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Rede Nacional de Proteção marca encontro das crianças de terreiro

Helena Dias / 28/05/2019

Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Os pezinhos descalços, como é de costume, tocam o chão de terra batida do Terreiro Axé Talabi, no município de Paulista, para sentir a força dos antepassados que lutaram desde sempre pelo direito à liberdade de exercer suas religiões. O lugar é reconhecido pelo IPHAN como Patrimônio Cultural dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e tem uma atmosfera de proteção, onde a intolerância religiosa e o racismo não ultrapassam os altos muros brancos que cercam o terreiro. Foi nesse clima que, no último domingo (26), a Rede Omodé Àse – Rede Nacional de Afeto e Proteção das Crianças de Axé, foi lançada por lideranças religiosas de 12 estados do Brasil.

O objetivo da articulação é garantir que as pessoas de religiões de matriz afro-indígenas tenham garantidos seus direitos básicos, assim como o direito de exercer seus costumes e tradições religiosas em paz. Significa também o posicionamento político dos terreiros frente as ondas de conservadorismo, intolerância e racismo que vêm se expressando de maneira mais forte no País e em várias partes do mundo. O Babalorixá do Terreiro Axé Talabi, Pai Júnior de Odé, afirma que o processo de construção da rede foi inspirado na forma como os ancestrais religiosos combatiam o preconceito e a violência.

Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

“Não existe outra possibilidade da rede orgânica ter outra sede que não os terreiros. A gente vai trabalhar essa rede a partir do significado da força dos nossos ancestrais. Como foi que os nossos ancestrais lutaram durante um processo que tocar candomblé e fazer culto era proibido? Apesar de termos um país laico, esbarramos em muita intolerância. Nossos ancestrais utilizavam o espaço do terreiro não só para cultos, mas também para as articulações de fortalecimento político dentro das comunidades. É isso que estamos fazendo”, explica Pai Júnior.

Os documentos de fundação da rede foram assinados durante o II Encontro Nacional de Crianças de Axé e são frutos dos trabalhos desenvolvidos desde 2009, quando os antigos líderes do Axé Talabi organizavam projetos voltados para a infância. O primeiro encontro aconteceu em 2017 e segue o mesmo princípio de unir terreiros do Distrito Federal e de diversos estados como: Acre, Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e São Paulo. Ao todo, mais de 50 crianças participaram do encontro e a expectativa é que a rede seja ampliada para outros estados, como conta a Iyalorixá do Terreiro Axé Talabi, Mãe Lu de Iemanjá.

“Nossa finalidade é ver as crianças compreendendo as suas heranças ancestrais. Observamos que as crianças que participaram do primeiro encontro e estão participando do segundo se reconhecem mais, estão mais empoderadas na hora de falar da ancestralidade. Sem medo de perseguição, sem medo de achar que a sociedade não vai respeitá-la. Precisamos acolher e desenvolver esse afeto dentro das crianças pelo nosso povo e por cada tradição. Eu acredito muito na força das crianças que estão construindo uma sociedade melhor”.

Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Como a rede Omodé Àse funciona?

A princípio, a rede será sediada pelos terreiros dos 12 estados participantes do II Encontro Nacional de Crianças de Axé. Esses espaços irão articular entre si a programação anual que irá contar com vivências mensais voltadas para as crianças de cada terreiro. Assim como no encontro, o foco é trabalhar a religiosidade e o empoderamento através de atividades lúdicas como a contação de histórias, a dança e as brincadeiras tradicionais dos terreiros. A preservação do meio ambiente é um tema sempre presente nas atividades.

Duas frentes compõem a rede. A primeira, engloba as atividades citadas anteriormente e visa o acolhimento das crianças. A segunda tem como foco a fiscalização e a denúncia de casos de intolerância religiosa sofridos na infância. Há um corpo jurídico que cuida dos procedimentos a serem feitos após uma criança sofrer alguma violência de origem na intolerância religiosa e no racismo. Na maioria das vezes, nessas situações, denúncias são feitas aos ministérios públicos de cada lugar.

Ao sofrerem com a intolerância religiosa, principalmente em alguns ambientes escolares que não acolhem a diversidade cultural do País, muitas crianças acabam por abandonar suas tradições ancestrais. Vinda de Brasília, a líder religiosa Elvira de Oxum, chama atenção para a função da rede de garantir também a continuidade das religiões. “É muito importante ter a criança como uma memória ancestral e de continuidade. O encontro é grandioso, nesse sentido de trabalho com o cuidado das crianças. Brasília sofre muito com a intolerância e o preconceito, principalmente na área da educação. Temos que enfatizar esse cuidado na educação, porque as crianças não nascem preconceituosas, racistas e intolerantes. Então, o setor educacional é onde podemos formar jovens e adultos melhores.”

É o que conta Welica Silva, de 28 anos, que levou a filha Heloísa Vitória ao encontro de crianças de Axé. Houve um dia em que Heloísa levou um saco de Cosme e Damião para compartilhar os doces com os amigos de sala de aula e uma coleguinha apontou os bombons como algo “do mal” e vindo do “demônio”. Heloísa logo respondeu a colega que a “maldade estava na sua cabeça” e que “tudo bem se você não quer comer os doces”. Essas situações são sempre conversadas em casa, de acordo com sua mãe.

“Nós que vivemos nessas religiões e criamos nossos filhos nelas temos muito receio do que eles podem encontrar na rua. Eu tenho a preocupação de preparar ela para a vida e de estar pronta para a intolerância que pode acontecer e que já aconteceu. A gente prepara ela e diz que nossos antepassados tinham que se esconder, mas que conquistamos muita coisa. Ela pode ficar magoada e se perguntar o porquê do preconceito, mas a gente trouxe ela ao encontro para ela se ver em outras crianças e entender que tem bastante gente que cultua o que cultuamos.”, diz Welica.

Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Heloísa, de seis anos, mora no Recife e conta que o ponto alto do encontro foi o teatro. “Eu gosto dos fantoches, mas aprendi várias outras coisas. Dancei capoeira pela primeira vez.”.

Quando perguntado sobre o que mais gostou de fazer no encontro, o Iaô de Oxáguian, Ayaran Carlos, de sete anos, lembrou o que aprendeu durante as atividades: “Gosto de brincar com o quebra-panela, gosto de tanta coisa. Eu aprendo a respeitar os mais velhos e a cuidar da natureza. Eu falo com meus amigos sobre isso e conto as histórias. Escuto todas as histórias, para mim são todas iguais porque são muitos orixás, mas os que eu mais admiro são Iansã, Odé e Oxalá. Esses, são os meus.”, falou Ayran.

O contato das crianças com a história dos orixás é algo essencial para que elas se sintam protegidas, segundo o Babalorixá Pai Júnior de Odé. Ele conta que durante, o segundo turno das eleições presidenciais de 2018, houve um grupo de pessoas que cercaram o terreiro Axé Talabi e disseram que a partir daquele momento o terreiro seria “fechado em nome de Jesus”. “A gente tem entendido a partir de outro lugar, a gente acha que é um processo de entendimento do que está acontecendo e de força. A gente não acha que perdeu força , mas que precisa se organizar para lutar. A gente está mais forte para lutar, a gente está tão forte que estamos preparando nossas crianças. A ameaça nunca deixou de existir e nem nunca vai deixar.”, afirma Pai Júnior.

Essa força que afirma o babalorixá do terreiro Axé Talabi esteve expressa em muitos rostos dos meninos e meninas que corriam de um lado ao outro da casa que sediou o encontro. Não havia cansaço ou desânimo, a lei era a brincadeira. Enquanto narrava a história de Iemanjá para a reportagem, Iyalodê, de cinco anos, falou que ganhou muitos amigos naquele final de semana e entendeu o quanto o encontro era “legal” e a ensinou sobre “a natureza e os orixás”.

AUTOR
Foto Helena Dias
Helena Dias

Jornalista atenta e forte. Repórter que gosta muito de gente e de ouvir histórias. Formou-se pela Unicap em 2016, estagiou nas editorias de política do jornal impresso Folha de Pernambuco e no portal Pernambuco.com do Diario. Atua como freelancer e faz parte da reportagem da Marco Zero há quase dois anos. Contato: helenadiaas@gmail.com