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Riscos que vão além da privatização: indícios da lógica de financeirização no Future-se

Marco Zero Conteúdo / 25/10/2019

Por Ana Cristina Fernandes*

Parafraseando o recém-empossado presidente da Andifes, “existem coisas novas e interessantes nesse programa; mas as coisas interessantes não são novas, e as novas, essas sim, não são interessantes”. Lembrando que o texto divulgado pelo Ministério da Educação (MEC) mais suscita perguntas do que esclarece, quero aqui chamar a atenção para uma das “coisas novas” contidas no programa Future-se, inscrita no primeiro dos três eixos que compõem o programa, relativo a “gestão, governança e empreendedorismo”, talvez o eixo que abrigue a maior concentração das “coisas não interessantes”. Em que pese todos os demais aspectos corretamente apontados nas análises já divulgadas, que fundamentam posições críticas ao programa, particularmente no tocante à autonomia universitária (ameaçada de variadas formas pelo programa), o foco da presente análise diz respeito aos indícios de transformação do patrimônio imobiliário das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) em “matéria prima” para ganhos financeiros com base na emissão e comercialização de papéis no mercado de capitais, a exemplo de títulos de securitização.

Securitização é uma prática financeira que consiste em agrupar vários tipos de ativos (especialmente títulos de crédito, a exemplo de faturas, empréstimos e impostos a receber, entre outros) em portfolios, convertendo-os em títulos padronizados, lastreáveis e revendidos no mercado de capitais, no país e no exterior. A prática de securitização proporciona conversão de uma dívida (duplicatas, cheques, notas promissórias) em título com lastro reconhecido, para ser negociável entre instituições financeiras, tais como bancos, distribuidoras de valores ou fundos de investimento, rentabilizando capitais investidos.

Como argumenta Aalbers (2008), trata-se de uma prática que transforma, portanto, bens imóveis em ativos de grande liquidez, ativos relativamente não líquidos em títulos imobiliários líquidos, transferindo os riscos a eles associados para os investidores que os compram. Desvincula-se dos imóveis a sua natureza fixa e, consequentemente, limitada para os padrões acelerados e voláteis próprios da especulação financeira, os quais passam a competir diretamente com outros investimentos financeiros. Desta forma, a securitização de bens imóveis possibilitou uma extraordinária expansão do mercado financeiro, contribuindo para elevar o influxo de dinheiro em direção a mercados de capitais e imobiliários e, consequentemente, para aprofundar a volatilidade destes últimos mercados.

Nesta lógica, ativos considerados estratégicos pelos investidores (especialmente investidores institucionais, como fundos de pensão) são títulos do Tesouro Americano e de alguns outros países, ações blue-chip e produtos de “renda imobiliária”, tais como hipotecas e bens imóveis de grandes projetos de incorporação imobiliária. Estas três categorias de investimentos, continua Aalbers (2017), são estratégicas por disporem de garantias consideradas de alta qualidade (chamadas de HQC, sigla para high-quality collateral). Segundo o autor, existem grandes e crescentes estoques de liquidez em busca de HQC1, o que torna a incorporação imobiliária, em geral, e as finanças orientadas para a provisão de habitação, em particular, uma vez liberados à securitização, elementos centrais na financeirização em curso.

Entretanto, assim como a financeirização no contexto norte-americano, onde alcançou sua escala mais radical, levou as pessoas a aceitar riscos ao adotar a securitização de suas moradias, a lógica das finanças procura atrair outros campos “não-financeiros” da sociedade contemporânea para sua dinâmica, em sua constante busca por ampliação de mercados. Entre outros campos, vislumbra-se o da educação superior, já incorporado por meio da securitização de dívidas imobiliárias das instituições privadas, bem como dos empréstimos estudantis. A redução de entraves à securitização do patrimônio imobiliário das universidades e institutos federais consubstanciada no programa Future-se representa, assim, uma expansão extraordinária desta lógica financeira no Brasil. Este programa consiste, ao meu ver, antes de mais nada, a retomada de uma estratégia desenhada nos anos 1990 com vistas à abertura de fronteiras para a “comoditização” do ensino superior federal. A semelhança do que observou Pereira (2017), no caso da provisão de habitação brasileira recente, trata-se de tentativa de penetração da lógica abstrata e de acelerada temporalidade de circuitos financeiros, crescentemente especulativos, própria da conexão entre financeirização e neoliberalismo que preside a reprodução de valor no capitalismo globalizado contemporâneo, como acima detalhado.

As primeiras tentativas de expansão do mercado de securitização no Brasil têm lugar durante o governo FHC, mas um conjunto de fatores envolvendo as elevadas taxas de juros praticadas no país tornavam o investimento neste novo mercado menos atrativo. Com o programa Minha Casa Minha Vida, e o crescimento da demanda interna, o processo de securitização avança bastante no país. Entretanto, a crise econômica vai alterar a estratégia dos agentes envolvidos: agora, são a queda das taxas de juros e a mudança de lógica da política de educação superior do atual governo, os elementos que vão propiciar a constituição de um ambiente legal satisfatório para a retomada do processo.

Pode-se supor que investidores financeiros vislumbram no Future-se a abertura de uma importante porta de acesso para a crescente expansão de tais práticas financeiras, em constante busca de oportunidades de investimento no momento em que o modelo anterior de valorização a partir de juros extraordinariamente elevados está inviabilizado (ao mesmo momentaneamente). Dessa forma, não só pretendem transformar o patrimônio imobiliário das IFES em ativos fictícios (títulos securitizados, debêntures etc.), como também promovem ambiente favorável nas universidades e institutos federais à ampliação da financeirização, provendo a indústria financeira das novas “matérias primas” lastreáveis de que necessitam para se expandir no país, contaminando assim o sistema universitário por práticas e lógicas especulativas, como aquelas observadas por Pereira (2017) e Canettieri (2017), no caso da provisão de habitação e da política urbana, respectivamente.

Sem esclarecer devidamente, o programa prevê medidas para facilitar a “cessão de uso, concessão, comodato, fundo de investimento imobiliário e parcerias público-privadas” de modo a tornar mais eficiente a gestão imobiliária de ativos pertencentes a IFES (ou à União por estas utilizadas). Ao mesmo tempo, prevê resgatar artigos vetados da Lei 13.800, de 4 de janeiro de 2019, a chamada Lei dos Fundos Patrimoniais, promulgada já no atual governo, que regula a criação de tais fundos com o objetivo de “arrecadar, gerir e destinar doações de pessoas físicas e jurídicas privadas para programas, projetos e demais finalidades de interesse público”. Fundos patrimoniais são formados por doações privadas e o montante obtido é investido no mercado financeiro, de modo a gerar uma receita contínua para aplicação em ações das instituições. No caso das IFES, como previsto no Future-se, contudo, diante da crise econômica e da inexistência de cultura de doações a ICTs por parte de empresas no Brasil (como mostra a experiência da UnB que já regulamentou procedimentos para constituição de seu fundo patrimonial), pode-se imaginar que tais fundos serão formados apenas por patrimônio público, ou terão grande dificuldade para efetivamente captar recursos e integralizar seu capital.

Neste sentido, importa alertar que a lógica, narrativas, práticas e métodos de cálculo da financeirização (PEREIRA, 2017) são elementos subliminares da proposta de transformação radical da gestão das universidades e institutos federais contidos no Future-se. Sabemos que a universidade brasileira tem muito a evoluir em termos de gestão universitária e procedimentos burocráticos, em que pese os consideráveis avanços alcançados ao longo dos últimos 10-20 anos, assim como os desafios que a digitalização da economia e mesmo da vida social estão a impor. Contudo, tais medidas me parecem mais uma ruptura com a própria noção de universidade pública, gratuita e de qualidade que almejamos. O ensino, a pesquisa e a extensão ficarão profundamente subordinados ao empresarialismo, às disputas ultraliberalizantes e, especialmente, à lógica da busca por valorização acelerada que a financeirização suscita e estimula, enquanto a agenda de pesquisa será fortemente (senão completamente) pautada por interesses do “mercado”, visto que este ditará os critérios para a aplicação dos eventuais fundos e práticas financeiras previstos no programa. Consequência óbvia é a asfixia do pensamento crítico, especialmente aquele formulado nos campos disciplinares das ciências humanas, que se não se “adequarem” ao modelo, fenecerão por falta de recursos. Temo pela sobrevivência da universidade, tal como a entendemos, já que o modelo proposto no Future-se, não apenas retira-lhe sua autonomia, como empurra docentes e gestores numa corrida por recursos que tende a deixar de lado as demais dimensões da universidade plural, democrática, comprometida com seu país e seu contexto, articulada à produção de conhecimento em escala internacional e de excelência, tal como pensada por grandes brasileiros como Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira e tantos outros.

Referências
Aalbers, M. B. The financialization of home and the mortgage market crisis. Competition & Change 12.2, 148–66, 2008.

Aalbers, M. B. The variegated financialization of housing. International Journal of Urban and Regional Research, 41 (4): 542-554, 2017.

Canettiere, T. A produção capitalista do espaço e a gestão empresarial da política urbana: o caso da PBH Ativos S/A. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, 19 (3): 513-529, 2017.

Pereira, A. L. Financialization of Housing in Brazil: New Frontiers. International Journal of Urban and Regional Research, 41 (4): 604-622, 2017.

* Ana Cristina Fernandes é professora do Programa de Pós-Graduação de Geografia da UFPE e integra o Grupo de Pesquisa em Tecnologia, Inovação e Território

AUTOR
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