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“A relação da política com a periferia sempre foi marcada por vidas sacrificadas”, diz integrante do Coque (R)Existe

Marco Zero Conteúdo / 17/05/2020

Comunidade do Coque. Crédito: Chico Ludermir

Por Chico Ludermir, parceria entre a Marco Zero Conteúdo e o Programa Entre da Rádio Universitária Paulo Freire

Instigados pelo momento, mergulhados na crise e à beira do colapso o Programa Entre, em parceria com a Marco Zero Conteúdo, volta, nesse regime de urgência, para, em entrevistas, pensar possibilidades e reinvenções para o presente e para o amanhã.

Nessa primeira edição da temporada que chamamos Reflexões sobre o agora e o porvir conversamos com o professor e pesquisador Cleiton Barros. Integrante do Coque (R)Existe, Cleiton é doutor em Educação e ensina na Universidade de Pernambuco, no campus da Mata Norte. Pesquisa temas relacionados à periferia e pobreza a partir da educação não formal e popular. Além disso, Cleiton é educador do Neimfa, associação que atua nas fronteiras entre educação e espiritualidade há mais de três décadas, na comunidade.

A
conversa passa por assuntos como bio e necropolítica, gestão da
crise, perseguição às periferias e perspectivismo ameríndio. Com
um pé fincado no agora e outro projetando o futuro, Cleiton denuncia
o sacrifício de vidas periféricas, o estigma que recai sobre os
mais pobres e a nossa dificuldade para parar de produzir e consumir.
“A relação da política com a periferia sempre foi marcada por
vidas sacrificadas”, afirma em um trecho.

Para o
pesquisador, as mudanças estruturais dependem de um trabalho
intencional e articulado: “Desconfio de que há um excesso de
esperança de que algo vai se transformar automaticamente em função
da pandemia. Como se não dependesse mais de nenhum trabalho ou
esforço nosso”. Leia abaixo a entrevista completa. O Programa
Entre é transmitido nas sextas-feiras nas rádios Universitária FM
99,9MH e Paulo Freire 820KH. Todos os programas estão disponíveis
no spotify programaentre

Como
você tem vivido nessa quarentena? Como tem rearranjado seu cotidiano
e que reflexões e insights tem tido a partir desse seu lugar
de leitura do mundo?

Eu tenho lido bastante. E tenho conseguido escrever também um bocado, porque eu estou me sentindo bastante provocado por essa situação de pandemia e de isolamento que a gente está sendo obrigada a fazer. O que eu estou tentando observar nisso tudo é o que se mantém e o que é novo. O que está aparecendo como coisa nova, o que está continuando a se reproduzir, a se perpetuar nos nossos comportamentos, nos discursos políticos, nossos modos de resistência. Eu estou observando isso com muita atenção porque estou um pouco desconfiado de que há certo excesso de esperança, digamos assim, de que algo vai se transformar quase que automaticamente em função da pandemia. Como se não dependesse mais de nenhum trabalho ou esforço nosso. Como se, necessariamente, nós fôssemos ser diferentes do que a gente vinha sendo. Eu acredito que essas alterações só serão possíveis se a gente puder fazer um trabalho intencional e articulado a partir de outros modos de articulação – já que o encontro presencial nesse momento não é possível. Mas eu acredito que isso depende de como a gente vai conseguir articular esses desejos de mudança, desejos de outro mundo e não o isolamento em si, a pandemia em si provocando mudanças significativas. O capital – essa inteligência que vinha comandando os nossos modos de viver, nossa maneira de fazer política – é muito hábil em capturar esses momentos e usá-los ao seu próprio favor. É o que eu vejo acontecendo nesse momento. Se a gente não tiver cuidado, se os movimentos sociais – se os espaços educativos como as universidades, os espaços de educação popular, os movimentos culturais não tiverem esse cuidado – a gente vai acabar simplesmente retomando, a partir, talvez, de outros princípios, de outras ações, a lógica do capital. Eu acho que esse é um cuidado importante que a gente deveria ter.

Professor e pesquisador Cleiton Barros. Crédito: Katarina Scervino/Divulgação

Vou
te fazer uma provocação a partir de uma passagem do texto de Paul
Preciado publicado na N-1,
Aprendendo do Vírus.
Ele escreve: “Fale-me como sua sociedade constrói soberania
política e eu lhe direi quais formas tomarão suas epidemias e como
você as enfrentará”. Queria que você, a partir dessa frase e com
os recortes que você quiser dar, me dissesse o que essa epidemia e o
enfrentamento brasileiro a ela revela sobre a nossa política?

Eu acho
que pensar sobre isso passa por um pensamento sobre a forma como a
grande política, essa biopolítica maior, a política institucional,
lida com os espaços e sujeitos periféricos por fora da experiência
da pandemia. A relação dos governos, historicamente, com os
sujeitos periféricos de uma maneira geral – as favelas, as
comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, a comunidade LGBT,
a comunidade negra – sempre foi uma relação de distanciamento, de
seleção biopolítica mesmo sobre as vidas que importam e aquelas
vidas que são deixadas e abandonadas sem mais. Para mim é muito
difícil imaginar que uma relação política que sempre foi baseada
nesse desprezo pela vida de alguns sujeitos, ela pudesse se alterar
significativamente nesse momento de pandemia e de isolamento
necessário que a gente tá passando, especialmente se a gente fala
do atual governo federal. Eu não consigo me surpreender com nenhuma
das falas (é quase um gênero textual hoje em dia, o gênero: o
presidente disse, qual foi a última do presidente). O “e daí?”
o “eu não sou coveiro”. Essas são frases corriqueiras, comuns,
banais, que a gente acaba ouvindo, às vezes de outras formas, em
relação à vida na periferia. Eu lembro que durante as lutas do
Coque (R)existe, em 2013, quando a gente estava naquele embate mais
direto com o Governo do Estado, um secretário, que hoje faz oposição
ao governo Bolsonaro, disse para nós que isso era normal. O contexto
do Coque (R)existe era o de que 58 casas iriam ser demolidas para
ampliar a via de acesso ao terminal integrado [de Joana Bezerra] e
quase 200 pessoas iriam ficar sem ter onde morar. E a gente
questionava isso, a possibilidade de redesenhar [o projeto de
viário]. Ele dizia que não podia redesenhar e que o governo estava
muito tranquilo naquele momento, porque ele sabia que para beneficiar
alguns a gente tinha que passar por cima de outros. Isso ficou na
minha cabeça até hoje. Ele disse: “Eu sei que para a gente
beneficiar muitas pessoas, a gente precisa passar por cima da vida de
alguns”. Então, essa relação política com a periferia e com os
periféricos sempre foi uma relação marcada por essa
característica. Vidas que são sacrificadas normalmente quando se
quer beneficiar esse espectro maior. E aí, a palavra “espectro”
para mim é muito cara, porque ela remete ao fantasma. Para
beneficiar essa ideia fantasmal, que, no Brasil, é a ideia de povo,
de cidadão no nosso país… Para beneficiar esse fantasma, chamado
Brasil, o governo diz que precisa passar por cima da vida de
alguns.

Segundo Achille Mbembe, criador do conceito de
necropolítica, a expressão máxima da soberania reside no poder e
na capacidade de ditar quem pode viver e quem pode morrer. Ou, dito
de outra forma, o poder de matar, deixar viver ou expor a morte. Como
você leria esse conceito no contexto da gestão da nossa pandemia?

Eu acho
que esses dois conceitos, como um par conceitual, servem muito bem
para analisar a situação da gestão da pandemia no nosso país. Com
muita clareza, a gente está vivendo um laboratório experimental,
vendo isso [a necropolítica] ser aplicada no nosso cotidiano. Deixar
chegar a esse limite [na gestão da pandemia] é uma opção de
governo, política. Não tem exatamente a ver com o vírus ou reação
a ele, mas como uma maneira de governar diante de várias situações.
O vírus é, digamos, a situação-limite atual, mas a gente vive o
tempo inteiro muitas outras situações-limite em que o governo toma
pra si essa tarefa de dizer quem vive, quem morre, quem é
beneficiado.

O
vírus, a doença, segundo Derrida, é sempre o estrangeiro, o outro
por assim dizer. No caso da sífilis, a alteridade perseguida foi a
prostituta, acusada de infectar os homens. Foram elas, protegendo a
moral do heteropatriarcado, que foram confinadas e deixadas para
morrer. No caso do HIV-Aids, os apontados eram homossexuais, usuários
de drogas injetáveis, os hemofílicos e, outra vez, as prostitutas.
No caso da Covid-19, quem você enxerga que é essa alteridade
atacada na gestão da pandemia?

Essa
pergunta me remete à ideia de estigma, como sendo essa marca que
alguns carregam no próprio corpo. No comecinho da quarentena, eu
estava escrevendo um texto, justamente tentando observar como esses
estigmas, durante a pandemia da covid-19, estavam se alterando –
porque a doença chega no Brasil através de pessoas da classe média,
classe alta, pessoas ricas, que viajaram para fora do país. Por um
breve momento parecia que aquelas pessoas seriam estigmatizadas,
quase como uma inversão no estigma. O pobre é estigmatizado como
causa de todos os males sociais. Da violência, do desemprego… tudo
de ruim que existe no nosso país, o pobre é acusado de ser o
responsável. Mas, lá no comecinho da pandemia, parecia que isso
estava se invertendo. Parecia que os ricos é que seriam
estigmatizados por terem, digamos, trazido o vírus para o nosso
país. Mas rapidamente isso se altera, quando ocorre a primeira morte
registrada no nosso país – que foi uma empregada doméstica que
trabalhava no Leblon. Quando morre a empregada doméstica a gente
percebe que, na verdade, os estigmatizados vão continuar sendo os
mesmos no nosso país. Quem tá carregando o estigma da covid-19, da
proliferação do vírus no país, continua sendo o pobre. Continuam
sendo aqueles que não têm a opção de fazer quarentena porque
precisam trabalhar, continuam sendo aqueles que moram em situações
extremamente precárias nas favelas, como é o caso da comunidade que
a gente vive, que é o Coque. Continuam sendo essas
pessoas.

Pensando em como a sociedade tem enxergado e
se reorganizado diante do isolamento, tínhamos alguns caminhos –
claro que para aqueles sujeitos a quem resta alguma possibilidade de
escolha: ou um momento para desacelerar, cuidar de si, silenciar,
refletir, ou manter, a todo custo, a lógica da produtividade. Se por
um lado, não paramos de produzir, por outro – ou talvez por isso
mesmo – também não paramos de consumir. A Amazon, como símbolo
disso, registrou um aumento de 26% em suas vendas. Como você tem
lido esse impulsionamento à produtividade e ao consumo? Como você
tem visto essa possibilidade de parar?

Eu acho que essa coisa do consumo e da produtividade tem a ver com o desejo de volta ao normal, de manutenção do que a gente vinha sendo e da possibilidade de voltar a ser o mais rápido possível o que sempre fomos. A gente desejar o retorno a uma experiência que era e sempre foi uma experiência muito dura, muito adoecedora, muito violenta, frustrante, uma experiência extremamente desigual, mas que a insegurança representada pela pandemia e a incerteza que a gente tem sobre a volta, a saída dessa situação, fazem a gente desejar um retorno àquilo que a gente é, aquilo que a gente sempre foi, sem que a maioria de nós se dê conta de que retornar a isso seria manter uma situação de dominação e de violência que é histórica no nosso país, e que é histórica no próprio mundo. Por outro lado, é curioso ver como essa situação toda deu a ver também uma série de outras maneiras de viver que normalmente estavam fora do nosso campo de visão. Essa coisa da generosidade, do compartilhamento, já é uma potência que as periferias, os sujeitos periféricos, já experimentam há muitos anos. Eu lembro também de uma das intervenções do Ailton Krenak no “Ideias para adiar o fim do mundo” em que ele diz: “nós indígenas, a gente já vem resistindo, já vem cultivando outras maneiras de viver por fora desses esquemas do consumo, por fora desses esquemas da produtividade há, pelo menos, quinhentos anos.” Eu acho que a visibilidade que esses povos têm ganhado nesse momento é importante. Quando eu falo de potência, eu não estou falando da reação a uma situação que se coloca, eu estou falando de uma maneira de viver que é o que nos mantém vivendo num país tão desigual como é o Brasil. Essas outras possibilidades de viver não são uma novidade que a pandemia trouxe. A gente tá conseguindo ver melhor agora, talvez, mas ela é o que faz as favelas continuarem existindo. Se não fosse a generosidade, se não fossem os laços de proximidade entre os vizinhos nas comunidades periféricas, nas comunidades pobres, essas comunidades já teriam desaparecido há muito tempo. Eu acho que a gente pode deslocar os nossos olhares até essas experiências e aprender com elas. Ir ampliando a existência desses outros mundos que já existem, que já estão, são acessíveis e que a gente pode fazê-los se expandir, se espalharem em outras experiências.

Podemos pensar que os tempos de crise e ruptura são tempos de reinvenção e reconfigurações em larga escala. Pensando a palavra entre como a relação e também como um imperativo, essa pergunta é uma provocação sobre que projeto de mundo temos – ou que é possível de se ter, a partir do que estamos vivendo hoje. Que mundo devemos criar – ou aos moldes do nosso programa, o quê e quem pode/precisa entrar?

Eu tenho me sentido muito provocado pelas relações entre a vida nas favelas, entre a origem das favelas no nosso país e as populações e comunidades afro-indígenas. Pensando do ponto de vista das pessoas comuns daqui da comunidade do Coque especificamente, é uma história que praticamente está apagada para nós: da origem afro-indígena da nossa comunidade, que é muito fácil perceber. Basta conversar com qualquer pessoa mais velha das nossas famílias e a gente descobre que veio de alguma cidade do interior de Pernambuco que tem algum histórico quilombola, indígena, mas que isso no nosso dia a dia praticamente acaba desaparecendo. Esse é um tema que tem me provocado muito: essas conexões das lutas indígenas e da comunidade negra e as lutas específicas dentro das favelas, dentro do Coque especificamente. Acho que nos dois casos são invocados elementos que os processos de resistência política mais clássicos e tradicionais, digamos assim, não dão conta, que é justamente de que há essa dimensão do vínculo, há essa dimensão da conexão, essa dimensão mágica da energia. Essa dimensão do que eles chamam de espírito, do que eles chamam de mundo. Dessa habilidade que os povos indígenas e os povos africanos têm de reconhecer nos elementos e nas forças da natureza, seres, vidas. Esse é um debate muito importante para nós, porque ele ativa outras possibilidades de organização e de conexão com o planeta, com a terra por fora desse esquema estrito do consumo e da produtividade, ou seja, da predação da terra. Se a gente tem respeito por esses outros seres que são os rios, o chão, o céu, as estrelas, as árvores, as plantas, se a gente tem respeito a esses seres como seres, a gente consegue ativar e trazer outros elementos para a luta política, para a luta social e que podem nos ajudar a reinventar esses outros modos de viver juntos. Tentando responder diretamente quem precisa entrar nesse momento: são esses outros seres, essas outras inteligências, esses outros sujeitos que essas populações de onde a gente vem, que são a nossa origem, sempre falaram para nós. São esses outros que precisam estar nesses lugares da política, nesses lugares da sociedade.

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