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Fronteiras da identidade Xukuru

Mariama Correia / 10/04/2018

A morte é, para o povo Xukuru de Ororubá, uma passagem. O índio que completou sua missão passa a viver nas pedras, nas matas e nos rios. Torna-se um encantado, um guia espiritual do povo. A natureza sagrada, casa dos seus ancestrais, é fonte de alimento, abrigo e inspiração para a tribo. Da mãe terra tiram o sustento do feijão, da fava, da banana, do milho, da macaxeira. Nela também serão plantados um dia.

O povo Xukuru de Ororubá está estabelecido em uma área de 27.555 hectares, no Agreste de Pernambuco, estado que tem a quarta maior população indígena do país. No alto de uma cadeia de montanhas, o território demarcado abriga 10,5 mil indígenas distribuídos em 24 aldeias. Cercado pela Mata Atlântica e pelos rios Ipanema e Ipojuca, que formam cinco barragens, fundamentais para o abastecimento do povoado e do município de Pesqueira, onde estão localizadas as terras indígenas, o cenário em nada lembra a aridez comum à região.

Mas o que a beleza desse oásis não conta é o duro processo de lutas e perdas no qual ele foi conquistado. A partir de 1990, as retomadas das terras tradicionais pelos índios, antes nas mãos de latifundiários e de famílias influentes no estado, deixaram um rastro de sangue na Ororubá, solo sagrado da tribo.  Com as ocupações das áreas habitadas por não-indígenas, os Xukurus conseguiram chamar atenção da mídia e  pressionaram o governo para acelerar as demarcações, mas despertaram a ira dos donos de terra.

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Ororubá (Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo)

Entre os tantos indígenas mortos nos conflitos com os fazendeiros, pelo menos seis lideranças da tribo foram assassinadas, incluindo Francisco de Assis Araújo, o  cacique Xicão, morto brutalmente em 20 de maio de 1998. “Plantado para que deles nasçam outros” no solo Ororubá, Xicão virou semente que brotou com a continuação das retomadas territoriais, as quais perduraram até 2008 sob a liderança do seu filho, Marcos Luidson Araújo, 39 anos, o cacique Marquinhos Xukuru.

Somente este ano, duas décadas depois da morte de Xicão, a luta do povo Xukuru conquistou um reconhecimento histórico. A violação dos seus direitos colocou o Brasil, pela primeira vez, no banco dos réus de uma corte internacional pela causa indígena. Em uma decisão sem precedentes, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o estado brasileiro por violar os direitos da etnia e o país agora tem 18 meses, a contar de 12 de março, para finalizar a demarcação do território tradicional da tribo, ainda incompleta, e indenizar os índios em US$ 1 milhão pelos danos sofridos em virtude da demora na regularização fundiária. Marco para os indígenas de todo o Brasil,  a decisão define a legitimação das conquistas e da resistência dos Xukurus, um povo para o qual o território representa a sua própria identidade.


A palavra Xukuru, na tradição da etnia, deriva do nome de um pássaro (uru), que se tornou raro na região por causa do desmatamento a partir do avanço das grandes criações de gado. Os índios dizem que o animal começou a ser visto com maior frequência depois da reconquista do território, como se a natureza, ao renovar-se, oferecesse uma metáfora perfeita para o povo que nela habita. Assim como o uru, ao ganhar autonomia negada por tantos anos sobre o próprio lar, a tribo também retornou às suas tradições. “A gente era proibido pelos fazendeiros de falar nosso idioma, que foi perdido, e de fazer nossos rituais”, conta o atual cacique, Marquinhos Xukuru.

Antônio Monteiro Leite, 72 anos, é testemunha desse tempo de servidão. “Trabalhávamos de domingo a domingo nas criações de gado sem receber nada, só pela moradia. Não podia plantar fava, macaxeira, era só capim. Quando crescia, eles mandavam a gente plantar em outra parte e assim tudo foi virando capim”, lembra.  Hoje ele comemora a liberdade de plantar e de tocar orgulhoso o seu membi – instrumento de sopro de som agudo e rústico, que costura o compasso marcado do toré, dança que une toda a tribo. “Sou um dos poucos que sabem tocar da minha geração, mas hoje já tem jovens aprendendo.”

O ciclo de silêncio e medo começou a ser quebrado a partir da primeira retomada, em Pedra D’água (1990),  quando a tribo resistiu unida por 90 dias nas ocupações das fazendas sob o comando do cacique Xicão. “Em cima do medo veio a coragem”, cita José Barbosa dos Santos, o vice-cacique Zé de Santa, lembrando da bravura do líder que virou mártir do povo. O enfrentamento aos fazendeiros obrigou a Fundação Nacional do Índio (Funai) a negociar com os latifundiários e a retirar não-indígenas do território tradicional. “A primeira retomada está marcada com uma barritina (espécie de chapéu feito de palha que é símbolo da tribo) no mapa que mostra as autodemarcações. Chamamos assim porque, diante da morosidade do poder público em agir, nós fomos lá e demarcamos”, explica o cacique Marquinhos, apontando para o registro cartográfico que eles mesmos produziram.

Na percepção da antropóloga com mestrado focado no povo Xukuru, Vânia Fialho,  a autonomia sobre o próprio território, a possibilidade de plantar, colher, de expressar suas tradições livremente,  produziu, além de uma independência econômica, o resgate das tradições do povo. “As aldeias são fixadas em terrenos sagrados, onde estão antepassados. Então há um valor muito maior do que a simples propriedade. É um sentido religioso e de pertencimento relacionado à percepção da etnia sobre o seu passado, e é determinante também para seu presente e futuro”, analisa. 

O cacique mais jovem do Brasil

Se por um lado as conquistas fundiárias trouxeram liberdade, por outro, deixaram perdas das quais o povo jamais se recuperou. Seis lideranças Xukurus foram assassinadas durante as retomadas, incluindo o cacique Xicão, e outras tantas criminalizadas. “Um ano antes de morrer, meu pai mandou me chamar. Eu estava em São Paulo. Disse que precisava me ensinar umas coisas. Foi como se ele previsse a própria morte”, conta Marquinhos Xukuru, que assumiu o cacicado aos 21 anos, dois anos após a morte do pai Xicão, se tornando o mais jovem cacique do Brasil na época.

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Cacique Marquinhos Xukuru na de Ororubá (Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo)

Antes mesmo do assassinato do pai, Marquinhos já havia sentido a dor das perdas do filho do pajé, José Everaldo Rodrigues Bispo, do procurador da Funai, Geraldo Rolim Mota Filho e do índio Xico Quelé, uma liderança na aldeia. Ele mesmo se tornou alvo anos depois, em 2003, quando sofreu um atentado por disputas internas entre os Xukurus, no qual morreram os índios José Ademilson Barbosa da Silva (Nilson) e Josenilson José dos Santos (Nilsinho). “Na época fiquei muito abalado, comecei a beber. Andava com seguranças. Mas os encantados me ajudaram, hoje não bebo mais. Acredito que meu pai me ajudou. Foi com a inspiração dele que continuamos as nossas retomadas”, considera o líder.
Herdeiro do espírito de guerreiro de Xicão, Marquinhos explica que na tradição indígena, cacique tem a liderança política e o pajé,  a liderança religiosa. Os cargos não são remunerados, porém exigem dedicação em tempo integral. “Abri mão da minha juventude. Trabalho o tempo todo por essa causa. As pessoas me procuram para resolver desde briga conjugal até problema na lavoura”, confidencia, explicando que tira sua renda da criação de 30 vacas reprodutoras. Embora desempenhe um papel de grande influência na comunidade e no próprio município de Pesqueira, o cacique faz questão de frisar que as decisões são tomadas coletivamente. Há líderes destacados em cada uma das 24 aldeias, além de conselheiros especiais como os de educação e saúde. “As lideranças se comunicam o tempo todo. Hoje o Whatsapp facilita”, brinca, garantindo não ser vinculado a nenhum partido político e negando qualquer interesse em candidatar-se a cargo público.

Seu Dedé vive da agricultura (clique no botão para assistir o vídeo)

Um santuário na natureza sagrada

“A existência do índio depende da terra”, define o advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cime), Adelar Cupsinski. E, para a tribo Xukuru, o direito coletivo ao território tem um significado alimentar. É que a agricultura e as pequenas criações de animais são as fontes de renda mais comuns entre a população. “Vendemos feijão, fava, abóbora, coentro, feira de Pesqueira”, conta  Everalda Soares da Paz, 56 anos, agricultora. Além da renda, a pequena plantação também alimenta a família de quatro filhos, seis netos e um bisneto. Com o feijão e o milho, ela cozinha o xerém casado, um dos pratos da culinária tradicional. Da macaxeira vem a farinha para a tapioca e para o beiju. “A roça dá o dinheiro suficiente para garantir a mistura (alimentação)”, comenta José Wanderley da Paz, o seu Dedé, 62 anos, esposo de Everalda. “É que pra nós a terra não é propriedade, é a nossa mãe, a gente cuida dela. Hoje me considero um homem rico porque posso colher o meu alimento”, comemora seu Dedé.

Da mãe natureza também vêm as curas que o pajé Zequinha ensina ao povo. Elo da comunidade com o sagrado, o pajé vive caminhando de aldeia em aldeia, repartindo seus conhecimentos. Por isso é difícil encontrá-lo fora dos rituais. “Ele não tem celular, não sei onde está agora”, responde o cacique quando tentamos marcar uma entrevista com o líder espiritual. Embora não esteja presente fisicamente durante a visita da reportagem, sua influência é percebida em toda a tribo, em saberes e ensinamentos. “Aprendi com o pajé a fazer chás que servem para tosse e cansaço”, comenta Zenilda Maria Araújo, 67 anos, mãe do cacique Marquinhos.

Liderança importante na comunidade, dona Zenilda também é uma espécie de guardiã das curas e dos mistérios da mata. O conhecimento das ervas medicinais usadas pela etnia atualmente está registrado em um livro. Os saberes milenares também conquistam, aos poucos, o reconhecimento do sistema de saúde público. Nos centros de atendimento espalhados pelas terras tradicionais, os agentes de saúde das unidades aprendem a incorporar remédios populares, como os chás, nos tratamentos. No quintal onde planta suas ervas, como a hortelã e a cânfora, dona Zenilda explica que as plantas não fazem mal como os remédios das farmácias. Lá ela também colhe a matéria-prima para os colares de sementes coloridas de arte indígena, confeccionados para complementar a renda da aposentadoria.

A palha das roupas festivas, o cipó dos cestos e a madeira de instrumentos musicais também são exemplos da arte produzida com os frutos do solo e ensinada por dez professores nas 36 escolas estaduais espalhadas pelas aldeias. “Instruímos as crianças a fabricarem esses elementos que ajudam a fortalecer nossas tradições. Tudo é feito de forma sustentável, para não agredir a natureza”, argumenta o professor de arte, Giovane de Lima Feitosa, enquanto monta cestos de cipó que servirão de lixeiro nas escolas.

Dona Zenilda, mãe dos Xukurus (clique no botão acima para assistir o vídeo) Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Dona Zenilda, a mãe dos Xukurus

Mãe do cacique Marquinhos e viúva de Xicão, dona Zenilda teve nove filhos. O caçula morreu há cinco anos, em um acidente de moto. Mas a família dela não é essa. “Minha família é o povo Xukuru”, diz. Mulher simples que se porta com a elegância de um membro da realeza, a mãe dos índios revela uma força revolucionária por trás do olhar sereno e da voz doce. “Deus me deu essa tarefa: a libertação do meu povo. Entreguei meu marido e meu filho pela causa porque quem nasceu pra morrer lutando não vai morrer parado”, sublinha. Mulher de saberes, como se define, ela é uma representação da força feminina na tribo. Esteve ao lado de Xicão durante as primeiras retomadas e iniciou um trabalho de conscientização das índias sobre suas tradições.

“Fiquei um ano e três meses acampada uma vez. Já fui ameaçada, perdi meu marido. Sofri muito, mas sou feliz porque já vejo algumas na luta que têm a força de dona Zenilda”, comenta e prossegue. “As mulheres têm um papel muito importante na tribo, assim como os velhos, as crianças, os homens. Todos na sua função. Por isso, agora, minha missão é conscientizar os jovens”, declara. Conselheira do povo, a matriarca também é como uma sacerdotisa da religião da mata e de seus mistérios. “A gente quando se junta pra dançar o toré, pra fazer os rituais, cantamos juntos cânticos que aprendemos na hora, eles vêm a partir dos sons da floresta. Uns ficam, outros vão embora. É um mistério. Nas ocupações vinham cantos de força”, revela dona Zenilda, que se considera uma religiosa. “Quando os padres chegaram catequizando os índios, eles trouxeram a religião, mas já adorávamos Deus nas águas, nas matas, nas pedras”, orienta.

[pullquote]“Acolhe teu filho minha Mãe Natureza, acolhe teu filho! Porque ele não vai ser sepultado, minha Mãe Natureza… ele vai ser plantado, para que dele nasça novos guerreiros” (Fala de dona Zenilda no enterro do cacique Xicão extraída do vídeo Xicão Xukuru, TV Viva, 1998)[/pullquote]

Antes menosprezadas e escondidas, as crenças Xukurus foram resgatadas e valorizadas. “Até os padres entendem os costumes e o sincretismo do povo, e respeitam”, diz. “Então, vou à missa, acredito em Jesus e também nos encantados,  em pai Tupan e mãe Tamain (divindades Xukurus)”, explica.”A igreja é quatro paredes,  Deus é encantado. Está em todas as coisas”, define com sabedoria.

As novas fronteiras do ser Xukuru

A promulgação da Constituição Brasileira, em 1988, trouxe o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas, entre eles à posse coletiva das terras ocupadas tradicionalmente por esses grupos. Mas as demarcações deveriam ter sido concluídas pela união no prazo de cinco anos a partir da promulgação do conjunto de leis, conforme previsto no próprio texto. Passados trinta anos, contudo, a questão permanece em aberto e o ritmo das demarcações, lento. Pouco mais de 30% das terras indígenas brasileiras estão demarcadas, segundo levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Em Pernambuco, dos 16 territórios indígenas identificados, apenas quatro estavam demarcados em 2016, de acordo com o Cimi.

Nos últimos anos, o problema agravou-se ainda mais com enfraquecimento da Funai. No caso dos Xukurus, apesar das retomadas e de todos os conflitos, a demarcação do território reconhecido desde 1995 pela Fundação segue inconcluso. Falta a desintrusão, ou seja, a retirada total dos não-indígenas, que avançou 95% até agora, ou seja, 5% dos habitantes não fazem parte da etnia. “São cerca de seis famílias não-indígenas habitando o território. Também há 45 não-indígenas que ainda não receberam os pagamentos das chamadas de benfeitorias de boa-fé, uma indenização pelas construções. Isso gera novas tensões numa área marcada por conflitos”, destaca o advogado do Cime, Adelar Cupsinski.

Os pontos abertos deixam as conquistas dos Xukurus expostas e vulneráveis. Há, atualmente em tramitação, processos que questionam o território demarcado tramitando na Justiça. “Estamos conscientes de que ainda precisamos resistir, embora a decisão da Corte Interamericana tenha sido importante para fortalecer  a nossa luta”, considera o cacique Marquinhos, que está sempre ativo na defesa das  causas indígenas, participando de eventos em todo o país, inclusive na capital Federal e fora do Brasil. “Há uma rede entre nós indígenas, onde trocamos informações,  nos articulamos, aprendemos com as lutas uns dos outros. Isso nos fortalece”, revela.

Mas até a união da tribo também está sujeita aos assédios do dinheiro e do poder. Um conflito interno dentro da própria tribo, que teve origem a partir de um projeto de construção de uma estrada que facilitaria o acesso a um santuário católico dentro do território, dividiu o grupo e culminou numa emboscada ao cacique Marquinhos em 2003.

O líder conseguiu escapar com vida, mas dois índios foram mortos. O ataque, de autoria do Xukuru José Lourival Frazão, chamado de Louro, preso posteriormente, também teria sido estimulado por fazendeiros. O resultado foi a expulsão de cerca de 30 famílias do grupo ligado a Louro, chamados de Xukurus de Cimbres, do território tradicional. Liderados atualmente pelo vereador Biá (PSC), Expedito Alves Cabral, as famílias foram posteriormente reassentadas pela Funai em uma área mais próxima de Pesqueira, mas vivem em situação precária. “São cerca de 30 famílias em barracos e casas de pau a pique, sem saneamento”, queixa-se Biá.

Marco jurídico

Apesar de todas essas tensões ainda existentes, a advogada dos Xukurus no processo julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, Raphaela Lopes, da Justiça Global explica que a sentença é abriu um horizonte de esperança para que as questões em aberto sejam, finalmente, sanadas. “A União está agora obrigada finalizar o processo de demarcações em 18 meses, isso inclui pagar as indenizações pendentes e concluir o processo de extrusão”, detalha.

Para ela, além de atender as demandas da tribo, a decisão se tornou um precedente jurídico para as causas indígenas no país, por rejeitar conceitos como o marco temporal. “Vai fortalecer as lutas porque derrubou a tese do marco temporal, segundo a qual o Supremo Tribunal Federal defende que as terras somente poderiam ser demarcadas pelo estado se a comunidade estivesse ocupando em outubro de 1988, quando a constituição foi promulgada. Ora, essa interpretação não leva em conta o histórico de violência que essas comunidades sofreram, muitas vezes do próprio estado, tendo sido empurradas para fora de suas terras tradicionais desde a colonização”, argumenta. Antropóloga, Vânia Fialho pondera, entretanto, que a sentença da Corte deixou de fora grandes violências sofridas pela tribo, entre elas o próprio assassinato do cacique Xicão,  analisado apenas de forma contextual porque os procedimentos legais brasileiros para o caso não haviam sido esgotados na época de apresentação do processo na instância internacional.

“Do mesmo modo, o julgamento não considerou a exumação do corpo de Xicão na frente de seus familiares, uma grave violação de direitos do povo. A exumação foi feita pela polícia com uma faca peixeira, expondo seus restos mortais na frente de todos, o que é um grande desrespeito do ponto de vista da cultura Xukuru”, critica a antropóloga. Para ela, a exumação de Xicão também foi “um claro sinal do processo de criminalização das lideranças, dos povos e dos movimentos indígenas no Brasil, que ainda continuam sendo assassinadas todos os dias”.

Um relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) aponta que a violência contra povos indígenas no Brasil levou a 118 assassinatos somente em 2016. No mesmo ano, contudo, a Funai, responsável pelas demarcações indígenas no país, teve seu orçamento cortado em 23%. “É uma questão política. Atualmente os processos de demarcação estão quase que totalmente paralisados porque não é interessante para o atual governo mexer com a questão indígena por conta da pressão que ele sofre para atender os interesses da bancada ruralista, no Congresso”, argumenta o antropólogo Ivson Ferreira, da Funai Recife.

“No Recife, por exemplo, a situação da fundação é de total precariedade. Os técnicos trabalham sem internet e nem telefone, dependemos muitas vezes da estrutura física da Funai Alagoas. Inclusive também há carência de pessoal”, acrescenta. A Funai e o Ministério da Justiça, pasta a qual a fundação é ligada, foram procurados, mas não responderam aos questionamentos da reportagem.

Novas fronteiras: a resistência continua

Na escola estadual intermediária Monsenhor Olívio Torres, na Aldeia Cimbres, Sabrina Melo Monteiro, 16 anos, cursa o 3° ano do Ensino Médio. A escola é mista, ou seja, nela estudam indígenas e não-indígenas que ainda habitam o histórico povoado, antiga sede do município onde aconteceram as primeiras catequizações dos indígenas. Sabrina está conectada nas redes sociais pelo celular, como qualquer adolescente do seu tempo. Gosta de dançar forró, mas também coco de roda e toré. “Não sou diferente de ninguém. Essa história de achar estranho índio de calça jeans e de celular não existe mais”,  argumenta a estudante, que sonha em estudar fora da aldeia para se tornar professora ou advogada e, assim, defender as tradições e as causas da tribo.

Uelson Pereira, 19 anos, também pretende cursar faculdade em Pesqueira, não para abandonar o território, mas para saber lidar melhor com ele. “Quero fazer um curso de agronomia para ajudar na plantação dos meus pais, além de sustentar minha namorada e o filho que estamos esperando”, comenta. A namorada dele tem 16 anos e está grávida de dois meses. Mas, nem todos pensam como Sabrina e Uelson. A conscientização dos jovens sobre a importância da manutenção do território e das suas tradições é um novo desafio para os Xukurus. A professora Jucenilda Simplício Freire, 35 anos, explica que muitos não querem ser agricultores como os pais e as oportunidades em outras áreas são escassas dentro das aldeias.

“Então há todo um processo de criar o interesse dos alunos, porque a educação no indígena inclui um ensino oficial do currículo comum a todos os estudantes do país, e outro específico, no qual são ensinados conteúdos como o remanescente do nosso  idioma – 800 palavras que restaram  –  a geografia do território e nossas tradições. Mas é difícil despertar essa percepção do valor desses ensinamentos diante de tantos apelos como a mídia e a internet”, comenta. Pai de três filhos que moram fora do território Xukuru com a ex-esposa, o cacique Marquinhos sabe que manutenção e a expansão das fronteiras pelas quais seu pai deu a própria vida e que têm sido objeto da sua luta diária dependem agora das novas gerações.

“É preciso criar neles esse entendimento de que nossa resistência continua. Por isso, faço questão de trazer meus filhos para todos os rituais. É onde eles aprendem e se identificam com os costumes Xukurus”, comenta. Com o mapa do território nas mãos, o jovem líder comemora os feitos até aqui. “Você vê todas retomadas? Lutamos muito, sofremos, fomos mortos e incriminados, mas conquistamos nossa liberdade, nossa terra sagrada”, pontua. “Está vendo que existem fronteiras destacadas para além de Pesqueira, até a divisa entre Pernambuco e Paraíba? Tudo isso era terra Xukuru no passado. Está marcado aí no mapa para que a juventude veja e entenda. Essa é a luta que deixo para eles.”

Confira abaixo a galeria de fotos:[Best_Wordpress_Gallery id=”37″ gal_title=”Xukuru”]

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Mariama Correia

Jornalista formada pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e pós-graduada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi repórter de Economia do jornal Folha de Pernambuco e assinou matérias no The Intercept Brasil, na Agência Pública, em publicações da Editora Abril e em outros veículos. Contribuiu com o projeto de Fact-Checking "Truco nos Estados" durante as eleições de 2018. É pesquisadora Nordeste do Atlas da Notícia, uma iniciativa de mapeamento do jornalismo no Brasil. Tem curso de Jornalismo de Dados pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e de Mídias Digitais, na Kings (UK).