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“Me vi sendo a referência de representatividade que eu queria ter tido”

Marco Zero Conteúdo / 30/12/2019

Por Chico Ludermir

Neste mês de dezembro entrevistei Anne Mota pela quarta vez – nesta ocasião, para o “Programa Entre” da Rádio Universitária Paulo Freire, que apresento semanalmente e que tem parceria com a Marco Zero Conteúdo. Acompanho a trajetória de Anne desde 2013, quando me debrucei sobre sua história, ao lado da de outras 10 travestis e mulheres trans pernambucanas para o meu livro “A História Incompleta de Brenda e de Outras Mulheres” que vim a publicar em 2016 pela editora Confraria do Vento. Na época, Anne ainda era uma adolescente – antes da transição – e sonhava em ser cantora, inspirada na personagem Anahí, do grupo Rebeldes (RBD), que fazia muito sucesso entre as pessoas de sua geração.

Ao
longo dos últimos seis anos que separam as duas entrevistas muitas
coisas sucederam e se transformaram – na vida dela (pessoal e
profissional); na minha; no Brasil e no mundo. Até que ficamos de
frente de novo, no seu quarto, em um apartamento no bairro da Torre.
O ano de 2019 foi um ano icônico na vida profissional de Anne. Aos
21 anos, estreou como atriz no cinema no longa Alice Júnior, já
como protagonista. Mais do que isso, desde que veio ao mundo, o filme
– que conta a história de uma adolescente trans que muda de cidade
– e a atuação de Anne vêm acumulando prêmios em festivais
importantes, como o de Brasília, onde ela ganhou o prêmio de melhor
atuação, que nunca tinha sido dado a uma travesti.

Talvez
seja demasiado pessoal abrir uma entrevista dessa forma. Mas não
haveria outra. Assim como não haveria outra possibilidade de
conduzir a entrevista sem que se atravessassem os nossos encontros
anteriores e nossas memórias partilhadas. As entrevistas também são
dispositivos muito potentes de encontro. E essa o foi de maneira
especial. Nessa conversa intercalamos o tom confessional dos relatos
com perguntas sobre a carreira de atriz e do filme. Partimos de
trechos de sua história contada por mim em livro e passamos por
temas como representatividade trans no cinema e mercado de trabalho
para pessoas trans. “(Com esse papel) eu me vi sendo uma referência
de representatividade que eu queria ter tido”, afirma.

Eu
queria começar lendo um pouquinho da tua história para a gente se
conectar de novo com esse momento em que a gente se conheceu e também
para que tu possa, através dessa provocação, contar um pouco da
tua trajetória.

A
mãe de Anne

Anne,
o que tu acha de a gente voltar a colecionar bonecas?, perguntou
Somália evitando abrir os olhos. A gente pode comprar algumas no
shopping e brincar só eu e tu, do jeito que a gente fazia quando era
escondido. O que tu acha? Os olhos fechados pareciam lhe dar a
liberdade de falar sem medo da resposta.

Sentada no sofá
da sala, acarinhava o rosto da filha recostado sobre suas per-

nas.
Sentia os cabelos lisos dela se derramarem nas suas coxas, passarem
pelos seus dedos. Tudo isso sem olhar para canto nenhum. Só para
dentro de si e de Anne.

Nos
dias em que eu voltar do trabalho mais cedo, a gente se deita na tua
cama e inventa um monte de história. Enfeita elas, corta cabelo, faz
penteado, maquiagem. O que tu acha? A gente pode até fazer
roupinha…

Passou
a mão no rosto da menina, sentiu sua pele lisa. Tateou o nariz
pequenino

e,
lentamente, alcançou as pestanas da filha com as pontas dos dedos.
Também

estavam
cerradas. “Que bom”, pensou. “Estamos no mesmo lugar”.

Meu
deus, como ela não queria abrir os olhos. Era raro estar inteira da
forma que

se
sentia naquele fragmento de domingo. Tão presente, tão segura.
Desejou com

muita
força aprisionar aquele momento no escuro dos olhos fechados.

Será,
mainha? E se a gente fizer isso, o tempo volta? Eu volto, mainha, no
tempo?

Não
sei, filha, mas o que puder, eu faço. Por ti, eu faço. Tu sabe…

O
que Somália queria era precisamente isso: voltar no tempo. Que culpa
sentia por ter deixado aquilo acontecer. Como uma mãe tinha deixado
aquilo acontecer? Dentro de sua casa, com a sua filha, sua única
filha? Que dor sentia aquela mulher, que lhe impedia de abrir os
olhos.

Não,
mainha. Quero não. Já não tou mais na idade de brincar de boneca.

Mainha,
o tempo passou e, nem que tu queira, ele volta. Tem jeito não,
mainha.

Tem
jeito não.”

Esse
trecho tem muito forte a tua relação com a tua mãe. Esse momento
da brincadeira de boneca escondido. Eu queria te provocar a lembrar e
contar um pouco da tua infância, a partir desse trechinho que eu
acabei de ler.

Eu acho que eu tinha uma vivência livre e escondida. Livre, dentro do meu quarto, porque minha mãe sempre foi uma pessoa muito livre de qualquer barreira da sociedade. Não dividia o que uma criança menino ou menina podia ou não fazer. Eu tinha liberdade sim, de ter bonecas e brincar com essas bonecas, só que isso era apenas dentro do meu quarto. Eu mesma já entendia que fora dele eu não ia ser bem vista brincando de boneca – inclusive pelo meu próprio pai. Era por isso que, no próprio conto, é mostrado que eu escondia as bonecas do meu pai, quando meu pai ia para minha casa. Dentro de casa eu era uma criança mais livre, mas fora de casa, eu tinha uma vivência proibida.

Eu me lembro que você estudava em colégio
aqui perto da tua casa e que teve uma situação grave de violência.
Como é que foi a tua vida escolar?

Eu
sempre estudei em colégios particulares de elite. Em um deles eu
sofri bastante homofobia. Acho que a mais grave foi a agressão
física, mesmo. Dentre tantas agressões verbais, houve também a
física. Quando eu estava subindo as escadas dois garotos que
estavam atrás de mim passaram pela minha frente e falaram: “boiolas
vão atrás”, e me empurraram escada abaixo. Eu sempre sofri muito
preconceito no colégio. Quando eu transicionei continuei sofrendo
transfobia no colégio que eu estudei pós transição. Eu fiz a
transição nos Estados Unidos. Eu tive o privilégio de fazer a
transição no intercâmbio. Quando eu voltei, eu fui estudar no
Colégio Ideia – que inclusive tu fez uma pequena formação pros
professores para receber uma aluna trans. Acabou sendo bom. Mas a
transfobia não vem somente de professores, né? Também tem os
alunos em geral.

Eu
queria voltar só para mais um outro trechinho do livro, porque eu
acho que tem um momento muito bonito da tua primeira infância, que
tu gostava de brincar de palhaço:

Mainha,
me empresta o batom para eu pintar a boca das minhas filhas. Elas são

meninas,
né? Não tem problema elas pintarem a boca. Eu vou brincar com elas

de
circo. Eu vou ser o palhaço. Palhaço também pode pintar a boca,
né? Não tem

problema
palhaço usar batom. Com a maquiagem velha da mãe, contornava a boca
por fora. Mas quando se trancava dentro no quarto, desrespeitava os
limites dos lábios. Invadia a boca com o vermelho e aí a
brincadeira ficava mais gostosa.”

Quando
eu era criança – na verdade não era nem criança, que eu tinha 3,
4 anos por aí – minha mãe tinha me fantasiado de palhaço. Ela
tinha colocado batom no meu rosto e a roupa do palhaço também era
muito folgada e a parte de baixo parecia uma saia. Naquela época,
isso me remetia muito a um padrão feminino. Eu me sentia muito bem.
Um, porque eu tava usando um batom, que era um adereço considerado
para o sexo
feminino, e outro pela roupa. Daí eu passei a fazer isso outras
vezes. Eu passei a querer me fantasiar de palhaço outras vezes
porque isso me remetia a uma coisa tão eu, que eu poderia fazer e me
sentir bem e livre.

Tu
foi uma pessoa que se entendeu trans muito cedo e que transicionou
cedo também. Conta como foi o processo de identificação dessa tua
transgeneridade. Fala também sobre como tu enxerga esse tema – que
ainda é repleto de tabus e preconceitos – que é relação de
infância e identidade de gênero.

Eu me descobri enquanto trans – o termo trans – com 12 anos. Estava navegando no Youtube e, nos relacionados de um vídeo aleatório, que eu nem lembro qual era, tinha o documentário “My Secret Self” (Meu Eu Secreto). Era de crianças trans. Exatamente crianças trans. E isso eu tinha 12 anos. Não lembro que ano era exatamente, mas eu tinha 12 anos. Eu assisti o documentário e chorei logo de início. Terminei esse documentário e falei: “Eu sou isso”. Não falei “eu sou trans” ou qualquer coisa. Eu falei “eu sou isso”, porque eu consegui identificar tudo que eu sentia antes. Era uma confusão. Eu estava na terapia desde meus 6 anos de idade, porque meus pais estavam preocupados com meu jeito – entre muitas aspas – diferente. Eu descobri ali que tinha outras pessoas iguais a mim. Outras pessoas que viviam e viveram coisas iguais a mim. Foi naquele momento que eu entendi que eu era trans. Fiquei um mês vendo esse documentário. Depois de um mês, mostrei para minha mãe. Choramos juntas vendo o documentário. Quando terminou o documentário, eu já não falei “eu sou isso”. Eu já falei para minha mãe: “eu sou trans”. Ela não entendeu de início. Ficou muito confusa. Mas eu posso dizer que eu fui um pouco privilegiada porque tenho um tio gay na família. Já tínhamos um espaço mas aberto de diálogo. Eu fui para mais terapia. Ela também foi para terapia junto comigo, para entender mais. Fiquei um tempo sem falar com meu pai. Hoje já estamos muito de boa. Depois disso coisas ruins e coisas boas aconteceram. Uma dessas coisas boas foi que, nesse meio tempo, eu consegui um intercâmbio para poder transicionar nos Estados Unidos.

E
foi uma transição mais tranquila lá do que seria aqui?

Sim. Na escola de lá tinha um grupo LGBT e eu não era a única pessoa trans.

Agora tu vem
de uma maratona de festivais, acumulando diversos prêmios e
reconhecimento. Na primeira vez que eu te entrevistei, tu queria ser
cantora. Agora, mais do que atriz, tu já é uma atriz reconhecida e
premiada. Queria que tu dissesse como tu chega nesse mundo da
atuação? Como é que tu chega no cinema e como chega em Alice
Júnior?

Eu
já tinha feito o teatro quando criança. Não cheguei a sair do
teatro. O teatro é que saiu de mim, porque a escola que eu fazia se
mudou em 2016. Eu voltei a fazer teatro e, logo em seguida, por
questão de destino, houve uma seleção de elenco na internet para a
protagonista trans de um filme que ia contar a história do primeiro
beijo de uma adolescente trans. E aí eu me inscrevi. Mas fiquei
sabendo depois que, quando eu me inscrevi, minha mãe já tinha
mandado uma mensagem para o roteirista do filme dizendo que ela tinha
uma filha trans e que essa filha trans estava interessadíssima em
fazer o filme.

A
partir disso eu comecei a fazer várias entrevistas a distância, por
Skype. O filme é curitibano, não é de Recife. Fiz uns testes
também por Skype e fui para Curitiba depois. Em Curitiba fiz outros
testes e fui escalada para ser a protagonista de Alice Júnior. O
filme foi gravado em 2017. É um filme muito leve, muito didático.
Tem uma cena de umas questões bem impactantes. Ele leva a causa
trans de uma maneira muito didática. Você assiste o filme e, eu
considero, é um toque de esperança. O filme acaba sendo um conto de
fadas. Tem muitas coisas reais e tem muitas coisas que são para lhe
dar esperança.

Agora
que o filme lançou, a gente começou a percorrer uma estrada de
festival. Fomos para o de Vitória, Mostra São Paulo, Festival Mix
Brasil, Brasília, Fortaleza, Rio de Janeiro. No próximo ano, dia 5
de junho, entra em cartaz.

Tu
interpreta uma personagem que tem diversas semelhanças contigo e
certamente tem várias diferenças também. É uma adolescente trans
que passa por questões de violência na escola, que passa por
questões com seu próprio corpo, com sua própria identidade e que
teve uma vivência muito privilegiada também. No caso de Alice, de
ter vivido em uma redoma proporcionada pelo pai. Pensando nesses
paralelos, me conta o que Alice Júnior tem de parecido e de
diferente de você. O que você aprendeu com ela?

Eu acho que a Alice é muito mais empoderada do que eu. Essa diferença é a maior. Porque ela realmente é uma super-heroína. Ela catalisa as pessoas ao seu redor. O que temos em comum é o privilégio da aceitação da família, né? Eu sempre fui muito aceita pela minha mãe – um tempo não pelo meu pai, mas hoje em dia já estamos numa convivência muito boa. Alice também teve isso, né? Ela também tem um canal no youtube, como eu tive. Outra coisa em comum foi o primeiro beijo, que tivemos ambas nessa adolescência. O resto é spoiler e eu não posso dar.

Eu queria saber mais sobre a recepção do
filme. O que essa repercussão do filme tem te trazido – na sua
carreira, na sua família, para outras pessoas trans…

Eu
comecei a fazer faculdade de teatro esse ano. Quando gravamos o
filme, eu tive a certeza de que isso é o que ia seguir para a vida.
O filme tá tendo repercussão bem grande. Ganhamos prêmios: prêmio
de melhor atriz no Festival de Brasília (pela primeira vez dado a
uma pessoa trans) e no Mix (Brasil). Com isso, veio uma visibilidade
maior para mim e para a causa. Já estávamos ocupando esses espaços
antes de mim. E é graças a essas outras mulheres trans e homens
trans que estavam nas artes antes de mim, que eu estou agora também.
Mas eu também vejo que estando nesse momento, ocupando os espaços
que eu estou, outras pessoas trans também vão ter a oportunidade de
estar cada vez mais nas artes.

E
a recepção de outras pessoas trans? E da tua família?

Na
Mostra de São Paulo, as Mães Pela Diversidade de São Paulo
levaram crianças e adolescentes trans para assistirem ao filme. Teve
uma menina trans de 9 ou 10 anos que depois da sessão veio
emocionadíssima até mim. Tem a ver com representatividade. Se eu
com 9 anos tivesse visto um filme que tivesse uma adolescente trans,
interpretando uma
atriz, que quer dar o primeiro beijo, eu ficaria extremamente
emocionada. Ela chegou em mim e disse: “Eu te amo. Sou muito tua
fã. Tira uma foto comigo!”. Eu fiquei emocionadíssima. Primeiro
porque isso nunca tinha acontecido comigo. Depois, porque era uma
criança trans. Era uma menina trans que estava falando isso para
mim, né? E daí eu me vi como uma referência para ela. E saber que
eu pude ser referência para ela – e que eu queria ter tido essa
referência – me emocionou e me emociona até agora.

Com
minha família, uma boa parte dela, por parte de pai é de Fortaleza.
Tivemos uma exibição no For Rainbow, que é um festival de
Fortaleza. E a minha família por parte de pai foi. Minha avó foi.
Gostaram muito. Quando minha avó soube que eu ganhei o prêmio de
Brasília – que minha vó tem Facebook, super tecnológica – ela
comentou na publicação dizendo: “Parabéns, minha netinha linda”.
Ela nunca tinha me tratado assim (no feminino). Eu fiquei muito
emocionada também. Tenho recebido isso também, pós-filme.

Através
desse teu reconhecimento profissional – e social mesmo – as
pessoas próximas, que a gente ama, voltam a entender que podem amar
a gente.
É meio esquisito, mas é bom.

É
meio esquisito, mas é bom. A gente aceita esse amor, né? Não é
amor? Então…

Tem
uma pergunta que eu não deixo de fazer a nenhum dos meus
entrevistados e entrevistadas que eu chamo de “Pergunta Entre”.
Quem, nesse momento, nesse mundo, no teu mundo, precisa entrar?

A
minha resposta vai terminar sendo muito óbvia, mas eu não posso
deixar de falar. Eu acho que pessoas trans precisam entrar: na
educação, principalmente, porque é um dos primeiros lugares de
onde somos expulsas. Quando sofremos bulliyng e não temos nosso nome
social e nossa ida ao banheiro respeitados… Não estando na
educação, a gente não está em nenhum canto. Principalmente
pessoas trans negras e periféricas precisam estar e entrar nesses
espaços e serem
respeitadas. Além dos espaços da educação, também precisam
entrar na saúde e também ocupar outros espaços como o que eu estou
ocupando agora – como um Festival de Brasília.

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Foto Marco Zero Conteúdo
Marco Zero Conteúdo

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