A balbúrdia

“Desculpa, eu sou de Humanas” é a estampa de uma camiseta que custa 38 reais na internet. Em outra loja, tem uma que custa 75 reais e diz: “Não sei contar, sou de Humanas”. E ainda há outra que diz: “Sou de Humanas e de Exaustas”. E, se você tem dificuldade para calcular de cabeça a diferença entre 75 e 38 reais, bem-vindo ao clube das humanas porque nós que escrevemos esse texto também precisamos usar a calculadora para saber que o resultado é 37.

Todo mundo que é de Humanas já passou por algum tipo de constrangimento. E nem estamos falando de não deixar transparecer que você é uma pessoa adulta, mas tem dificuldades com alguma das operações básicas da aritmética na hora de dividir a conta do bar ou conferir o troco passado no caixa. Até porque essa última situação tem diminuído graças ao Pix e a outras transações comerciais digitais – exceto para a família Bolsonaro, que diz defender a tradição e talvez por isso prefira comprar as coisas em dinheiro vivo.

O constrangimento ao qual nos referimos aqui é mais específico. É aquele na hora de justificar o que estuda para algum parente ou amigo, de explicar que está lendo sobre “Comunicação através da Semiótica”, que vai apresentar um seminário sobre “Dialética Hegeliana” ou como ganhar dinheiro com Antropologia, Etnologia ou sua irmã gêmea Etnografia. Quem é de Humanas certamente já ouviu uma gracinha quando disse que tinha prova de Modelo Vivo no curso de Artes, ou de Linguística Aplicada em Letras, que aliás é um dos cursos que mais sofre bullying na área. Até aquele seu primo concurseiro se sente autorizado a fazer piadas tipo: “Estudar Letras é muito fácil, só tem 26 no alfabeto. Difícil mesmo é estudar Números, que são infinitos.”

O mundo não perdoa quem é de Humanas. Tem uma página de humor nas redes sociais com quase 700 mil seguidores chamada “Ajudar o povo de humanas a fazer miçanga”, uma iniciativa louvável que, além de oferecer auxílio ao principal plano B financeiro de quem escolheu essa área das ciências, é tão de Humanas que manifesta uma das características humanas mais louváveis, a solidariedade, e foi criada por uma estudante que depois de trancar seis cursos da área de Humanas resolveu fazer meme.

Em abril de 2019, o presidente da República Jair Bolsonaro deu início a um dos projetos de maior êxito em quatro anos de governo: o desmonte completo da Educação no Brasil. A primeira ação desta empreitada foi simbólica: o anúncio de corte de investimentos dos cursos de Humanas. Sim, o Brasil é um país desigual, faminto e desempregado, mas o presidente decidiu começar a curá-lo cortando o investimento em cursos de Humanas. E isso antes de sangrar a pesquisa científica em geral – dados da SBPC indicam que o orçamento para a Capes e CNPq caíram de 9 para 3 bilhões de reais de 2019 a 2021. O nos instiga e tentaremos responder ao longo desta reportagem é: por que o ataque sistemático contra as Ciências Humanas? Por que tanta ojeriza dos Historiadores, Antropólogos ou Filósofos – desde que o filósofo não seja o Olavo de Carvalho? Aliás, por que tanta gente considerava o Olavo um filósofo? A gente nem vai tentar responder porque não vale a pena o esforço. Assim como o Olavo tem feito ultimamente, preferimos ficar calados.

No Twitter, Bolsonaro justificou aquela primeira medida dizendo que “O objetivo é focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como: veterinária, engenharia e medicina”. Para o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, deveriam ser cortados orçamentos das áreas que “tiverem baixo desempenho e fizerem balbúrdia”. Weintraub era especialmente atormentado pelo povo de Humanas, e provavelmente ainda é atormentado pelas vozes da sua própria cabeça, que devem ser em parte responsáveis por tamanha dissonância cognitiva. Mas ele tem tanto ranço das Humanas que chegou a dizer essas coisas:

Nota sobre o vídeo: Quem somos nós pra dizer o que o filho do Weintraub deve fazer, mas como ele é um sujeito tão peculiar, recomendamos no mínimo que esse filho faça terapia.

Em reação ao anúncio, acadêmicos do mundo todo assinaram um manifesto contra o desmonte das Ciências Humanas no Brasil. Um desmonte que não inclui só cortes de investimentos, mas contingenciamentos – bloqueios de recursos já liberados – e um completo desestímulo à produção científica. Além de perseguições, censuras e ataques, como você lerá mais adiante. O manifesto foi publicado no jornal francês Le Monde. No texto, os intelectuais mencionaram a ilegalidade e a inconstitucionalidade dos cortes seletivos, pois eles ferem a autonomia universitária garantida pela Constituição de 1988 e regulamentada pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996. Na prática, cabe às universidades decidirem quais cursos irão manter, cortar ou expandir. Ou seja: a ideia de Bolsonaro, além de estapafúrdia, era inconstitucional.

Com o manifesto publicado na Europa, o filho do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, veio a público dizer que as verbas estavam, na verdade, contingenciadas – e que poderiam “ter um fôlego melhor” caso a Reforma da Previdência fosse aprovada. Também começava ali o estilo de governança à base de ameaças, coação e chantagem.

A sociedade civil reagiu de diversas formas. Houve uma série de protestos, passeatas e discursos contra os ataques à Educação. Um dos mais famosos ficou conhecido como #15M, uma referência à data, 15 de maio de 2019, quando o Brasil encheu as ruas de estudantes irados, reprimidos com violência pelas polícias locais.

Foto: Rodolfo Loepert / Mídia NINJA

Outra reação foi a criação do Observatório do Conhecimento, uma espécie de Vingadores da Marvel para combater o Escritório e Falatório da Ignorância, também conhecido como governo Bolsonaro. O objetivo era criar um núcleo de pessoas interessadas na defesa da Educação de uma forma ampla, para além das pautas sindicais, dispostas a trabalharem no combate à desinformação e a fazer pressão legislativa. A médica especialista em Saúde Pública e professora da UFRJ Lígia Bahia foi uma das fundadoras do Observatório: “Estava na diretoria da Associação de Docentes da UFRJ quando a gente pensou: o que vamos fazer? Veio o Future-se (projeto do governo federal para que universidades buscassem recursos próprios e focassem em empreendedorismo), em seguida os cortes, e precisávamos fazer alguma coisa. Não apenas no sentido sindical, mas envolvendo outros setores da sociedade. Os cortes não atingiam apenas as universidades, era o conhecimento que estava ameaçado. E isso antes da pandemia da Covid-19, quando ficou evidente a importância da ciência e do conhecimento, veja que premonição. Fizemos o Observatório do Conhecimento, uma espécie de ‘central de produção de conhecimento sobre o conhecimento’ juntando pesquisadores de universidades diferentes para fazer também alguma pressão legislativa. Infelizmente é muito difícil alcançar o parlamento sem lobby. Chegamos a ter uma reunião importante com o Rodrigo Maia, mas lembro que ele não prestou atenção em nada do que a gente falou”, desabafa Lígia. Mas não podemos ser tão duros com o Rodrigo Maia. Nessa época ele era só o presidente da Câmara dos Deputados, tinha um monte de pedidos de impeachment para ignorar e devia estar pensando no que escrever nas suas futuras cartas de repúdio.

O Observatório, no entanto, sobreviveu ao governo Bolsonaro e continua na ativa, agora sob o comando da professora de Ciência Política da UFRJ Mayra Goulart. Já criaram seis campanhas públicas de comunicação e mobilização popular – entre elas, um amplo levantamento sobre violações à liberdade acadêmica em todo o país e o “Monitor do Orçamento do Conhecimento”, uma ferramenta de raspagem de dados. E não, “raspagem de dados” não tem nada a ver com passar uma gilete nas faces de um cubo com números gravados em sua superfície. Na verdade, é um processo para tornar públicos os dados sobre cortes no Ministério da Educação. “Acreditamos no desenvolvimento de novas formas de luta, por isso apostamos nas ações nas redes sociais, como nos tuitaços que levaram nossas pautas ao topo dos assuntos mais comentados na internet, além de projeções nos muros de prédios de diversas cidades do país”, salienta Mayra.

A ‘balbúrdia’ pelo mundo

O pior é que não só a família e os ministros indicados por Bolsonaro desprezam quem é de Humanas. Políticos muito menos histriônicos já fizeram pior.

Em junho de 2015, o Ministro de Educação do Japão, Hakubun Shinomura, enviou uma carta às universidades do país orientando que elas se concentrassem em disciplinas que “atendessem melhor às necessidades da sociedade”. O comunicado encorajava os institutos de ensino superior do Japão a tomarem “medidas ativas para abolir programas” das áreas de Humanidades e Ciências Sociais, ou convertê-los em oportunidades acadêmicas nas ciências naturais. Com isso, 26 das 60 universidades nacionais que oferecem cursos de Humanas anunciaram que iriam reduzi-los ou cortá-los, seguindo a orientação governamental, parte de um Plano Nacional de Reforma Universitária em voga. O primeiro-ministro Shinzo Abe já tinha se mostrado preocupado com a falta de competitividade das ciências no país que ganhou 11 prêmios Nobel no passado declarando que “em vez de aprofundar a pesquisa acadêmica altamente teórica, conduziremos uma educação profissional mais prática que antecipa melhor as necessidades da sociedade”. Havia uma clara intenção de fazer frente aos números da Alemanha, país que concentra algumas das melhores universidades do mundo, e aumentar o número de instituições japonesas entre as 100 melhores do planeta – atualmente, só constam as de Kyoto e Tokyo no ranking.

Furiosa, a diretora da Universidade de Shiga, Takamitsu Sawa, escreveu um artigo no Japan Times citando um representante do governo que teria dito que os alunos deveriam estudar “programação de software para contabilidade em vez de ler o livro Economia de Paul Samuelson” e “tradução de japonês-inglês em vez de ler Shakespeare”, o que até faria sentido se o estudante japonês em questão não soubesse inglês e tentasse ler Shakespeare no original, caso contrário ele não iria entender nada.

Sabe quem também já desprezou as Ciências Humanas publicamente? Obama. Sim, ele mesmo, tão elegante e charmoso, né? Mas, assim como Weintraub ou Shinomura, ministro do Japão, ele também acha que um diploma de Humanas não serve pra muita coisa. Em 2014, para cativar os operários de uma fábrica que visitava no estado de Wisconsin disse que “as pessoas podem ganhar muito mais com a fabricação especializada do que com um diploma de história da arte”. Uma professora do Departamento de História da Arte da Universidade do Texas não gostou da comparação e escreveu uma mensagem no formulário de contato da Casa Branca. “Enfatizei que, como historiadores da arte, desafiamos nossos alunos a pensar, ler e escrever criticamente. Também enfatizei como nossa disciplina é inclusiva”, disse Ann Johns à época. Para sua surpresa, Obama respondeu com uma carta escrita à mão pedindo desculpas.

“Nesse pedido de desculpas o Obama foi cirúrgico, mas no sentido de parecer um médico cirurgião, porque essa caligrafia é praticamente ilegível.”

Foto: Frederika Whitehead / Guardian

As autoridades do Reino Unido também não escondem seu desprezo pelas Ciências Humanas. Há cerca de uma década – o que coincide com um certo deslumbre das universidades com o desenvolvimento das empresas tecnológicas do Vale do Silício – os cursos da área têm perdido financiamentos públicos, cortado funcionários ou, em casos mais drásticos, fechado as portas e provavelmente também as janelas. A Soas University of London interrompeu o financiamento de cursos de línguas específicas, como Ursu ou Indonésio; a Northumbria University fechou cursos de Francês e Espanhol; assim como a Ulster University. A Universidade de Nottingham parou de oferecer seu bacharelado em redação criativa e a Universidade de Surrey reduziu drasticamente seu departamento de Ciência Política. Em 2010, o curso de Filosofia da Universidade de Middlesex foi ocupado por estudantes em protestos contra seu fechamento, na sequência da redução das faculdades de História e Letras da mesma instituição – e intelectuais como Alan Badiou, Judith Butler, Antonio Negri, Jacques Rancière e Slavoj Zizek escreveram uma carta pública de apoio ao departamento, que ainda resistiu até 2013.

O Conselho de Financiamento do Ensino Superior da Inglaterra (Hefce), instrumento de suporte à pesquisa do país, vem reduzindo ano a ano o interesse em Humanidades para focar nas carreiras STEM. Em 2014, o Conselho injetou 10 milhões de libras (o equivalente hoje a cerca de 60 milhões de reais) para incentivar as universidades a promoverem o assunto. A secretária de Educação Nicky Morgan afirmou publicamente que “as disciplinas que mantêm as opções dos jovens abertas e abrem as portas para todos os tipos de carreiras são as disciplinas STEM”.

STEM é um acrônimo em língua inglesa para “science, technology, engineering and mathematics“, mas só quem é de Humanas vai saber o que é um acrônimo. E se você não é de Humanas e achou essa afirmação pretensiosa ou arrogante e, mentalmente enquanto lia isso, pensou em nos mandar um “VTNC” ou “VSF”, saiba que esses não são acrônimos, mas siglas/abreviações.

Em 2018, para assumir as metas de sustentabilidade impostas pela Agenda 2030 – uma lista de 17 medidas assinadas por 193 países na ONU para garantir um mundo melhor na data prevista – o Japão recuou na política de fomento apenas à ciência e tecnologia, voltando a promover as Ciências Humanas e Sociais, com foco em ética e jurisprudência. No texto da Política Básica Japonesa de Promoção da Ciência, Tecnologia e Inovação, o governo diz que mais do que nunca “é essencial fomentar recursos humanos que possam conectar ciência com política, administração e vários setores dentro e fora do Japão, com perspectivas históricas e internacionais e conhecimento geopolítico”.

Ou seja, chegaram à conclusão de que cortar as Humanas não seria só um corte, mas um Harakiri na educação do país. Isso porque o texto da Agenda 2030 da ONU diz claramente: “O compromisso assumido pelos países com a agenda envolve a adoção de medidas ousadas, abrangentes e essenciais para promover o Estado de Direito, os direitos humanos e a responsividade das instituições políticas.”

Foto: Carlos Gibaja / Governo do Ceará

Mas e agora?

Estamos no final de 2022, mais precisamente nos últimos dias do governo Bolsonaro. O momento em que a gente pode dizer “Até que enfim!”. Mas, como aprendemos com o futebol, não se pode comemorar até o fim dos acréscimos e o apito do juiz. Enquanto a bola rolava na Copa do Mundo, o governo entrou de carrinho e ‘raspou’ o orçamento das universidades federais, bloqueando 366 milhões de reais, que seria usado para o pagamento de bolsas de estudo, serviços terceirizados, como limpeza e segurança, além das contas de luz e água. Ou seja, o último que sair desse governo não vai conseguir apagar as luzes porque provavelmente antes já vão ter arrancado os fios de cobre e tacado fogo pra vender no ferro-velho.

Eleito democraticamente nas eleições de outubro, o novo presidente da República é, pela terceira vez, Luís Inácio Lula da Silva, aquele que foi responsável por um arranque nos índices de Educação no país entre os anos de 2003 e 2011, quando foi presidente. Apesar de ainda não ter anunciado o novo Ministro da Educação, já se espera que o novo nome tenha por principal missão limpar a balbúrdia que os cinco ministros de Jair Bolsonaro fizeram com a Educação no país. Entre os nomes cotados, um alívio: a maioria tem formação em Ciências Humanas e defende abertamente uma política radicalmente oposta à que foi praticada até agora. O nome mais forte até o momento é o da governadora do Ceará, Izolda Cela (PDT), psicóloga e mestre em Gestão e Avaliação da Educação Pública pela UFJF.

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