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Sabrina Fernandes: “Criticar a esquerda é um processo de assumir responsabilidades”

Maria Carolina Santos / 05/07/2019

A socióloga Sabrina Fernandes (Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo)

Pelas 11 cidades por onde lançou o livro “Sintomas Mórbidos – A encruzilhada da esquerda brasileira”, a socióloga goiana Sabrina Fernandes, responsável pelo canal Tese Onze no YouTube, encontrou plateias lotadas. Recife foi a última cidade da turnê de lançamento, com uma conversa com o historiador Jones Manoel, no primeiro andar do Armazém do Campo. Novamente, encontrou um espaço cheio, com muitas pessoas que ficaram as quase duas horas do evento em pé. Outras nem conseguiram entrar. Em menos de 40 minutos, os 150 livros disponíveis, a R$ 50, foram vendidos.

O livro é resultado da tese de doutorado que defendeu na Universidade de Carleton, no Canadá, país em que também cursou a graduação e o mestrado. Em 387 páginas, Sabrina, que divide a esquerda em moderada e radical – e se posiciona como radical –, analisa o que levou aos protestos de junho de 2013 e o que se passou desde então, focando nos erros e nos desafios da esquerda no Brasil.

Na conversa com Jones Manoel, defendeu sua posição de crítica e militante. “Não temos mais o privilégio de abrir mão da crítica para todos os lados. Isto significa a gente poder lidar com as questões de todos aqueles que se consideram revolucionários. São debates difíceis, que passam pelo lugar das militâncias, passa por crenças. Você milita daquela forma há tanto tempo e agora vai militar de que forma? A crítica é desconforto. Se não gera desconforto, não é crítica. É uma afirmação”, disse.

Tese Onze e Sintomas Mórbidos

“A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer; neste interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”. É essa citação do teórico comunista Antonio Gramsci que dá nome ao livro de Sabrina Fernandes.

Já o nome do canal Tese Onze deriva das notas de Karl Marx sobre o filósofoLudwig Feuerbach. Chamadas de “teses sobre Feuerbach”, na décima primeira nota Marx afirma que “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; porém, o que importa é transformá-lo”.

Nos mais de 80 vídeos que tem no seu canal de YouTube, Sabrina aborda diversos assuntos que perpassam por temas como teoria comunista, militância, comunicação, feminismo e meio ambiente. Há vídeos em que conversa com convidados, há vídeos em que explica conceitos, de forma extremamente didática. A facilidade com que se comunica com o público, direta e claramente, agregou mais de 177 mil inscritos no YouTube, mais de 122 mil seguidores no instagram, mais de 85 mil no Twitter e 38 mil no Facebook. É atacada por bolsonaristas, direitistas e, claro, também por quem se define como de esquerda – que a acusam desde proselitismo ideológico a falta de experiência em militância.

Filiada ao PSol, Sabrina, que se define como ecossocialista, veio para o Recife também para participar do I Encontro Nacional da União de Ativismo Vegano (Enuva). Na primeira de duas participações, falou sobre como o capitalismo está usurpando o veganismo. No final da palestra, ela conversou com a Marco Zero.

Estamos em um contexto brasileiro complicado, com a extrema direita no poder. Por que, então, criticar a esquerda?

Criticar a esquerda é um processo de assumir responsabilidades. Para gente conseguir lutar, ter força e uma direção do que a gente faz com a nossa luta, a gente precisa assumir nossa responsabilidade hoje do que fazer. A pergunta do que fazer sempre vai passar por isso. E a responsabilidade do passado afeta nossa responsabilidade hoje. Onde nós erramos? O que nós fizemos que poderia ter sido diferente, para que a gente faça diferente no futuro? Então nós temos que construir as correlações de forças para poder superar o bolsonarismo, à esquerda. E fazer isso passa por entender as razões da nossa própria fragmentação, as nossa fraquezas e que tipo de síntese é necessária neste momento entre os diversos projetos políticos de esquerda.

Como você vê a figura de Lula para a esquerda brasileira hoje? Ter uma figura tão forte prejudica outros projetos de esquerda?

A figura de Lula não prejudica. Prejudica concentrar todas as nossas forças na figura do Lula. Lula representa um tipo de projeto de esquerda, um projeto de esquerda que trouxe muitos benefícios para a população. Lula é icônico no Nordeste e não é à toa: ele fez muita diferença material na vida das pessoas, não foi simplesmente simbólica, de ter um nordestino como presidente. Isso precisa ser levado em conta, mas a gente tem que pensar também como ir além, o que a gente pode ir além daquele projeto para que a gente não fique preso em um ciclo de conquistas e retrocessos, conquistas e retrocessos. Isso passa em ter que apresentar outros projetos políticos, outras figuras públicas. Figuras públicas coletivas, inclusive. Para a gente entender que mudança social não é uma questão daquela personalidade, daquela liderança que tem algo muito especial em relação a ela. Não, ela cumpre uma função. Mas nós é quem fazemos a diferença coletivamente. A lógica da figura messiânica é muito prejudicial para a própria politização. Porque supõe que você pode colocar todas as esperanças em uma figura e ela vai conseguir dar um raciocínio lógico e político aos seus desejos sociais.

Sintomas_MorbidosServiço
Sintomas mórbidos, a encruzilhada da esquerda brasileira, por Sabrina Fernandes
Editora Autonomia Literária
Valor: R$ 50, à venda no Armazém do Campo e pelo site da editora

No final da sua apresentação no lançamento do livro no Recife, você falou que um dos caminhos da esquerda é se reorganizar. Mas há uma desmobilização. A greve geral, por exemplo, não foi uma greve geral. Como a esquerda pode retomar o poder de engajar as pessoas?

Eu acredito fielmente que o processo de autocrítica é importante. Porque se as pessoas estão tendo críticas que vêm de um viés da direita? A gente tem que pegar um sentimento de frustração que está aí e politizar este sentimento de frustração através de medidas diferentes. Tem a manipulação, tem o papel da igreja, da imprensa, tem o papel de vários atores sociais que são atores que defendem um projeto antiesquerda, mas o que a gente pode fazer hoje em termos de diálogo com as pessoas que foram capturados por este discurso? A gente tem que entender que elas não foram capturadas porque elas sempre odiaram a esquerda. Isto é incorreto do ponto de vista de análise. Se a gente olhar para os dados, para o que foi a eleição do PT, o período de articulação na abertura democrática, vemos que as pessoas têm anseios de liberdade. O que a gente faz com esse anseio por liberdade tem a ver com esse processo de politização. Então a politização gera melhores mobilizações. O Brasil viveu um processo que foi de despolitização e desmobilização. Então não tem simplesmente que marcar um ato e falar “vamos para um lugar tal”. A gente tem que dar sentido, tem que dar significado para essas coisas. Isso é um trabalho de formiguinha, este é o trabalho mais difícil, mais longo, que não dá resultado imediato. Tem a ver também com a gente lidar com nossas próprias ansiedades. É uma coisa a se pensar: nossas conquistas demoram tanto para ter um impacto coletivo e é tão rápido para eles trazerem os retrocessos. E a gente passa a crer que é só fazer uma marcha que a gente vai conseguir parar isso tudo de novo. Consolidar a mudança é um processo muito difícil. Só não podemos perder a esperança no caminho. A partir do desamparo da população a gente consegue mudar as relações materiais que trazem amparo e a gente vai construir uma maioria social realmente hegemônica através disso.

Ainda falando de engajamento, a direita tem conseguido mais apoio nas redes sociais. E você conseguiu romper com isso e fazer uma voz de esquerda ser ouvida por milhares de seguidores. Como você desenvolveu sua linguagem para engajar a esquerda?

Eu percebo em muitas pessoas da esquerda – que não estão acostumadas em como funciona as redes sociais, de analisar algoritmos, discursos e tudo mais – a ideia de que “ah, seus vídeos são muitos difíceis, não vão chegar a lugar nenhum”. E o canal foi crescendo assim mesmo. Eu acho que uma das coisas do meu trabalho específico é que eu olhei para o que eu poderia acrescentar a diferentes debates. Não é a questão de replicar uma lógica, replicar um modelo específico. Cada pessoa de esquerda que está ali nas redes sociais precisa fazer essa disputa de forma autêntica. A gente não pode simplesmente ser garota propaganda, no sentido de uma forma de marketing. Nós não podemos nos tornar produtos. A gente precisa fazer política com afeto, com sinceridade, ficar próximo das pessoas. E no meu caso, que sou professora, que sou pesquisadora, fazer comunicação política passa por apresentar pesquisa, passa por apresentar conceitos e tornar as coisas mais fáceis com o tempo. As pessoas precisam de autonomia. E a gente precisa lembrar as pessoas que elas têm autonomia para buscar conhecimento. As nossas respostas para os problemas sociais, as respostas à esquerda, politizadas, nunca serão respostas fáceis, porque os problemas são muito difíceis. Não adianta simplesmente jogar um minuto de um videozinho como a direita faz, porque a direita vai ao encontro das falácias. A gente não pode contar falácias. É um desafio múltiplo. Vários tipos de comunicação diferentes, várias pessoas diferentes têm que se engajar. Da mesma forma que uma liderança política como candidato que vai resolver as coisas, não vai ser um único tipo de comunicação que vai realmente reabrir o campo de diálogo. A gente tem que estar presente também no dia a dia das pessoas, para além desses meios de comunicação. Temos que estar do lado, mostrando solidariedade.

Falar de assuntos pessoais também ajuda a dar essa proximidade?

Falar um pouquinho da gente é importante para as pessoas. Eu evito algumas coisas. Eu não falo da minha família, tem temas que eu não entro, por uma questão de segurança. Mas no meu caso, eu acredito que na esquerda quando a gente se apresenta, a gente tem que se apresentar sempre no patamar de humanização. Eu não sou aquela pessoa que você tem que acreditar em mim 100% do tempo, que você tem que concordar com tudo o que eu falo. Você pode debater, mas você tem que debater dentro do rigor do debate, com análise. Porque a gente precisa colocar as pessoas neste patamar, mostrar que o debate acadêmico não deve ficar só na academia, que o debate intelectual pertence a todos. E a gente vai se humanizando. Eu gosto inclusive neste processo de contar algumas coisas que me “rehumanizam”, isso é muito importante para mim, para eu sobreviver às redes. Então meu histórico de bulimia, de depressão, das dificuldades dos empregos que eu já tive, dos meus próprios conflitos com o meio acadêmico, para mim isso é importante, porque sei que tem tantas outras pessoas passando por isso. Então é justamente humanizar para não personificar. A humanização coloca todo mundo no mesmo patamar.

Os protestos de junho de 2013 são o ponto de partida de Sintomas mórbidos. Quais os pontos daquela onda de protestos que ainda precisam ser mais compreendidos pela esquerda?

A gente precisa compreender que quando as pessoas vão para a rua de forma espontânea e elas ecoam várias coisas quesurgem de suas frustrações. Elas estão na verdade abrindo uma ruptura de várias coisas que estavam congeladas na sociedade. De várias sensações que já estavam ali, várias percepções, e de repente sai tudo de uma vez. Quando sai tudo de uma vez, a gente precisa dar sentido para isso. A gente precisa compreender de onde está vindo aquilo ali e não tomar cada palavra como absolutamente literal. Porque isso que gera rejeição depois. Então eu acredito que para olhar para junho a gente não pode ter um pensamento maniqueísta de ‘vamos rejeitar tudo’ ou ‘vamos abraçar tudo’. A gente tem que entender que ali é um espaço de contradição. Tudo que é espontâneo é contraditório, tem a ver com reação, algo que não foi tão bem pensado. Não era um movimento organizado. Não adianta uma esquerda querer olhar pra aquilo ali e falar ‘ah, tá vendo? Era todo mundo reacionário porque não estavam seguindo a gente desde o princípio’. Certo, mas onde nós estávamos para que eles pudessem nos seguir? Que significado a gente deu para que eles não simplesmente seguissem, mas para que eles estivessem junto? São coisas muito diferentes: uma representação meramente liberal, que tem uma simbologia forte, mas em termos de conteúdo nem tanto, e uma representação que tem a ver com organização social. A base brasileira não está organizada até hoje, há muito tempo não está organizada massivamente. E cabe a nós entender como a gente pode fazer isso. Onde a gente errou, onde a gente pode aprender com o passado. E as coisas que deram certo e que a gente pode implementar novamente.

Você vislumbra alguma resolução para a polarização política que o Brasil está vivendo?

Na verdade eu gostaria de ver mais polarização. Mas polarização baseada na nossa realidade material. Um antagonismo de verdade. Que é a polarização politizada, que tem a ver com o fato que nós estamos em uma crise econômica com mais de 13 milhões de desempregados, e esse pessoal tem a cara de pau de falar da reforma da previdência e falar que a ‘não, a reforma trabalhista meio que funcionou sim, olhe todos os empregos autônomos que surgiram’. Então a polarização que a gente precisa ver é uma polarização de mobilização social, que vai apontar que a gente não vai mais aceitar esse discurso de sempre, que nós não temos que estar em um projeto econômico desenvolvimentista, para um Brasil que precisa crescer alinhado com os interesses dos Estados Unidos. É este tipo de polarização que eu quero ver, não este tipo que temos hoje. É necessário mobilizar as pessoas que estão desamparadas neste caminho.

Tem uma frase sua que diz que “é mais difícil falar sobre veganismo com marxistas do que sobre marxismo com veganos”. Por que isso acontece?

A esquerda se encontra em um momento muito crucial de ter que lidar com problemas da sociedade que por muito tempo não precisou lidar. Com o processo de debate intelectual, e movimentos se engajando – os movimentos das mulheres, dos negros, LGBTI, da emancipação animal – tem muito de novo, que a esquerda às vezes não quer lidar e tem muita rejeição. Eu acho impressionante, porque eu costumo falar que tem pessoas na esquerda que conseguem imaginar o fim do capitalismo, o socialismo implantado no mundo inteiro, mas não consegue imaginar ela, sozinha, parar de comer carne. Então é um problema de imaginação que existe na esquerda. Mas tenho notado que tem uma abertura surgindo – essa frase já tem dois anos. Com o veganismo politizado ganhando espaço, apontando críticas no veganismo de mercado, há uma abertura, e a gente está mostrando que ‘olha se você quer engajar com a emancipação animal, tem um lugar para você na esquerda’. E as pessoas da esquerda que não queriam engajar, agora estão conhecendo mais gente engajada na emancipação animal. Ou seja, tem um diálogo brotando, e isso abre muito espaço. Dei recentemente um curso de ecossocialismo e vi gente dizendo “vim pelo eco e fiquei pelo socialismo” e “vim pelo socialismo e fiquei pelo eco”. E é justamente este tipo de síntese que a gente tem que promover.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com