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Militares vigiavam até os reitores da UFPE durante a ditadura

Inácio França / 21/08/2019

Foto: acervo Antônio Carlos Pavão

No início de 2012, um ano antes de morrer, a ex-vice-reitora Maria Antônia Amazonas Mac Dowell, disse em entrevista para uma publicação institucional que, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a ditadura “teve frustrados seus propósitos de doutrinação ideológica, a nenhum docente faltou o ‘atestado de ideologia’ que condicionava a liberação para fazer curso no exterior”.

Não imaginava que ela própria, mesmo com suas raízes familiares na elite açucareira e prestígio junto aos reitores, era fichada pelos órgãos de repressão e vigiada de perto por informantes.

Foi isso que o historiador e professor de Pedagogia, Evson Malaquias, descobriu nos documentos confidenciais da ditadura militar que estão sob cuidados do Arquivo Nacional e do Arquivo Público de Pernambuco. Ele coordena uma equipe de professores e alunas de graduação que, desde o final do ano passado, dedica-se a levantar, nos arquivos militares e policiais, produzidos de 1964 a 1988, os registros sobre quase 200 docentes da UFPE.

Logo no início da pesquisa, a surpresa: “Esperava encontrar prontuários de pessoas realmente ligadas a partidos de esquerda ou organizações clandestinas, mas, além desses, encontramos dossiês completos sobre professores conservadores ou que nunca tiveram qualquer envolvimento político e gestores sabidamente direitistas, indicados por políticos como Marco Maciel, Moura Cavalcanti, Nilo Coelho e Eraldo Gueiros Leite”.

O professor Evson acredita que o conteúdo do material coletado pela equipe desmistifica a ilusão que os organismos de repressão se preocupavam apenas com militantes políticos. “Ao contrário, eles monitoravam a vida de qualquer um. Se, por alguma razão, um nome chegava até eles, nunca seria retirado da lista de suspeitos a serem vigiados”.

Neta do primeiro reitor da UFPE, por parte de mãe, e de um deputado pelo Partido Conservador nos tempos do Império, por parte de pai, Maria Antônia estava acima de qualquer suspeita. Mesmo assim, foi monitorada por ter apoiado a greve dos médicos residentes em 1982, ter contratado professores de tendências esquerdistas  e por “proteger comunistas”.

As informações sobre ela estão num relatório preparado pelos informantes, no final de 1983, sobre os seis candidatos a reitor que integravam a lista sêxtupla eleita pelos integrantes do Conselho Universitário. Não há registro sobre qual autoridade leu e analisou o relatório, mas o fato é que Maria Antônia não foi escolhida para o reitorado, apesar das informações de que seria “a melhor opção devido à capacidade comprovada e o conhecimento profundo”.

O reitor nomeado foi o então pró-reitor acadêmico, George Browne Rego. Uma das anotações em sua ficha informa que, em abril de 1982, ele havia defendido o ensino pago nas universidades públicas durante uma palestra no salão nobre da reitoria.

O legado de quem foi perseguido

Se o trabalho de informantes e espiões resultou em relatórios e prontuários que atestam a intolerância, entre os vigiados pela ditadura estão nomes respeitados em várias áreas do conhecimento.

Autor de obras que se tornaram referência sobre as revoluções pernambucanas do século XIX, o historiador Amaro Quintas tornou-se o primeiro professor da UFPE a ser perseguido logo após os militares tomarem o poder em 1964. Tudo por causa de uma palestra no teatro Santa Izabel. Três semanas após o golpe, corajosamente, ele defendeu o direito “à autodeterminação do povo cubano”. Os militares não perdoaram a afronta.

Os registros incluem o depoimento “voluntário” de um estudante chamado Adilson Cardoso, morador do Cabanga, que denunciou o professor por ter “enaltecido Fidel Castro” e por elogiar o socialismo durante suas aulas. Amaro Quintas foi preso e afastado da universidade.

A antropóloga Fátima Quintas, filha do historiador, lembra os anos que se seguiram à palestra como os mais terríveis da sua vida: “Eles invadiam a porta de nossa casa no meio da madrugada, arrombavam a porta e iam direto para o meu quarto, nunca fizeram nada, mas isso era para deixar papai apavorado”.

Sem o salário de professor para sustentar a casa, a filha teve de começar a trabalhar dando aulas. A situação só melhorou depois que Gilberto Freyre, mesmo apoiando os militares, empregou Amaro como pesquisador na Fundação Joaquim Nabuco.

Silke viagem 1No início dos anos 1980, todos os passos da socióloga e pedagoga Silke Weber eram seguidos de perto pelos policiais.

Longe da militância partidária ou radical, era a carreira acadêmica de Silke que preocupava os organismos de repressão. Não bastasse sua participação no Movimento de Cultura Popular na década de 1960, seus projetos de pesquisa enfatizavam a experiência da política educacional do governo Arraes. Ela também foi uma das lideranças da greve da UFPE em 1982.

Silke sabia que era vigiada. Um episódio ocorrido no final de 1982 deixou isso claro. “Logo depois da greve, recebi uma bolsa para estudar na Alemanha. A ditadura tentou impedir minha viagem, mas Maria Antônia Mac Dowell falou com a ministra da Educação do governo Figueiredo, que era amiga dela, e conseguiu a liberação”, conta Silke, que continua ensinando e pesquisando.

Entre os documentos encontrados por Evson Malaquias, consta uma atualização da “ficha de qualificação” com um carimbo de “urgente” emitida em 10 de dezembro de 1982 pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), alertando que Silke Weber estava cogitando ausentar-se do país para fazer um curso de aperfeiçoamento na Universidade de Bremen, na Alemanha. Mais abaixo, duas frases indicam que a informação seria distribuída para impedir a viagem.

Menos de cinco anos depois do alerta dos espiões do SNI, Silke Weber assumiu a secretaria estadual de Educação no segundo governo Arraes. Em parceria com a própria UFPE, deu início à política de formação continuada para professores da rede estadual de ensino.

 O trotskista e o primo de Marco Maciel

A contratação de um professor de química, em março de 1979, atraiu a atenção do SNI para o reitor Paulo Frederico Maciel, primo do então governador de Pernambuco Marco Maciel, fiel aliado da ditadura. Paulo respeitou o resultado de uma seleção pública e autorizou o departamento de Química a contratar Antônio Carlos Pavão como professor adjunto. O problema é que Pavão era dirigente do grupo trotskista Convergência Socialista, que viria a ser o atual Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU).

A presença de Pavão era considerada “inconveniente” pelos policiais, o que reforçava a imagem de “omisso” ou “liberal demais” de Paulo, termos usados para descrevê-lo nos documentos que elaboravam sob a rubrica “confidencial”. Acompanhando os passos do reitor, os informantes ficaram perplexos quando o pedagogo Paulo Freire, recém chegado do exílio, participou de um evento público na UFPE sem que o reitorado fizesse nada para impedir.

Pouco depois, mais um fato negativo foi anotado na ficha do reitor Maciel: mesmo avisado pela Assessoria de Segurança e Informação (ASI) da universidade – seção das universidades federais que repassavam informações para o SNI e para os serviços de informação das Forças Armadas – ele contratou e, depois, renovou o contrato do professor Geraldo Gomes da Silva, que havia passado em primeiro lugar num concurso para auxiliar de ensino. O primo de Marco Maciel passara a ser visto pelos policiais como perigoso subversivo.

Hoje, o pivô dessa história, Antônio Carlos Pavão, é o diretor do Espaço Ciência, instituição que ajudou a fundar. “Eles me vigiavam, isso eu sabia, pois em duas oportunidades encontrei meu carro com os quatro pneus furados depois de participar de reuniões do comitê pela anistia. Mas não imaginava a profundidade dessa vigilância nem que tenha respingado em Paulo Frederico Maciel. Mas nunca deixei de lutar. A popularização da ciência que o Espaço Ciência promove reflete a minha visão política”, afirma Pavão.

AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.