federal vetou até a obrigatoriedade de garantir acesso de indígenas à água potável durante a pandemia de Covid-19, revelando o completo descaso com que tratava as populações vulnerabilizadas em situação de crise mundial, o departamento de Saúde Pública da Inglaterra financiou uma pesquisa feita com antropólogos e pesquisadores indígenas brasileiros sobre como essas comunidades estavam reagindo – de maneira autônoma, pois não contava com apoio do MInistério da Saúde – à pandemia.
“Convidei alguns colegas do Brasil e nós elaboramos o projeto de pesquisa, pensando em contribuir com nosso saber antropológico com aquilo que já estava sendo feito pelos indígenas. Cada um de nós já temos nossa rede de contatos com comunidades diferentes. Eu, por exemplo, trabalho com o Guarani-Mbyá, então a gente sabia que já estavam sendo tomadas medidas autônomas por parte dos indígenas, pois estavam sem apoio do governo. A gente sabe que os povos indígenas já passaram por muitas catástrofes, então nosso objetivo era tentar fortalecer o lugar de interlocução dessas comunidades e dos agentes de saúde. Engajar as comunidades e contribuir no sentido financeiro, porque todos os pesquisadores participantes foram remunerados para mapear o que estava acontecendo e, ao mesmo tempo, fazer com que as decisões de saúde fossem tomadas de acordo com o que os próprios indígenas esperavam. Era um projeto de ação rápida, que deveria ser desenvolvido em 12 meses, todo de forma remota, para o qual recebemos 500 mil libras – cerca de 3 milhões de reais. Ou seja: o conselho médico britânico investiu 500 mil libras em uma pesquisa de desenho antropológico que reconhecia a importância de garantir a autonomia dos povos indígenas diante de mais uma catástrofe”, analisa Maria Paula Prates. Além de estruturar toda a dinâmica do projeto e pagar os pesquisadores durante o ano de trabalho, o dinheiro também serviu para equipar com celulares, computadores e antenas digitais os pesquisadores que colhiam dados, imagens e depoimentos e que estavam espalhados em 30 etnias diferentes.
Fotos: Projeto Pari C / Divulgação
Canto Mbyá
Graças ao trabalho de monitoramento empreendido por Maria Paula Prates, foi possível dimensionar o papel das lideranças femininas indígenas na reestruturação das aldeias durante a pandemia, mediar os problemas causados pela impossibilidade de enterrar crianças vítimas de Covid-19 próximas às suas aldeias, bem como acompanhar os discursos que acompanhavam a reação negativa às vacinas – era muito comum os pesquisadores ouvirem questionamentos como: “Por que eu vou confiar numa vacina que está sendo dada pelo Estado se o próprio Estado que não quer regularizar minhas terras?”, conta Maria Paula. Um trabalho de resultados imensuráveis em perspectiva humanista.
E este é um projeto considerado “caro” dentro das Humanas. Para efeito de comparação, ele custou menos que a metade das motociatas de campanha política que o presidente Jair Bolsonaro realizou e bem menos do que a uma única emenda parlamentar do chamado “Orçamento Secreto” distribuída ao pastor evangélico e deputado federal Abílio Santana (PSC-BA), de 3,5 milhões de reais. Prioridades, né, mores?
Temos muito pouco filósofos
Outro mito recorrente associado ao dos altos custos dos cursos de Humanas é o de que o país “não deveria gastar dinheiro com filósofos” ou com a formação de sociólogos e antropólogos. Outro equívoco. De acordo com o último Censo da Educação Superior, de 2020, as universidades públicas brasileiras oferecem ao todo 72 cursos de Ciências Sociais, com 10.035 alunos matriculados, e 38 de filosofia, com 4.094 matrículas, totalizando 14.129 alunos.
Tem mais gente no bloco de Carnaval Maltratados por Lelêu, que acontece no Mercado da Boa Vista, no Recife, do que nas faculdades de filosofia e sociologia. Mesmo assim, é um número já bem mais significativo do que o do Censo de 2017, quando pouco mais de 10 mil alunos entraram nas duas carreiras, ou 0,6% do total de ingressantes — no mesmo período, para efeito de comparação, cursos de direito receberam 215,6 mil novos alunos, e pra piorar, boa parte deles ainda vai exigir ser chamado de doutor, mesmo sem ter doutorado, só por causa de uma lei da época do Dom Pedro I.
Não faz nenhum sentido, do ponto de vista econômico, cortar os cursos de Sociologia e Filosofia do Orçamento do MEC. Há ainda um outro problema prático com os argumentos privatistas desses cursos: a Lei de Diretrizes e Bases ainda exige o ensino de filosofia e sociologia na educação básica. Como ter professor das duas disciplinas nas escolas se os cursos são tão desvalorizados no Brasil?
.4
As Humanas concentram maioria dos prêmios científicos do Brasil
O Brasil é um dos 13 países que mais publica artigos científicos em Ciências Sociais Aplicadas, um dos 21 que mais publica em Ciências Humanas e um dos 30 em Linguística. A pesquisadora Sabine Righetti se debruçou sobre os dados de produção científica no mundo, compilados pelo site Web of Science, e chegou a este e a outros dados interessantes: de uma forma geral, os cientistas brasileiros aumentaram as publicações em periódicos científicos, em média, 67,3% entre 2008 e 2017 — o que colocou o Brasil entre os 15 maiores produtores de ciência do mundo. As Ciências Sociais Aplicadas, as Humanidades e a Linguística, no entanto, cresceram mais aceleradamente — respectivamente, 77%, 123,5% e 106%, no mesmo período. Para efeito de comparação, o número de artigos acadêmicos em Ciências Agrárias do país cresceu 51,6% no mesmo período. Ou seja: graças aos seus pesquisadores de Humanas, o Brasil é um dos 15 países que mais produzem ciência no mundo.
Vale lembrar que o prêmio científico mais prestigiado do planeta, o Nobel, foi criado para valorizar “contribuições à Humanidade” e tem cinco vertentes: Física, Química e Medicina – mas os mais famosos são o Nobel de Literatura e o Nobel da Paz. O Brasil nunca ganhou o Nobel, mas já ganhou um prêmio Kluge, criado para premiar as categorias de humanidades fora do Nobel. Por sua contribuição à Sociologia, o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso recebeu, em 2012, cerca de 1 milhão de dólares da instituição que outorga o Prêmio John W. Kluge, o Congresso Americano.
Professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da UFRJ, Ippur, Henri Acselrad lembra que há muito pouco conhecimento sobre a natureza científica do trabalho das Ciências Sociais, e que mesmo a ideia de Ciência ainda está muito atrelada ao progresso tecnológico – o que justificaria um certo desconhecimento do valor dos pesquisadores de Humanas no Brasil. “Como toda a ciência, as Ciências Sociais tentam explicar os fenômenos e aprofundar o conhecimento sobre eles. Para isso, assim como outras ciências, usa a lógica, a verificação empírica e a comparação no tempo e no espaço. Então, além de um debate mais aberto, constrói instrumentos mais apurados, refletidos e rigorosos para estudo desses assuntos. Aplica um método e um sistema de análise. Sem essa lógica, o que fazem [os governantes]? Ao reconhecerem que a educação está insuficiente, cortam recursos como solução. Se os níveis de violência estão elevados, distribuem-se armas. Se a degradação ambiental se agrava, punem-se os fiscais ambientais. Exatamente o oposto de qualquer reflexão consistente, coerente e comprovada empiricamente”, explica.
Foto: Reprodução / Facebook
.5
As Humanas têm as respostas para
o futuro das Ciências
Vamos voltar algumas casas para explicar por que não faz nenhum sentido demonizar as Humanas: toda instituição de pesquisa faz uma distinção entre pesquisa básica (ou pura) e pesquisa aplicada. A pesquisa básica produz conhecimento teórico, usado para a solução de problemas gerais. É tipo Matemática Pura, para a qual é preciso estudar Lógica, uma disciplina da Filosofia. A Matemática Pura, aliás, é um ramo que o Brasil se destaca internacionalmente. A gente já ganhou a Medalha Fields, uma espécie de Nobel de Matemática, com o pesquisador Arthur Ávila. O carioca é especialista em sistemas dinâmicos, área que desenvolve uma teoria capaz de prever a evolução a longo prazo de fenômenos naturais e humanos.
Já a pesquisa aplicada produz soluções para questões específicas. É quando a Matemática Pura ajuda a construir um prédio ou um braço mecânico. Assim, a pesquisa pura produz conceitos sem os quais a pesquisa aplicada seria impossível. Uma das mais importantes cientistas brasileiras, Mayana Zatz, não poderia avançar nas pesquisas do Projeto Genoma sem ter se debruçado bastante sobre o estudo da Ética, a parte mais teórica do projeto para sequenciar o DNA humano. A Ética é outra disciplina da Filosofia.
Essa relação entre o “produto” da pesquisa pura, que é o conceito; e o “produto” da pesquisa aplicada, que podem ser patentes, novas técnicas, vacinas, políticas públicas, por exemplo, se dá em todas as áreas do conhecimento. Numa universidade, as Ciências Humanas, além de fundamentais para pavimentar a relação entre a pesquisa pura e a pesquisa aplicada, são também responsáveis pela Extensão, que é a adesão do conhecimento produzido, e pela formação de professores, para todos os níveis de Ensino. Não esqueçamos que o conceito de “universidade” está fincado em três pilares: Pesquisa, Extensão e Ensino. Mal comparando, de nada adiantaria produzir uma vacina sem disponibilizá-la à população e sem ensinar como fazê-la.
Entendeu por que é que você tem que estudar Humanas para ser bom em Exatas? Por que é que você tem que assistir aulas de teoria da economia, não só economia financeira?
E acontece de forma cruzada entre as diferentes disciplinas, porque os saberes estão todos conectados: os conceitos produzidos em Filosofia são aplicados no Direito, os conceitos da Matemática são usados em Engenharia, os conceitos de Sociologia são usados em Planejamento Urbano ou em Nutrição. Nenhuma universidade de excelência do mundo ignora essa pororoca de disciplinas. É por isso que não faz o menor sentido deixar de investir em uma ou em outra. É por isso que os cursos de Exatas têm aulas de Humanas nos primeiros períodos. Não é só pra um ir na chopada ou na calourada do outro, Chopada de Agronomia meets Calourada de Letras. É porque um não funciona sem o outro.
Com a experiência de quem dá aulas há 37 anos no INPE – instituição que faz desde observação do universo profundo até previsão de cenários climáticos extremos, passando pelo monitoramento do desmatamento na Amazônia e construção de satélites – Carlos Alexandre vê com preocupação os alunos cada vez mais apartados das Humanas, sem capacidade de invenção, adaptação ou conexão entre saberes:
“A formação básica deles é muito fragmentada. Superficialmente, e com a internet, eles aprendem um monte de coisas, mas não conectam umas com as outras. Não relacionam saberes específicos com momentos históricos, com processos econômicos, e os poucos que conseguem fazer uma leitura mais ampla de um problema científico vão estar muito mais preparados. Infelizmente os alunos têm cada vez menos essa capacidade de conectar informação e transformar a informação em conhecimento. A história da física é a história da humanidade, a história da ciência é a história da humanidade… Às vezes, para analisar uma descoberta da Física você tem que entender o momento histórico todo, e os garotos não conseguem. As pessoas estão muito armadas contra os cursos de História, acham que os professores são todos de esquerda e vão fazer lavagem cerebral, e não conseguem entender que esse pânico não tem cabimento, e que é fundamental estudar o momento histórico”, diz o pesquisador, ele mesmo um exemplo concreto de como as ciências se completam: além de Astrofísico, Carlos é um exímio violonista, tendo se apresentado em diversos concertos e grupos de choro, e o que também o torna apto a usar vários trocadilhos com a “Teoria das Cordas”.
“Eu vou pra outro universo é com a música!”, brinca o pesquisador. “Eu levo a música pra física, a física pra música, me ajuda a equilibrar. Se eu não fizesse isso ia ficar louco. Está no meu Currículo Lattes inclusive, fiz questão de colocar”.
Todos os pesquisadores ouvidos para esta reportagem defendem que o futuro das ciências exige uma repactuação entre as Humanidades e as áreas abrangidas pela “STEM” – Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática.
Carlos Alexandre Wuensche. Foto: Reprodução / Facebook
Em 2 de setembro de 2018, um incêndio de proporções gigantescas destruiu 85% do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. A situação precária de conservação que propiciou o fogo era fruto direto dos cortes acumulados na verba para a manutenção da instituição, sob a guarda da UFRJ. Toda a sociedade pareceu consternada, e durante dias as imagens de fogo e lágrimas correram o mundo. Subiram hashtags em defesa da memória nacional, autoridades vieram a público prometer reconstrução rápida da instituição bicentenária, apesar de muitos ataques à responsabilidade da universidade na tragédia. Foram perdidas coleções inteiras e peças de valor inestimável, como múmias e arcas imperiais. O desmonte da Educação brasileira tinha cheiro de queimado. O incêndio do Museu Nacional, sem dúvida alguma, é uma das maiores catástrofes recentes do país. A reconstrução contou com todo tipo de ajuda: muitas peças foram reconstruídas com tecnologia 3D, a partir das próprias cinzas do incêndio. O documentário “Fênix: o vôo de David” mostrou como um bombeiro retirou pedaços de madeiras nobres dos escombros e as transformou em violões e violas, dando novo simbolismo à tragédia.
O que muita gente não sabe é que boa parte da reconstrução desse monumento das ciências naturais conta com profissionais de Humanas, como detalha o diretor da instituição, Alexander Kellner:
“No imenso trabalho de reconstrução do Museu Nacional a importância dos profissionais de Humanas é enorme. Especialmente na concepção das exposições e no diálogo com a população. Nos quatro circuitos que vamos montar no novo Museu os profissionais de Humanas são fundamentais em três deles: no circuito Histórico, que conta a história do próprio museu; no circuito sobre Diversidade Cultural brasileira, que vai analisar toda a complexidade da formação do brasileiro desde os povos originários; e no circuito dedicado aos Ambientes Brasileiros, que vai mostrar não só a formação dos nossos biomas mas toda sua interação com o Homem. E este é o circuito mais rico, o que vai ter mais espaço e o que vai contar com o maior volume de objetos”, anuncia Alexander.
O trabalho do economista Herbert Simon, ganhador do prêmio Nobel em 1978, mostrou que os países mais ricos do mundo só são ricos por causa de uma boa governança, ou seja, por causa das suas políticas públicas. Em outras palavras, você não pode separar a qualidade da economia de um país da qualidade do que se aplica com base nas Ciências Sociais e na Ciência Política. Um país rico precisa de bons formuladores de políticas públicas. Especialmente na Educação. Segundo levantamento da Fundação Getúlio Vargas (FGV), se o Brasil investir apenas 1% a mais do seu Produto Interno Bruto (PIB) por ano em educação básica, o padrão de vida médio da população poderá aumentar em mais de um quarto nos próximos 50 anos.
Investir em Ciências Humanas é humanizar a ciência.
Para isso, a gente quer te convocar para nos ajudar a restabelecer o orgulho em fazer parte da comunidade #SoudeHumanas . Nós, da equipe, somos todos de Humanas, e queremos usar essa reportagem como um manifesto em defesa da ciência brasileira. Mas uma ciência que valorize e se orgulhe das Ciências Humanas. Uma ciência que defenda e incorpore os saberes humanísticos, fundamentais à manutenção das ideias de democracia, liberdade, justiça, laicidade, igualdade, antirracismo, tolerância, solidariedade, direito à crítica, diversidade e bem comum. Investir em Ciências Humanas é humanizar a ciência.
Por isso, você que é estudante, professor ou entusiasta da Filosofia, da Antropologia, das Belas Artes, da Música, da Sociologia, da Ciência Política; ou você que está no grupo das Ciências Sociais Aplicadas, como Jornalismo, Economia, Direito, Biblioteconomia, Arquivologia, Cinema, Relações Públicas, Publicidade, Design, Turismo, a gente vai ter fazer um convite: conte em poucas linhas por que você tem orgulho em ser de Humanas, compartilhe um resumo da sua pesquisa ou divida algo que você tenha aprendido nesta reportagem, nos ajudando a puxar esse #HumanasPride – imaginem se a gente um dia faz uma Humanas Parade?! Use os stickers, as hashtags, baixe a logo do projeto que está abaixo, imprima em adesivos, camisetas. Tenha orgulho em ser de Humanas.