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Motim da PM no Ceará está dividido e enfraquecido, avisa especialista

Maria Carolina Santos / 28/02/2020

Foto: Agência Brasil/Reprodução

Há quase duas semanas o Ceará está refém de um motim de policiais militares. Parte da corporação não aceitou a proposta salarial do governo estadual e decidiu fazer greve – algo proibido pela Constituição Brasileira. Outra parte, mais jovem, foi ainda mais radical: estão amotinados em quartéis, usam camisetas e máscaras para esconder os rostos, esvaziam pneus de viaturas.

A cena mais tensa foi no dia 19, quando atiraram contra o senador Cid Ferreira Gomes (PDT), que tentou entrar em um quartel em Sobral com uma retroescavadeira. Ele levou dois tiros no peito e teve alta hospitalar poucos dias depois.

Sem a polícia nas ruas, os crimes se multiplicaram. Chegou a se registrar mais de 50 homicídios em um único dia. A Força Nacional foi convocada pelo governo de Camilo Santana (PT) e deverá ficar no Ceará por, pelo menos, mais uma semana. Uma comissão com representantes de vários órgãos – entre eles o Ministério Público do Ceará e a Ordem dos Advogados do Brasil – foi formada para dialogar com os amotinados.

Sem uma liderança definida entre os amotinados, é o ex-deputado federal cabo Sabino que tem tomada a frente das negociações, do lado dos PMs. Mas a comissão decidiu não mais negociar com ele – que responde a processo administrativo na corporação. Sem representantes, a negociação segue travada.

O governo tem a proposta de elevar o salário de um soldado da PM dos atuais R$ 3.200 para R$ 4.500. Mas é na anistia aos policias presos e amotinados que há um impasse: o governo não aceita isentá-los de punição.

Em entrevista à Marco Zero Conteúdo, o sociólogo César Barreira, coordenador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (UFC), fala sobre a influência do bolsonarismo e as diferenças e semelhanças do motim de agora com o que aconteceu na virada de 2011 para 2012.

O sociólogo César Barreira. Foto: tapisrouge.com.br/Reprodução

Há alguma especificidade na Polícia Militar do Ceará que tenha levado tanto ao motim de 2011/2012 quanto a esse de agora?
É um movimento que tem rupturas e continuidades. Assim como no outro, os policias se amotinaram em batalhões. Usam também a mesma prática de envolvimento de crianças e mulheres para serem porta-vozes de suas reivindicações. Não acho que seja tão diferente do que aconteceu em outros estados do Brasil, como na Bahia.

Mas algo que temos aqui é uma mistura muito específica de polícia com política. Tem um artigo que escrevi ainda em 1999, “Lugar de policial é na política”, que já falava um pouco disso. Mas, naquela época, os policiais ainda estavam entrando na política, não divulgavam nem a patente. Hoje a patente é usada como uma credencial, como portadores que podem trazer segurança. A questão imbrincada entre polícia e política esteve forte no motim de 2011/2012, quando surgiram algumas das principais figuras da oposição ao governo do estado de hoje.

Motim é proibido pela Constituição: profissionais não podem fazer greve armados. No motim de 2011/2012, teve a ascensão forte do capitão Wagner, que logo em seguida se candidatou a vereador, e foi um dos mais votados de Fortaleza. Depois, deputado estadual e federal, ficando também entre os mais votados. Ele alavancou o cabo Sabino, que também foi deputado federal. Nas últimas eleições, houve uma cisão entre eles.

E a postura dos governos estaduais, o que mudou?
Em 2011 e 20112 o governador era Cid Ferreira Gomes e, em um primeiro momento, ele enfrentou a Polícia Militar. Depois é que abriu para o diálogo. O atual governador, Camilo Santana, do PT, é muito do diálogo e fez investimentos na segurança pública, com aumento de salários e melhores condições de trabalho. A marca dele é o diálogo. Na semana passada, houve uma reunião com representantes da segurança pública e, quando esse acordo foi levado aos amotinados, eles não aceitaram e criticaram os policiais militares que estavam na reunião, afirmando que não tinham representatividade. Há um grande impasse envolvendo políticos ligados ao capitão Wagner.

Uma das principais pautas dos amotinados agora é a anistia.
Sou contra o governo dar anistia, principalmente nesse momento quando estão usando viaturas e encapuzados. É muito delicado. São as viaturas para dar segurança à população que estão usando para outras razões. É uma situação totalmente esdrúxula. Outro dado é que 43% dos amotinados estão ainda em estágio probatório. É uma conotação muito específica: são profissionais que não têm princípios e hierarquias sedimentados. É uma questão muito delicada.

O governo Bolsonaro não chegou a apoiar o motim abertamente, mas também não o condenou. Qual a influência do bolsonarismo e o cenário nacional neste motim?
Há três aspectos que podem ser destacados. O primeiro é o discurso. O presidente da República fala muito da questão da impunidade, ou da não criminalização, das ações praticadas por policiais militares. É um governo que estimula a circulação de armas e a ideia de resolver tudo com as próprias mãos. O tiro dado para conter uma pessoa é um exemplo. Nesse caso, a pessoa é um senador. Mesmo cedendo a Guarda Nacional, Bolsonaro está pedindo para retirá-la (hoje, decidiu prorrogar por mais uma semana)

Outro ponto do bolsonarismo que se destaca é essa liderança do cabo Sabino e do capitão Wagner, que são bolsonaristas. Major Fabiana (PSL-RJ), deputada federal por São Paulo, e ligado aos Bolsonaro foi visitar os policiais presos. E Bolsonaro logo em seguida disse que que não havia nada de errado na visita.

O terceiro aspecto é um contraponto. Porque é muito estranho que esse motim aconteça logo quando temos um governador do diálogo, que investiu na PM. Mas, apesar de ele manter uma boa conversa com a presidência, ele é petista.

Você acha que esse movimento da PM do Ceará pode se espalhar para outros estados?
Tenho minhas dúvidas. Mas os movimentos sociais vão muito nessa perspectiva, de se replicar em outros lugares. Pode ser que seja replicado, mas não sei. Aqui no Ceará está tendo muita visibilidade por estarem amotinados e de ter ocorrido a questão do tiro (no senador Cid Gomes). O fato do governador ser do PT termina fazendo com que queiram tirar proveito e enfraquecer o governo.

Você acha que o motim está perto do fim?
Não tenho clareza, mas acho que sim. Está havendo muitas divisões entre eles mesmos. Há uma questão de jovens X veteranos, já que a maioria dos amotinados é de jovens, não há tanta adesão dos veteranos. Outra divisão é de soldados e cabos X oficiais. E uma terceira entre os que estão amotinados e os que não estão. Há ainda a cisão das lideranças políticas, entre o cabo Sabino e o capitão Wagner. Todas essas divisões enfraquecem muito o movimento.

Mas o capitão Wagner, publicamente, afirma que não é líder do motim.
Ele é e não é. Nisso aí, ele está sendo muito sábio. Quando tem alguma vitória, ele se coloca como líder, quando tem derrota, se esquiva. É uma posição ambígua, que ele está sabendo conduzir para seu próprio benefício.

A desmilitarização é uma questão que deveria ser posta em debate quando se fala em motim de policiais militares?
Sou a favor da desmilitarização. A polícia deveria trabalhar mais com uma questão de política pública. Mas não estamos em momentos propícios para se discutir isso. Porque termina enfraquecendo as medidas que podem ser tomadas após este motim. É uma discussão que deve ser feita nacionalmente. A frase de Bolsonaro transferindo toda a responsabilidade para o governo do estado é errada. Tem que ser discutido e realizado um pacto federativo para a segurança pública, para que haja clareza nas atribuições e responsabilidades de cada esfera do poder público.

O que está acontecendo no Ceará pode caminhar para uma situação de milícia como acontece no Rio de Janeiro?
Havia indícios que isso poderia acontecer em 2011/2012, e agora ainda mais pelas atitudes dos que estão amotinados. Eles estão andando mascarados, mandando fechar o comércio. São atitudes de milicianos, não de policiais. Há no Ceará nos últimos anos uma infiltração muito forte de milícias. Depois do motim é que vamos ter mais clareza como vai ficar a situação, se vai ter anistia ou não, para onde vão e o que vão fazer esses policiais hoje amotinados.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com