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Canavieiros entram em greve contra corte de adicional previsto pela reforma trabalhista

Raíssa Ebrahim / 03/12/2018

Canavieiros de Pernambuco deflagram paralisação. Última greve da categoria foi em 2005 (Foto: Fetaepe)

Após dois meses e 13 rodadas de negociações, os cerca de 80 mil trabalhadores da cana-de-açúcar em Pernambuco entraram em greve na manhã desta segunda-feira (3). Houve protestos com fechamento da BR 101 na altura dos municípios de Ribeirão e Amaraji, na Mata Sul do estado. Questões como aumento de salário, cesta básica e piso de garantia estavam em negociações avançadas, mas dois pontos travaram a mesa de diálogo entre patrões e empregados: a retirada do adicional por tempo gasto no transporte de ida e volta ao trabalho (as chamadas horas in intineres) – uma mudança trazida pela Reforma Trabalhista (entenda abaixo) – e a obrigatoriedade de contratação de jovens aprendizes. A paralisação acontece no meio da safra 2018/2019 que vai até março.

Segundo a Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras Assalariados Rurais de Pernambuco (Fetaepe), o setor patronal só aceita avançar na pauta da 39ª campanha salarial da categoria se os canavieiros abrirem mão das horas in intineres, que agora não são mais obrigatórias, mas são uma conquista histórica acordada em convenção. Esse adicional, limitado a até 2h por dia, equivale a 20% do salário pelo tempo que o funcionário leva se deslocando de sua cidade de origem até o serviço, em ônibus fretado pelo patrão já que não há linhas de transporte público.

O que diz a Reforma Trabalhista:

“Art. 58. ……………………………………………………….

…………………………………………………………………………..

§ 2º O tempo despendido pelo empregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido pelo empregador, não será computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à disposição do empregador.

O presidente da Fetaepe, Gilvan José Antunis, denuncia que esse valor só é pago quando a questão é judicializada – “Aí o trabalhador não recebe menos de R$ 1 mil, porque tem 13º, férias, hora extra… Mas tem que ir para a Justiça”. A perda do direito pode, portanto, prejudicar também ações que tramitam na Justiça do Trabalho.

Protestos dos canavieiros parou a BR 101 na Mata Sul nesta segunda (3) de manhã (foto: Facebook/Fetape)

Protestos dos canavieiros parou a BR 101 na Mata Sul nesta segunda (3) de manhã (foto: Facebook/Fetape)

O salário-base da categoria é de R$ 960. O pedido dos canavieiros, durante a campanha, era que esse valor chegasse a pelo menos R$ 1.150. Os patrões ofereceram R$ 1.010, e os canavieiros estão agora brigando por R$ 1.035. Esses trabalhadores, que em sua maioria têm entre 18 e 40 anos, migraram de volta para o setor canavieiro após a crise econômica que atingiu o Complexo de Suape, para onde muitos haviam migrado com melhores condições de trabalho e remuneração.

Na cana, eles atuam em regime de produtividade, com uma jornada que costuma começar às 5h e ir até as 12h, 13h. “Mas muita gente sai às 3h, 4h da manhã e só volta às 17h, 18h, pois terminam a jornada e ainda ficam submetidos ao transporte do patrão”, detalha Gilvan. Ele calcula que as horas in intineres atingem cerca de 20% da categoria; os outros 80% moram no engenho em que trabalham.

“Em 2017, nós negociamos essas horas (antes da reforma). Mas toda essa repercussão hoje vem de uma maldita Reforma Trabalhista, inclusive aprovada com a maioria parlamentar da bancada de Pernambuco. Mas o patrão esqueceu que o que prevalece hoje é o negociado sobre o legislado, e há uma convenção coletiva”, sentencia o presidente da Fetaepe.

Sobre a já esperada precarização trabalhista no meio rural, Gilvan mostra preocupação também com a Reforma da Previdência no governo do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) – “É tirar do pequeno para dar ao grande”. A última greve do setor aconteceu em 2005, com oito dias de paralisação.

JOVEM APRENDIZ

O outro ponto que travou a mesa de negociações entre canavieiros e empregados é a questão do jovem aprendiz. Por lei, há uma obrigatoriedade de contratação de 5%. Mas, diz a Fetaepe, os patrões agora querem acordar a não obrigatoriedade em convenção, uma vez que a Reforma Trabalhista diz que o acordado vale sobre o legislado. “O que é bom para o trabalhador eu quero tirar; e o que é bom para o patrão eu quero acordar em convenção”, ironiza Gilvan.

INDÚSTRIA VAI AO TRIBUNAL

Renato Cunha, presidente do Sindaçúcar, diz que questão será julgada no tribunal (foto: Sindaçúcar)

Renato Cunha, presidente do Sindaçúcar, diz que questão será julgada no tribunal (foto: Sindaçúcar)

Por nota, o Sindicato da Indústria do Açúcar no estado de Pernambuco (Sindaçúcar) alega que só foi informado da paralisação hoje (3) pela manhã quando a Fetaepe protocolou a notificação, o que configuraria abusividade. Além disso, diz estranhar que, nas 13 rodadas de negociações, houve pré-conciliação de salário, piso de garantia, cesta básica, entre outros itens, e que agora não podem mais ser homologados em função de os trabalhadores terem deflagrado a greve.

Por telefone, o presidente do Sindaçúcar, Renato Cunha, não quis entrar em detalhes sobre os pontos que travam a pauta de negociação e reforçou que “o jurídico entende que a greve é abusiva e deve ir para o tribunal”.

Confira a nota do Sindaçúcar na íntegra:

Em reunião conjunta nesta segunda 03/12 – entre fornecedores de cana e usinas, o Sindaçúcar-PE – por meio de seus associados e o jurídico, constatou a abusividade da greve e estranhou a existência da citada paralisação e reforça: apenas hoje de manhã – um pouco antes da reunião, foi que a FETAEPE protocolou notificação do movimento. Portanto, já teria sido iniciada antes mesmo do comunicado oficial. O Sindaçúcar estranha também que nas 13 rodadas de negociação já ocorridas, o sindicato pré-conciliou com a FETAEPE: salário, piso de garantia, cesta básica entre outros itens e que a essa altura, não ficam homologados em função dos trabalhadores terem deflagrado a greve, após essas danosas interrupções, como já notificados na mídia.

“É UM ABSURDO”

O presidente do Sindicato dos Cultivadores de Cana-de-açúcar no estado de Pernambuco (Sindicape), Gerson Carneiro Leão, garante que os pontos já decididos em negociação serão cumpridos, mas vê como “um absurdo” a reivindicação dos canavieiros. “Isso é um absurdo, dar o ônibus e ainda pagar para o trabalhador ir e voltar, isso não existe. Nos países socialistas, Cuba, Venezuela, Rússia, não tem nada disso, é cacete. Não tem nem 13º nem férias. E aqui a gente dá tudo e o cara ainda quer as horas que ele anda no ônibus”, afirmou à Marco Zero por telefone. “Então eles vão ficar de greve o resto da vida, porque eu não abro.”

Gerson disse não saber ao certo o quanto o adicional por tempo de transporte pesa na conta dos patrões. “Quem entrava com isso eram esses advogados de porta de cadeia, que vivem morrendo de fome, catando confusão para ganhar dinheiro. Teve usina aí que pagou R$ 4,5 milhões ano com esse negócio que é proibido por lei.”

O presidente esclarece que a questão afeta menos os fornecedores e mais as usinas, mas que os dois lados estão juntos na convenção, então andarão juntos. Segundo os cálculos dele, diferentemente do que foi colocado pela Fetaepe, poucos fornecedores transportam o trabalhador, pois em torno de 96% dos negócios são de pequeno porte, com trabalho em regime de economia familiar.

O QUE DIZ O MPT

Em entrevista à Marco Zero, o procurador do Trabalho, vice-coordenador da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete) do Ministério Público do Trabalho (MPT), Ulisses Carvalho, reforça que, em tese, a reforma trabalhista acabou por restringir bastante o direito às horas in itinere. Ele ressalta que a questão dos canavieiros pernambucanos ainda não chegou ao conhecimento formal do MPT.

A respeito da precarização do meio rural, o procurador argumenta ser “óbvio que há perdas para os trabalhadores. Uma conquista histórica de natureza salarial, no caso o adicional pelas horas in itinere, simplesmente deixa de ser paga a essas pessoas sem nenhum tipo de compensação. Eles permanecem na mesma relação de emprego e agora passam a ganhar menos pelo mesmo serviço. Isso demonstra que o discurso de que a reforma trabalhista não acarretaria redução de direitos não passou de uma justificativa falsa para a sua aprovação”.

Ulisses explica ainda que, se já existir esse direito das horas in intineres em acordos ou convenções coletivas anteriores, as alterações efetivadas pela reforma vedaram a chamada ultratividade dos efeitos, de forma que não é mais permitida a estipulação de duração de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho por prazo superior a dois anos. Terminado o período de vigência, o acordo ou convenção não produzem mais efeitos.

Esse entendimento, consolidado na reforma trabalhista, já havia sido adotado pelo STF na decisão liminar na ADPF 323, que suspendeu os efeitos da Súmula 277, do TST, que previa que “as cláusulas normativas dos acordos coletivos ou convenções coletivas integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser modificadas ou suprimidas mediante negociação coletiva de trabalho”.

Sobre a questão da aprendizagem, Ulisses explica que o que vem acontecendo é que os sindicatos, com base na regra da prevalência do negociado sobre o legislado, previsto no artigo 611-A, vêm excluindo, indevidamente, funções da base de cálculo da cota de aprendizagem.

Assim, por exemplo, determinadas funções, que deveriam ser levadas em consideração para o cálculo do número de aprendizes que deveriam ser contratados pelas empresas, simplesmente são desconsideradas com base em acordo ou convenção coletiva de trabalho, o que acarreta a redução do número de vagas de aprendizagem. Essa conduta viola direitos fundamentais dos adolescentes e das pessoas com deficiência, que veem as possibilidades de contratação diminuídas.

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com