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Luís Felipe Miguel: “Mídia contribui para desconstruir dois consensos: o da necessidade do combate à desigualdade e o da democracia eleitoral”

Laércio Portela / 03/06/2016

Dois consensos que pareciam consolidados após a ditadura militar no Brasil estão sendo desconstruídos: o da necessidade política de combater a desigualdade extrema e o consenso em relação aos procedimentos da democracia eleitoral. A ideia de que a única forma aceitável de alcançar o poder é pelo voto. E os meios de comunicação estão contribuindo de forma decisiva para criar narrativas que justifiquem isso. Este é o grave diagnóstico traçado nesta entrevista para a Marco Zero Conteúdo pelo professor titular do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), Luís Felipe Miguel.

O pesquisador, que se especializou em análises sobre a relação entre mídia e política no Brasil, acredita que os novos consensos que estão sendo construídos no país contrariam claramente os interesses da democracia e da igualdade social. Crê que a participação efetiva da grande mídia neste processo está relacionada à crise de financiamento do jornalismo tradicional com o surgimento das novas tecnologias. “Os meios de comunicação tradicionais estão todos em crise. Então, como está cada vez mais difícil vender informação, eles passam a vender influência”.

Luis Felipe Miguel coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdade (Demodê) e edita a Revista Brasileira de Ciência Política. É autor de Política e Mídia no Brasil (Plano, 2002), O Nascimento da Política Moderna (UnB, 2007), Caledoscópio Convexo: mulheres, política e mídia (com Flávia Birole, Unesp, 2011) e Democracia e Representação: territórios em disputa (Unesp, 2014), entre outros livros. Nesta entrevista, ele avalia as implicações políticas do afastamento da presidenta Dilma Rousseff, a cobertura da grande imprensa e sua crise de credibilidade e os desafios do jornalismo independente.

Como avalia o comportamento da grande mídia na cobertura política recente: Governo do PT (Lula e Dilma), Operação Lava-Jato e processo de impeachment da presidenta Dilma?

De duas décadas para cá, a partir da democratização e da abertura, nós vivemos um processo por meio do qual os meios de comunicação, a grande mídia, parecia estar se civilizando. Especialmente se pensarmos em 1982 – quando tentou fraudar a eleição de Brizola no Rio de Janeiro – e em 1989 – com a manipulação escancarada de informação na campanha do Collor. A partir daí tivemos um padrão de a mídia tentar intervir na política, mas intervir na política de um modo mais discreto. Padrão que culmina com a vitória do Lula em 2002 em que a Globo, que é o carro-chefe da grande mídia brasileira, entra num padrão de imparcialidade ostensiva, querendo dar espaço igual a todos os candidatos. A partir de 2002 pra cá a gente retrocede. A eleição de 2014, a reeleição da Dilma, ela foi extremamente violenta, o viés da mídia em todo o processo. E isso não parou. O que a gente tem de diferente no momento é o fato de que as forças de oposição, que incluem a mídia, elas decidiram não aceitar o resultado das eleições. Os grandes jornais, as revistas semanais de informação mais influentes e as principais redes de televisão, todos esses veículos de comunicação, alguns de maneira mais aberta outros de uma maneira mais envergonhada, mas todos incorporaram o discurso de oposição de questionar a vitória da Dilma em outubro de 2014. Isso gerou uma cobertura totalmente partidarizada e enviesada, que foge completamente dos parâmetros pelos quais o jornalismo avalia a si mesmo.

Em que pontos a cobertura atual da grande mídia se assemelha àquela de 1954 na crise que culminou com o suicídio de Vargas e à cobertura de 1964 quando ocorreu o golpe militar que derrubou o presidente João Goulart?

As comparações especialmente com 1964 são muito evidentes. Nos três casos, 1954, 1964 e 2016, nós temos um arco de alianças de setores da sociedade contra governos que eles avaliam como demasiado reformistas. Isso aconteceu com Getúlio, com João Goulart e, agora, também com a Dilma. Grande capital, latifúndios e interesses americanos no Brasil acham que esses governos estão passando de alguns limites aceitáveis. E os meios de comunicação são subsidiários deste arco de alianças. Os grandes meios de comunicação estão vinculados historicamente a estes grupos da elite brasileira. Eles são economicamente dependentes da publicidade e estão vinculados pelos laços familiares e pelos laços de negócios em comum. Os meios de comunicação agem como porta-vozes de uma agenda política reacionária. Isto é algo que está sempre presente na história do Brasil e que se torna mais visivel nos momentos de crise, quando os anteparos para ganhar credibilidade são deixados de lado. Por que que eu acho que 1964 é similar ao que está acontecendo hoje? Porque em 64, mais até do que em 54, nós tivemos a produção de um discurso de direita a longo prazo a partir de organizações pesadamente financiadas a partir do estrangeiro que tinham como objetivo produzir opinião pública de uma determinada forma. No futuro, vamos ter trabalhos de pesquisa analisando as semelhança desses grupos que surgiram nos últimos anos, como o Instituto Millenium e o Movimento Brasil Livre (MBL), com o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipês) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibase), que criaram um caldo de cultura para permitir o apoio popular ao golpe de 1964.

E onde entram os veículos de comunicação?

Os meios de comunicação dão espaço desproporcional para estes grupos de pensamento de direita. Uma das coisas impressionanates do momento que a gente vive é que aí vem um Kim Kataguiri da vida, surgido ninguém sabe de onde, sem nenhuma trajetória popular, e se torna uma celebridade e ganha um espaço gigantesco ao passo que movimentos sociais importantes do Brasil não conseguem furar o bloqueio dos grandes jornais. Os meios de comunicação deliberadamente abrindo espaço e alavancando o discurso da direita. O que é muito importante para eles porque para que este golpe progrida, qualquer golpe, seja militar ou de outro tipo, como é o caso do que estamos vivendo agora, é preciso conseguir construir uma base social para ele. E foi o que aconteceu no Brasil nos últimos anos. Não é algo que aconteceu agora, é algo que vem sendo produzido nos últimos anos. Uma base social de direita foi construída em grande medida iludida porque os verdadeiros beneficiários do retrocesso que está se abrindo são muito poucos. Mas eles conseguiram construir um discurso de demonização da esquerda e do PT em particular e em favor do Estado mínimo. E a verdade é que se este discurso ganhou uma certa base é porque os meios de comunicação foram absolutamente fundamentais nisso, criando as condições para que nós recuássemos de um consenso que havia se formado historicamente: o de que o Brasil precisava superrar as suas grandes desigualdades. Nós tivemos um momento neste país, logo depois da ditadura, que não existia um único ator politico que, pelo menos da boca para fora, não se colocasse contra as desigualdades. E isso foi rompido por um discurso de direita e os meios de comunicação contribuíram muito para inflar este discurso.

Depois dos dois primeiros mandatos do ex-presidente Lula e da eleição de Dilma parecia que os avanços sociais conquistados, mesmo que não representassem tudo o que a esquerda preconizava, não seriam mais questionados. Mas parece mesmo, como você diz, que estes consensos estão ruindo.

O André Singer (ex-porta-voz do primeiro governo Lula e professor da USP) escreveu uma série de artigos e depois um livro (Os Sentidos do Lulismo, Companhia das Letras, 2012) em que afirma que o Bolsa Família acabou estabelecendo um novo patamar para a disputa política brasileira. Que a partir do Bolsa Família ninguém mais seria capaz de governar o Brasil sem estabelecer políticas compensatórias de combate à míséria. Eu acho que ele está errado, infleizmente. Eu acho que a gente recuou nisso.

O discurso da direita vocalizado pela grande mídia tem um peso nisso.

Existe um fenômeno. Existe uma disparidade entre a visibilidade que o discurso da direita tem e sua real penetração social. A gente viu coisas impressionanates. A gente viu discurso do tipo “eu quero os meus privilégios”. Isso a gente viu. Mas se a gente for medir esse discurso ainda é muito menor do que a aparência de base para este discurso. Então eu acho que os meios de comunicação não estão tendo apenas um papel importante na construção da narrativa que permite o golpe no Brasil hoje. Eles estão tendo um papel a mais longo prazo de fazer retroceder o debate politico no Brasil. Tem dois consensos importantes que estão sendo rompidos no Brasil e eu acho que os meios de comunicação estão sendo importantes para isso: o consenso da necessidade política de combate à desigualdade extrema e o consenso em relação aos procedimentos da democracia eleitoral. A ideia de que a única forma aceitável de alcançar o poder é pelo voto. Isso também está sendo destruído. E os meios de comunicação estão contribuindo muito para criar narrativas que justifiquem isso. Quando a gente faz a crítica da mídia, quando questiona o noticiário, a gente aponta para a manipulação pontual, para uma manchete tal e a notícia tal, mas para além do pontual, o que está ocorrendo é uma tentativa de construção de um novo consenso. De uma nova visão da política que, de fato, contraria os interesses da democracia e da igualdade social. Os meios de comunicação estão funcionando como instrumentos disso. Eu diria que, em parte, a gente explica isso pela crise de financiamento desses meios de comunicação. Estão todos em crise. Então, como está cada vez mais difícl vender informação, porque a venda de informação entrou em crise com as novas tecnologias, eles passam a vender influência. Os meios de comunicação são sustentados por estes interesses que querem que estas visões do mundo se disseminem e são estas visões que eles estão vendendo hoje. Estão vendendo infuência sobre a opinião pública e a serviço desses interesses.

Como você vê o surgimento do jornalismo independente na internet? Acredita que este tipo de jornalismo pode ter um papel importante na desconstrução desse novo consenso, atuando como contraponto à grande mídia?

Olha, eu acho que a gente tem algumas fantasias e algumas ilusões, mas também temos algumas possibilidades em aberto. Porque muita gente acaba se demitindo da tarefa de lutar pela democratização da grande mídia achando que pela internet a gente encontrou uma fórmula, um atalho. Só que na verdade o que circula nas visões altenativas na internet, o que circula nos blogs jornalísticos, o que circula nas redes sociais ainda é muito dependente da mídia tradicional. Então, frequentemente, o que se tenta fazer é promover interpretações diferentes, mas numa base de informação que ainda vem de lá, da grande mídia. Inclusive porque este fluxo continua sendo muito unidirecional. O que sai na Folha, sai no Jornal Nacional. O que sai na Veja pauta todas essas visões independentes e a gente vai reagir à revista. Você vê sites, muitas vezes à esquerda do governo, apresentarem boas reportagens, muito bem embasadas, e existe um silêncio total e isso cai no esquecimento rapidamente porque a mídia tracional não repercute. Então eu acho que a gente tem que continuar brigando pela democratização destes veículos, porque eles continuam ocupando uma posição central no nosso sistema de informação. Até lá, até essa democrtatização sair, acho que temos que tentar fortalecer– e eu não sei exatamente como – formas de jornalismo independentes das grandes corporações, mas que funcionem mais como jornalismo tradicional. Porque eu acho que a gente tem hoje bons sites independentes de jornalismo que nos fornecem reportagens aprofundadas sobre determinados temas. Nós temos meia dúzia no Brasil hoje funcionando com isso. O que nos falta é uma cobertura do dia a dia que seja capaz de se contrapor à narrativa da grande mídia. Eu acho que se a gente pensasse em termos de um financiamento coletivo, se a gente conseguisse reunir uma frente que se dispusesse a bancar um jornalismo do dia a dia… Eu sou de uma geração que precisa ter o jornal de manhã para saber o que está acontecendo no mundo. E o que eu tenho como opção? O Globo, Estadão ou Folha de S.Paulo. Não tenho como sair disso. Então a gente precisava avançar nisso porque esse jornalismo que fornece o dia a dia da informação, ele é muito influente. E no momento nós estamos no discurso de interpretar o que eles nos dão.

A mídia internacional tem se posicionado de uma forma muito mais crítica sobre o processo politico no Brasil. O que essa mídia internacional vê que a nossa mídia não vê?

Isso mudou ao longo do processo. No início, a cobertura internacional estava alinhada à cobertura dos jornais do Brasil. Houve um esforço para mudar isso. Inclusive eu participei de uma das iniciativas, foram várias. Fazíamos abaixo-assinados, manifestos, traduzíamos textos para outras linguas para sensibilizar a sociedade acadêmica internacional e isso acabou chegando. Vários grupos da sociedade se mobilizaram. E por que que eu acho que essa iniciativa deu resultado? Chega a ser patético o constrangimento do jornalismo local que sempre se espelhou na mídia internacional – tendo agora que fingir que não é com eles. Por que houve esta mudança? Eu acho que existe um custo pro nível de manipulação feito pela mídia brasileira. Não é uma informação ligeiramente errada. É manipulação mesmo. Coberturas diferenciadas, pesos diferenciados para fatos basicamente idênticos. É algo assim escancarado. Isso tem um custo. Então para um jornalista dos Estados Unidos, da Inglaterra, da França e da Espanha e para suas empresas, qual o interesse em pagar este custo de você ter uma ruptura potencial de credibilidade para algo que é tão distante, no Brasil? De partida, existe uma exigência profissional maior lá, enquanto nosso jornalismo sempre foi muito frágil do ponto de vista da independência profissional. Sempre tivemos uma influência dos proprietários das empresas de forma muito aberta, isto faz parte da cultura jornalística brasileira. Em outros países não é assim. Você tem graus de resistência maiores. A ideia de que um proprietário de um jornal francês vá determinar o noticiário, do modo como acontece no Brasil, causa muito estranheza e, por outro lado, para esses países a questão política brasileira não é uma questão vital. No começo, como era no Brasil, um país distante, eles acompanhavam o que acontecia aqui pelos canais da nossa imprensa, pelo noticiário brasileiro. Cheguei a ser entrevistado por jornalista europeu e ele não sabia de nada, não tinha informação. Quando vem de lá uma outra pressão, porque houve aquele esforço daqui de chamar a atenção para o que estava acontecendo, eles são sensíveis a isso por estes dois motivos: porque para eles não era central e porque eles já têm padrões de ética profissional mais exigentes do que os nossos. Como temos muito o espírito colonizado, para alguns setores da sociedade, o fato de lá fora o noticiário ter se movido de outra forma, ajudou muita gente a pensar em outros termos sobre o que estava acontecendo aqui.

Nós tendemos a criticar muito a grande mídia, a mídia corporativa, e deixar de lado a crítica aos jornalistas propriamente. Mas as matérias não são escritas nem editadas pelos donos. Como você vê o processo de autocensura nas redações? Se a essência do jornalismo é questionar tudo e todos por que as redações não questionam o seu próprio trabalho?

É complicado generalizar. Mas generalizando mesmo assim, eu acho que a gente teve nos últimos anos uma depuração para pior nas redações. A gente vive décadas de enxugamento das redações no Brasil, você tem demissões e, portanto, cada vez menos gente fazendo o jornal. Acredito que um dos critérios para a permanência no jornal e para alcançar as posições de chefia é ter uma espinha dorsal muito flexivel. Falo da minha observação em Brasília. A gente tem repórteres muito jovens querendo subir muito rápido na carreira. Parece que estão topando qualquer negócio. Eu acho que existe aí um problema. A gente forma muito jornalista, mas a gente tem muita gente que passa rapidamente pela profissão e não consegue ficar. Daí que os que ficam na redação têm ambição e estão, não são todos claro, muito dispostos em geral a dançar conforme a música. Aí a gente tem essa autocensura à qual você se refere. Pra quem está na posição de chefia e para os patrões reduz muito os custos, a autocensura, porque a pessoa já parte daí. Não dá para você colocar a culpa só nos patrões. Não são eles que escrevem as matérias. Tem gente fazendo este serviço.

Diante disso tudo, podemos falar que estamos diante de uma crise do jornalismo brasileiro?

Eu acho que existe uma crise. Com as novas tecnologias a gente começa a ter uma possibilidade por parte do consumidor de informação de ter acesso à informação grátis. Eu não preciso mais comprar o jornal. As informações estão circulando. Alguém republica um material e daí eu tenho acesso e tenho a informação grátis. Muita gente hoje lê jornal por links no Facebook. O que acontece é que a informação continua tendo um custo para ser produzida. É gratis, mas continua tendo um custo para ser produzida. E os jornais não conseguiram resolver essa equação. As emissoras de TV têm outros problemas por causa da internet. E os jornais impressos também. As pessoas não querem ver anúncios. Ninguém clica naqueles negócios. Você procura logo o bloqueador de pop up. Ninguém quer ver anúncio. Quando as pessoas podem escapar do anúncio, elas escapam. Então como você financia isso? Eu acho que o modelo tradicional de jornalismo não se sustenta mais. Qual é a resposta que foi dada até o momento? A resposta foi os jornais recuarem. Do jornalismo comercial que se financiava pelo anúncios para o jornalismo que se financia porque é porta-voz de determinados interesses. Então parte do problema é esse. E como é que a gente resolve isso? Olha, eu não acho que as tarefas do jornalismo sejam dispensáveis na sociedade atual. A gente continua precisando que alguém colete informação, reúna essa informação de uma maneira que seja consumível e nos entregue para que possamos nos situar no mundo. Mas a forma que se utilizava no capitalismo, do jornalismo comercial, não está funcionando mais. A gente vai ter que pensar em outro método porque o pior mundo é esse, desse jornalismo que não se financia pelo mercado e se financia porque está a serviço de uma grande corporação, está a serviço de grandes interesses. Ou então temos o jornalismo que tenta colocar a publicidade dentro do material jornalístico. Já que as pessoa não veem o anúncio fora, vai misturar com o jornalismo. Até o New York Times fez experimentos neste sentido. Tem um autor americano que propõe o jornalismo financiado pelo Estado, no modelo da pesquisa universitária. No sentido de que a pesquisa universitária é financiada pelo Estado, mas tem grande independência em relação ao Estado. Ele acredita que o jornalismo do futuro para cumprir as suas funçõe públicas precisaria ser dessa forma. O certo é que alguma solução teremos que ter porque nós continuamos dependentes dessas informações para nos situar no mundo. A gente está cada vez mais dependente do jornalismo subfinanciado e com qualidade cada vez pior. Isso é trágico do ponto de vista da cidadania. Eu acho que é um dos problemas que precisam ser resolvidos. No caso brasileiro, a gente está vendo agora, ao apagar das luzes, uma melhoria do padrão do jornalismo público, nos últimos meses a gente tem aí as TVs públicas investindo no jornalismo, mas essa experiência vai acabar no dia 12 de maio. Infelizmente eu acho que o horizonte do futuro próximo é triste.

Lembrando 1964, um elemento novo de 2016 seria o alinhamento entre o Judiciário, a Polícia Federal e o Ministério Público. Bem ou mal avaliados, os poderes Executivo e Legislativo se submetem ao escrutínio popular e são fiscalizados diuturnamente pela imprensa, o que não acontece com o Judiciário. Como é que você analisa a aliança desses setores? Segmentos vistos como eminentemente técnicos. Como você avalia este arranjo e o seu relacionamento com a grande mídia? Quase não houve investigação da mídia no processo atual em comparação com o impeachment de Fernando Collor em 1992.

Nós temos vários elementos aí. Eu acho que a gente tem hoje um pedaço importante do aprelho repressivo do Estado, o Ministério Público, o Judiciário e a Polícia Federal, que foi muito fortalecido nos governos do PT e que ganhou uma pretensão de autonomia. Uma das coisas mais chocantes é a ideia que a polícia vai ser autônoma em relação ao poder civil, como se defende abertamente a autonomia da Policia Federal como se fosse um novo poder do Estado. Essas carreiras foram muito fortalecidas. Eu tô aqui em Brasília. Em Brasília existe até uma palavra, praticamente usada só aqui que é o concurseiro. O rapaz se forma na universidade e vai se dedicar a passar num concurso altamente competititvo para entrar numa dessas carreiras de delegado da Polícia Federal, procurador do Ministerrio Público e juiz. Estes jovens se preparam para este concurso. Tem gente boa, mas tem muita gente que se julga onipotente porque ultrapassou essa barreira, tem 20 e poucos anos e está num cargo de poder, altamente remunerado. Aí a gente começa a ter este sentido de onipotência e da capacidade de refazer o mundo a partir do que julga que é o certo. Daí vão ser frenquentemente pessoas muito conservadoras. Eles entraram claramente neste sentido de missão e não têm nada que possa afastá-los dessa missão. Acho que tem esse elemento. E tem outro elemento, uma ponte com a mídia, que é o fato de que a gente vive num estado que é um Estado Democrático, na medida que tem espaço para a participação popular, mas que ao mesmo tempo continua mobilizado para defender mais alguns interesses do que outros. E quando a gente vai estudar a Teoria do Estado, a gente sabe que quando determinadas partes do Estado se tornam mais permeadas a interesses populares você tem um deslocamento de outras partes que passam a bloquear esses interesses. Então, o Poder Executivo no regime presidencialista, eleito por voto direto, apesar de todos os problemas que este regime tem, é mais frequentemente aquele mais permeável à vontade popular, porque precisa ter uma maioria de apoiadores, então tem um incentivo para fazer políticas mais amplas. Então o que acontece? Você tem frequentemente o Poder Legislativo freando estas mudanças. E outras vezes pode ser o Poder Judiciário, que, como é um poder que não responde, que é um poder mais opaco, ele frequentemente acaba sendo o freio. Às vezes a gente louva isso quando o Poder Judiciário se mostra um pouco mais progressista, no caso, por exemplo, da possibilidade do aborto no caso dos anencéfalos. Mas isso é um tiro no pé porque ao invés de a gente disputar na sociedade a construção de uma mentalidade mais progressista, nós delegamos a decisão ao Poder Judiciário. Mas chega uma hora em que o Judiciário vai em outro caminho, vai atender a outros interesses. O Poder Judiciário é um poder muito autocentrado, um poder muito cioso de seus privilégios, e está mostrando isso agora. Neste momento, a prioridade deles é negociar o próprio reajuste e vão acabar agindo de maneira a sustentar visões mais conservadoras. Acho que no Brasil está acontecendo isso.

Existe uma coalização.

Daí se faz essa coalização em que você tem por trás os grandes interesses nacionais e internacionais, mas a parte do aparelho que se organiza passa prioritariamente pelo Judiciário, o Ministério Público e a polícia. E a mídia entra como parceiro menor neste processo todo. Você tem razão, embora a gente nunca tenha tido um grande jornalismo investigativo propriamente dito, o que a gente tem mesmo é o denuncismo, a notícia chega à redação e vai para os jornais, mas em outros momentos existia um esforço de reportagem. E, agora, se fosse para fazer uma caracterização talvez pouco generosa, o que você tem são peças de ficção. A Istoé decide falar da Dilma e faz aquela capa. Reportagem jornalística aquilo não é. Outra questão é a reprodução daquilo que alguém do Ministério Público, da polícia ou do Judicário, achou que deveria ser publicizado. Porque quando a gente fala em vazamento, uma coisa é um vazamento do tipo wikileaks, quando alguém foi lá e pegou o que não devia ser exposto, como é o caso dos Panama Papers, os papéis do Pentágono, então isso é um tipo de vazamento. Outra coisa é quando a autoridade decide o que deve vir a público e passa para os jornalistas, que é um vazamento seletivo feito a serviço de um determinado interesse. Isso é o que vem acontecendo no Brasil nos últimos dois anos. Você tem razão, não tem nada além disso. A polícia entregou uma gravação, o juiz entegou uma gravação. E a mídia está cumprindo o seu papel neste esforço de deposição do governo eleito. Porque mesmo do ponto de vista da competição pelo furo, por assim dizer, a gente teve muita pouca coisa digna deste nome neste tempo todo. A entrevista do Pedro Collor, lá na época do governo Collor, claro, tocou o telefone na redação, como você falou. Aí sai em 2005 a entrevista do Roberto Jefferson para a Folha de S.Paulo . Foi algo da Folha. Agora não, um pouquinho um, um pouquinho outro. Um pra Veja, um pra Istoé. Um para o Estadão.

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Deixa eu te interromper. Me ocorreu uma coisa importante que você estava falando. O furo agora ele seria desestabilizador, porque, se você tem uma agenda para ser cumprida, se os veículos começasem a disputar furo você coloca por terra a organização do processo. É tão interessante que a gente não tem disputa por furo. Você tem uma cobertura desse nível, tão longa, tão complexa e você não teve furos dignos de dizer esse nome. É como se os jornais sequer estivessem disputando a pauta, eles estão esperando a pauta chegar.

Você tem toda razão. As pessoas às vezes pensam que parece alguma coisa consipiratória, mas eu não tenho dúvida, pela leitura do que tem acontecido no Brasil, da reeleição da Dilma para cá, que existe um script realmente montado. É claro que não é tudo calculado, às vezes tem alguma coisa que foge. Mas de Dilma para cá existe um script, passo a passo. Não tem espaço para uma informação que não seja controlada. E por que isso pode acontecer assim? E aí a gente volta para a importância desse sócio menor que é a mídia. É porque você tem que calar sistematicamente as tentativas de reação do seu adversário. Então o que é que a gente viu aí? A gente viu que quando se atingia os líderes do PSDB, esse negócio desaparecia. O caso de FHC com Míriam Dutra foi a única coisa que pareceu furar esse bloqueio. Pareceu naquele momento que quem estava contra a opsoição conseguiu colocar alguma coisa na agenda. Mas durou apenas dois ou três dias para o assunto baixar. Você tem as coisas do Aécio com Furnas. Você tem um conjunto de documentos e depoimentos muito fortes que nunca ganharam espaço. Numa perspectiva de um jornalismo minimamente decente isso teria chegado às primeiras páginas muitas vezes. Mas não. Vai sendo bloqueado. E como você não tem então a capacidade de reação, não consegue colocar na agenda, fica sempre uma coisa num site isolado, num blog, não entra no sistema da mídia como um todo, o script deles pode ser mantido, perfeitamente. Acho este seu insite perfeito. O esforço de investigação seria a introdução de uma imprevisibilidade que não viria para o bem desses interesses neste momento.

AUTOR
Foto Laércio Portela
Laércio Portela

Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República