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A nossa revolta com o racismo — e dor — não é espetáculo jornalístico

Débora Britto / 31/05/2020

Minneapolis está queimando.

George Floyd, um homem negro americano, foi asfixiado até a morte por um policial branco.

Omar Jimenez, um jornalista negro da CNN, foi detido enquanto cobria ao vivo as manifestações na cidade.

A duas quadras de onde ele estava, outra equipe da emissora de televisão, com um repórter branco, teve um tratamento absolutamente diferente. Dentre todas as coisas que podem e precisam ser ditas, eu quero me deter a uma imagem: após ser detido, Omar Jimenez foi liberado e voltou ao vivo na CNN para contar o que aconteceu. Esse vídeo circulou menos do que o em que ele é algemado e preso ao vivo mas, para mim, chegou a ser mais perturbador — e é sobre isso que eu quero falar.

Por que? É preciso dizer que não é meu desejo naturalizar as violências que são praticadas contra nós, pessoas negras, mas como jornalista eu preciso destacar a percepção da espetacularização do nosso sofrimento. Se o racismo que sofremos não motivar a revolta para uma desconstrução diária do que o sustenta — aqui estão incluídas todas as “pequenas situações” racistas ignoradas cotidianamente por jornalistas e redações — ele não deve ser usado para ilustrar um argumento. Isso serve para os EUA e também para o Brasil.

A revolta que explodiu tem provocado debates também sobre o papel de pessoas brancas na luta antirracista: estejam na linha de frente, coloquem seu privilégio e a seus corpos para proteger negras e negros. É um começo. Mas isso precisa ser um comprometimento diário, em todos os campos.

Jornalistas negras e negros, como eu, sabemos exatamente a sensação de estar trabalhando e, ao mesmo tempo, estar alerta para se identificar devidamente. Aprendemos a lidar com curiosas e “genuínas” confusões de interlocutores que julgam que não estamos ali trabalhando como repórteres. Sabemos da tensão de estar cobrindo na rua qualquer evento que envolva a polícia. Ela está sempre ali. Pode não acontecer nada, mas não podemos contar com a certeza da passagem livre.

Certa vez, na cobertura de um evento com o presidente Bolsonaro, da rua, eu ouvi de uma policial nervosa que meu lugar era do outro lado, apontando para o lado da barreira em que estavam manifestantes contrários ao presidente. Apesar do crachá pendurado no pescoço, apesar do telefone, bloco de notas e caneta nas mãos.

Que imagem do jornalista negro interessa à imprensa?

No jornalismo, especificamente, é preciso fazer mais do que transmitir e se solidarizar com um repórter violentado pelo racismo. Quantos veículos de comunicação instituem como política a repreensão de atos racistas? Quantos editores e chefes de redação discutem abertamente protocolos de segurança para lidar com possíveis atos racistas contra jornalistas negros? Como as pessoas brancas de uma equipe podem agir em situações assim? Quantos se posicionam quando um jornalista sofre um ataque racista? Não apenas quando a violência é filmada, mas em todos os outros dias?

Infelizmente, a exposição do racismo sofrido por um repórter por si só não muda em nada a negligência de grupos de comunicação que escolhem não enfrentar o racismo. Ao contrário, a nossa dor vira elemento de mais um espetáculo transmitido ao vivo. Dessa vez não com o objetivo de acabar com o racismo, mas para aliviar consciências brancas.

Primeiro a detenção, depois a exposição. Que imagem de Omar Jimenez instiga sua revolta e que imagem tranquiliza seu espírito? A mim, nenhuma diminui a angústia de ser negra, jornalista e assistir às duas cenas.

 

Quando a âncora da CNN afirma que Omar “não poderia ter feito seu trabalho de maneira mais profissional”, o que parece estar implícito ali é uma parabenização por não reagir. Alguém pode imaginar o que aconteceria se ele aumentasse o tom de voz em algum momento? (Quantos vídeos de repórteres brancos sendo detidos e reagindo energicamente contra a polícia você consegue lembrar? Me veem à memória vários, instantaneamente).

Em seguida, a âncora conta que o repórter branco da CNN não foi detido, e pergunta a Omar porque ele acha que isso aconteceu.

“Você tem alguma ideia de por que você foi preso e Josh Campell não?” (livre tradução, por mim) ela pergunta. Atenção aqui. O que ela quer perguntar, sem dizer as palavras, porque estão ali implícitas, é: por que você acha que sofreu racismo?

Eu vou adiantar: Omar não responde a questão diretamente. Ele fala sobre como estava executando seu trabalho e os desafios de estar ao vivo. Eu não tenho como checar com ele, mas o desconforto em mim pode ser o que explica a posição dele, absolutamente compreensível, de focar em reafirmar que estava fazendo o seu trabalho. Quantos de nós temos que afirmar diariamente que somos profissionais o suficiente para dar conta de uma pauta? É curioso como ora jornais nos empregam para reforçar que não são racistas e, ao mesmo tempo, questionam nossa competência ao realizá-lo.

Eu entendo a fuga à pergunta, Omar.

Dói. E o nó que fica na garganta às vezes faz ser tão difícil falar “foi o racismo”.

Às vezes, eu também não consigo respirar. Eu imagino que você entenda.

Eu não espero, no entanto, que uma pessoa branca entenda o que é passar por uma agressão racista. Mesmo nós, negras e negros, não sabemos como reagir. Eu não saberia com certeza como reagir. Mas eu sei, por experiência, que depois que passar por isso eu nem sempre quero dividir a minha dor com quem não está comprometido a pôr um fim nela.

Induzir um repórter que acabou de ser detido porque é negro a dizer que sofreu racismo, ao vivo, é, para dizer o mínimo, perverso. Mas isso, infelizmente, é a ponta de uma estrutura de silenciamento e violências que passa despercebido para muitos. Há muito a ser feito ainda.

Qual é o momento de tacar fogo no racismo diário das nossas redações?

— Este texto é um convite ao diálogo e reflexões com jornalistas negras e negros, mas também a brancos que se disponham a mudar estruturas.

AUTOR
Foto Débora Britto
Débora Britto

Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.