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Promessa de campanha em 2014 do agora governador Paulo Câmara, a tarifa unificada de R$ 2,15 e o bilhete único mais uma vez estarão de fora da pauta do Governo do Estado na reunião do Conselho Superior de Transporte Metropolitano que definirá nesta sexta-feira (13) o terceiro reajuste das passagens de ônibus da atual gestão do PSB de Pernambuco.
Um jogo de cartas marcadas. É assim que setores da sociedade civil veem o modelo de definição das tarifas, numa votação onde participam integrantes do Governo do Estado, da Prefeitura do Recife, do Consórcio Grande Recife, das Câmaras Municipais de Recife e de Olinda e da Assembleia Legislativa; e representantes dos donos de empresas e dos usuários. Na prática, Governo, parlamentares e empresários votam em bloco e juntos detêm 14 votos contra oito da sociedade civil e um dos rodoviários.
Ao isolamento político dos representantes dos usuários no Conselho, soma-se a falta de transparência das informações que subsidiam – ou deveriam subsidiar – os reajustes.
Na sexta-feira passada (6) os conselheiros foram impedidos de discutir e votar o aumento das tarifas por ação judicial movida pelo estudante de Direito Márcio Morais, um dos representantes dos estudantes no Conselho Metropolitano. A convocação dos conselheiros não havia atendido o prazo regimental de três dias de antecedência e os documentos com os dados das operações das empresas em 2016 sequer haviam sido enviados para a avaliação dos votantes.
Por falar em votação, você não vai ver como votaram os conselheiros. É que as reuniões do Conselho para a definição das tarifas são fechadas ao público em geral, não são transmitidas pela Internet e suas atas tampouco são divulgadas nos sites do Consórcio Grande Recife e da Prefeitura do Recife ou do Governo do Estado. Os votos também não são nominais, mas por maioria definida visualmente.
Vereador em primeiro mandato, Ivan Moraes (PSOL) teve na sua primeira semana como parlamentar a experiência de participar como ouvinte da reunião, sem direito a voz nem voto. Ele fez algumas curtas transmissões de vídeo pelo Facebook e pode observar de perto como funcionam os bastidores das decisões que afetam diretamente a vida de quase 2 milhões de usuários do transporte público na Região Metropolitana do Recife.
Cartas marcadas
“A primeira impressão que dá é a de que você está entrando num jogo de cartas marcadas. Você vê um intenso diálogo de integrantes do Governo com os representantes dos empresários a ponto de você não saber diferenciar quem é quem entre eles lá dentro”.
Na semana passada essa aliança ficou ainda mais evidente com a liminar deferida pelo juiz Heriberto Carvalho Galvão, do 4º Juizado Especial da Fazenda Pública da Capital, que impediu que o reajuste entrasse na pauta. Ela pegou de surpresa Governo e empresários.
A reunião da manhã foi adiada para a tarde enquanto a Procuradoria do Estado tentava derrubar a liminar. À tarde, conselheiros do Governo e das empresas protelavam as discussões na expectativa de que a liminar fosse derrubada e pudessem votar o reajuste. Mas isso não aconteceu. Apenas à noite o governo conseguiu o efeito suspensivo da liminar.
Chamou a atenção dos representantes dos usuários o fato de que foi o Governo – e não os empresários – que se movimentou na Justiça para derrubar a liminar. O que para eles evidencia o entrosamento e a intimidade institucional entre as partes.
É bom lembrar que a decisão judicial reforçava o fato de que não haviam sido disponibilizados aos conselheiros os documentos necessários para a análise embasada das propostas de reajuste. As informações só foram disponibilizadas no site do Consórcio Grande Recife na segunda-feira (9), quando foi encaminhada a convocação para a nova reunião.
Legislando em causa própria
Não é à toa que os representantes da Assembleia Legislativa e da Câmara Municipal do Recife no Conselho na prática representem os interesses do setor empresarial. É a este setor que eles de fato pertencem. A família do vereador Carlos Gueiros (PSB) é proprietária da empresa de ônibus Globo (Transportadora Globo LTDA), uma das permissionárias do sistema de transporte coletivo na RMR. Já o deputado Ricardo Costa (PMDB) é um dos donos da gráfica STAMPA Outdoor, empresa de mídia exterior que trabalha, entre outros itens, com anúncios publicitários para ônibus.
Alguns dos integrantes do Poder Público que compõem o Conselho também têm laços de proximidade com o setor empresarial. É o caso do atual secretário de Mobilidade e Controle Urbano do Recife, o ex-deputado João Braga. Ele foi assessor e consultor da Urbana PE, o sindicato das empresas do setor de transporte, mas, curiosamente, essa informação é omitida no perfil profissional que consta no site oficial da Prefeitura do Recife.
“Isso é uma aberração, não é? Que só demonstra que toda a estrutura do Estado está se confundindo com o setor empresarial. Com esses representantes, você trai a própria competência do Poder Legislativo, que é a de fiscalizar o Executivo. Mas isso não nos surpreende. Basta observar as discussões na Câmara e na Assembleia e você vai ver que elas nunca vão de encontro aos interesses da Prefeitura e do Governo do Estado. O que existe é um grande rolo compressor e os poderes legislativos funcionam apenas como órgãos auxiliares dos poderes executivos locais e dos interesses dos empresários” critica o advogado Pedro Josephi, coordenador da Frente de Luta pelo Transporte Público de Pernambuco.
Pressão sobre os mais pobres
A Urbana já apresentou sua proposta de reajuste das tarifas: aumento de 34%. O anel A passaria de R$ 2,80 para R$ 3,75 e o anel B de R$ 3,85 para R$ 5,15. Alega aumento de custo com pessoal, veículos e combustível, defasagem de reajustes no passado e queda prevista na demanda de passageiros da ordem de 5% para 2017.
Para o vereador Ivan Moraes, a alegação de que é preciso aumentar as passagens para minimizar a queda no número de passageiros não faz nenhum sentido. “Eles (os empresários) estão errados se acham que quem deixou de andar de ônibus comprou um carro ou uma moto para se locomover, apenas 20% da população do Recife têm carro. É porque não têm dinheiro para andar de ônibus. Aí a solução mágica para as pessoas que não têm dinheiro para andar de ônibus é aumentar a passagem? Isso não bate com o preceito mínimo da teoria econômica que eles defendem. Se o povo deixou de andar de ônibus é preciso diminuir o valor da passagem para ver se o povo volta a andar”.
Representante dos estudantes que entrou com a liminar contra a definição do reajuste na reunião da semana passada do Conselho, Márcio Morais chama a atenção para o fato de o reajuste da tarifa penalizar a população de mais baixa renda.
“Não tem cabimento você dar um aumento real na tarifa quando o salário mínimo cresceu apenas R$ 57,00. Numa situação de crescimento do desemprego, em que o usuário depende do transporte público para se locomover, não cabe um aumento real no preço da passagem. Uma reposição poderia ser até aceitável, mas aumento real jamais porque ele vai atingir justamente aqueles que têm menos condição de pagar a passagem. Ainda mais quando se vê a baixa qualidade do serviço prestado e a insegurança que se vive em todo o sistema de ônibus da Região Metropolitana”.
Salário indireto
A especialista em urbanismo e professora da USP, Erminia Maricato, tem chamado a atenção em seus estudos para o fato de que as políticas públicas urbanas, que atingem diretamente as pessoas no seu dia a dia, podem ser contabilizadas como uma espécie de salário indireto. Para ela, transporte coletivo, infraestrutura e equipamentos sociais permanecem como questões cruciais da luta social nos países periféricos.
No livro Para Entender a Crise Urbana (Expressão Popular, 2015), ela analisa o peso da tarifa de transporte público na vida do usuário. “Diferentemente da reprodução simples da força de trabalho, a reprodução ampliada não depende apenas do salário, mas também das políticas públicas, parte das quais são especificamente urbanas, como se estas constituíssem um salário indireto. Um aumento de salário pode ser absorvido pelo alto custo do transporte ou da moradia, por exemplo”.
O Consórcio Grande Recife desenhou três cenários de reajuste para serem “debatidos” na reunião do CSTM desta sexta. No primeiro cenário, no qual isenta os empresários de renovar a frota de veículos em 2017, o anel A seria reajustado para R$ 3,25. No segundo cenário, com compromisso de renovação de parte da frota, a tarifa ficaria em R$ 3,33. No último cenário, com renovação da frota e agregando os custos com as isenções, concessões, gestão e fiscalização do sistema, manutenção e operação dos terminais (ações hoje assumidas pelo Poder Público) a passagem do anel A ficaria em torno de R$ 4,00.
Jogo combinado
No entendimento de setores da sociedade civil a estratégia do Consórcio Grande Recife e do Governo do Estado é a mesma aplicada nos últimos anos. Primeiro, a Urbana lança uma proposta elevada, depois o Consórcio faz uma proposta menor que acaba aprovada pela maioria dos conselheiros (inclusive muitas vezes com o voto dos próprios empresários). Para a opinião pública (ou publicada), o Governo fica com a imagem de quem não aceitou o valor proposto pelas empresas e saiu em defesa dos usuários.
Todos os aumentos propostos pelo Consórcio Grande Recife estão bem acima da inflação de 2016, que ficou em 7,7% no Recife. Dois dos maiores custos das empresas de ônibus também tiveram aumentos menores do que o menor reajuste de tarifa proposto pelo Grande Recife, de 14%, quando a passagem do anel A passaria de R$ 2,80 para R$ 3,25. O diesel subiu 5,5% e o reajuste de salários de motoristas, cobradores e outros funcionários do sistema ficou em 9,5%.
O aumento das passagens de ônibus acima da inflação também foi aplicado em 2015 e 2016, com índices de reajuste de 13,95% e 14,42%, respectivamente.
Neste ano, parte dos representantes dos usuários no Conselho apresentou a proposta alternativa de tarifa única no valor de R$ 3,00.
Omissão sobre receitas e lucros
Para a Frente de Luta pelo Transporte Público, a falta de transparência sobre as receitas e o lucro das empresas tem sido um obstáculo intransponível para qualificar o debate sobre as tarifas de ônibus na Região Metropolitana do Recife. A Frente critica o fato de que os documentos apresentados pelas empresas só tratam dos custos sem abrir qualquer dado sobre as receitas, seja a da bilhetagem seja a da venda de espaços publicitários nos ônibus.
É o que argumenta Pedro Josephi: “Eles disponibilizam planilha de custo. Só que, para além do custo da operação, nós precisamos saber a receita para fazer um cálculo se há déficit ou se não há déficit. Mas eles não disponibilizam. A planilha de custo da empresa diz lá que tem um percentual de 17% de depreciação do pneu. Ora, como é que a sociedade civil vai saber qual foi o índice de fato de depreciação do pneu? É preciso que a gente tenha a remuneração do serviço, não pelas planilhas, mas pelo valor completo do serviço. Então de tal hora a tal hora tal empresa tem que passar seis ônibus naquele trecho, independente de quantidade de giros da catraca”.
Gratuidade onera usuário pagante
O problema, explica Josephi, está no modelo tarifário. Todas as gratuidades definidas por lei (idosos, estudantes, carteiros, policial militar, oficial de justiça…) acabam por onerar o usuário comum porque o cálculo de remuneração do setor é feito no giro da catraca. Para a Frente, essas gratuidades não devem onerar os usuários pagantes, elas devem ser bancadas por toda a sociedade por meio de um Fundo Metropolitano de Transporte.
Neste caso, parte dos recursos arrecadados com o IPVA e a Zona Azul, por exemplo, iriam compor este Fundo. Pedro defende inclusive a municipalização da CIDE Combustível, tributo arrecadado pela União. “O debate sobre a implantação do Fundo é muito importante para garantir verbas específicas para o transporte público. As empresas de ônibus, por exemplo, lucram valores exorbitantes com publicidade. Essas verbas arrecadadas com publicidade nos terminais e nos ônibus também deviam ser alocadas para este fundo. Ora, tudo isso precisa de vontade política. É com vontade política que as coisas caminham. Mas nós não vemos esta disposição no Governo do Estado”.
Outro ponto questionado pela Frente é o da bilhetagem eletrônica. “A bilhetagem eletrônica hoje está totalmente nas mãos da Urbana PE, o Estado não tem o controle algum sobre os valores que são adquiridos, arrecadados. Aquelas máquinas que estão dentro dos ônibus são da Urbana PE, o Estado licitou para comprar da Urbana PE. Se você passa mais de 180 dias sem usar os créditos do VEM, eles são confiscados. E esse valor que está no crédito do seu VEM vai para a Urbana PE. E esse valor não tem controle social algum, nem o Estado sabe quanto arrecada, nem nós sabemos. Esse valor, por exemplo, poderia ser utilizado para reduzir a tarifa”.
Para simplificar e tornar mais racional e justo o sistema de transporte coletivo na Região Metropolitana do Recife, a Frente de Luta defende a integração temporal e a tarifa única, com o fim dos preços diferenciados dos anéis, como foi defendido por Paulo Câmara na campanha eleitoral de 2014. O usuário paga uma só passagem e tem três horas para viajar no sistema, mudando de ônibus, sem ter que arcar com uma nova passagem.
Caixa preta
Relatório produzido em abril de 2016 pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), com o quadro do transporte público no Brasil, já apontava o problema da falta de transparência que afeta o setor: “A primeira dificuldade nesse debate advém do fato de qua as concessionárias de transporte urbano rodoviário são companhias de capital fechado, que não estão obrigadas pela legislação a publicar balanço financeiro. Desse modo, não há transparência em relação aos lucros do setor, nem em ralação aos subsídios concedidos ao sistema de transporte, o que é grave, pois eles significam a transferência de recursos públicos, geralmente escassos, a um setor específico, com consequências para a distribuição do orçamento como um todo”.
Na Nota Técnica de Recomposição Tarifária divulgada pelo Consórcio Grande Recife são citados os custos com os subsídios e as concessões do Estado ao sistema metropolitano de transporte, num total de R$ 221,6 milhões. O maior deles, no valor de R$ 60 milhões, é para a isenção do ICMS do óleo diesel.
Nesta mesma nota, o Consórcio informa que em 2016 não foi estabelecido nenhum plano de renovação da frota no acordo de reajuste da tarifa porque a meta de renovar 400 veículos estipulada em 2015 não havia sido cumprida pelas empresas. A meta só foi cumprida no ano passado com a renovação de 153 ônibus, somados aos 275 veículos novos colocados para rodar em 2015, totalizando 428 veículos. Ainda segundo o relatório, outros 467 ônibus estão com a vida útil acima do estabelecido pelo Conselho. Renová-los vai onerar ainda mais a passagem para os usuários. É possível, portanto, que estes ônibus com prazo de validade vencido continuem nas ruas.
Na verdade não existe falta de ônibus na Região Metropolitana do Recife. São mais de 1.800 veículos. A questão central é a concentração de linhas em determinadas áreas, como a Avenida Conde da Boa Vista, por exemplo, e a falta de linhas em outras regiões supostamente menos rentáveis.
Sem contrato
Embora a legislação determine que os contratos com as empresas de ônibus devem ser feitos mediante concessão pública, a maioria das empresas de ônibus opera na Região Metropolitana ainda como permissionária. Ao todo, são 13 empresas. Mas nos registros existentes no site do Grande Recife há empresários que são donos de mais de uma dessas empresas. É o caso da Auto Viação Cruzeiro LTDA e da Expresso Vera Cruz LTDA, que são propriedade de Francisco e Eduardo Tude de Melo. Ou da Cidade do Recife Transporte e da MobiBrasil, que estão em nome de Andréa Chaves.
“O problema é que existe contratualmente a perspectiva de aporte financeiro do Estado para essas empresas nos mesmos moldes da Arena Pernambuco. Deu prejuízo, o Estado chega com o aporte financeiro. E aí as mesmas empresas ganharam as mesmas linhas dos mesmos lotes. E desses sete lotes, apenas dois tiveram assinados os contratos administrativos. Os outros cinco lotes não foram assinados porque o Estado percebeu que se fossem assinados ele, Estado, iria cair na Lei de Responsabilidade Fiscal porque o aporte financeiro seria maior do que o limite previsto na legislação, na Lei Orçamentária. A gente tem aí ônibus operando no grande Recife sem regulação jurídica, sem assinatura dos contratos com o Estado”, denuncia Pedro Josephi.
Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República