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Fila de desempregados entra no jogo de disputa pelo Cais José Estelita

Maria Carolina Santos / 27/03/2019

Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

O desemprego agora também ocupa o Cais José Estelita. Uma fila quilométrica de homens e mulheres com envelopes nas mãos se estende da porta de entrada da terra arrasada pela Moura Dubeux, dobra a avenida e se prolonga pela outra rua. Em apenas uma manhã, quase 500 pessoas deixaram seus dados e currículos na esperança de uma vaga que, no momento, é apenas uma ilusão. Se antes a disputa pelo espaço tinha protagonistas com interesses definidos – poder público, Ocupe Estelita, construtoras -, a fila de desempregados se mostra um personagem complexo e contraditório.

Em um país com 12,7 milhões de desempregados, muitos em vulnerabilidade social, poucas coisas geram mais empatia do que uma mãe ou um pai sem conseguir sustentar seus filhos. Quem pode ser contra ofertas de emprego? O Ocupe Estelita considera que a fila que está na porta da ocupação tem a função clara de comover a opinião pública e causar tensão entre ocupantes e desempregados.

É normal que em obras de construção apareçam pessoas procurando emprego. Não há nada de novo nisso. O que espanta no Cais José Estelita é a dimensão e a propaganda. A Moura Dubeux colocou o gerente de Recursos Humanos da empresa, Josué Rodrigues, de plantão na obra nesta quarta-feira (27). Ontem, algumas pessoas também se dirigiram ao local em busca de emprego – e também ansiosas para dar entrevistas contra a ocupação. De manhã cedo, o diretor da Moura Dubeux, o engenheiro Eduardo Moura, afirmou na televisão que a empresa faria o cadastro para 500 futuras vagas no canteiro de obras – que, até a publicação desta reportagem, se encontrava interditado por liminar judicial.

Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Muita gente correu para o Cais por conta desse “anúncio”. Desempregado há sete meses, Edvaldo de França trabalhou nos últimos shoppings construídos na Grande Recife. “Muitas vezes o que a gente constrói a gente não usufrui. Eu vou ter condições de morar aqui? Não, só se eu ganhar na megasena. Pelo projeto que eu vi, tem biblioteca, praças, isso e aquilo. Se eu vou ter acesso aqui a alguma coisa, ou se meus filhos vão ter acesso, eu não sei. Mas eu tenho que trabalhar”, diz.

Para Edvaldo, a entrada dos desempregados muda o jogo de disputa pelo Cais. “Os caras que estão brigando para que essa obra não aconteça não contavam com essa situação. Essa briga só era entre eles e eles. Agora é uma briga entre eles, eles e nós”.

Do lado de Edvaldo na fila, um debate foi formado. Quase todos concordavam que o projeto que está sendo gestado para o cais é excludente – e ninguém ali vai fazer parte dele. “Aqui do lado tem uma favela, o povo mora dentro da maré. Tudo cheio de rato. A turma de lá também quer casa para poder viver”, dizia José Paes da Silva, na fila com o currículo na mão.

“Vai ter casa aqui, casas populares”, retrucava Gustavo Luiz Suzart, 35 anos, morador de São Lourenço da Mata. “É só para os ricos”, respondiam vários.

Sem trabalho há dois anos, José Paes da Silva mora com a mulher e o filho na beira da maré, perto do Shopping Riomar. “O que tem aqui é a questão se vai ser para o povo ou para os ricos. Os ricos têm vantagens, o pobre se lasca. Esse terreno deveria ser para habitação do povo, creche, escola, praça, era para ter tudo isso aí. Só que a gente não conta em nada. São só os ricos que contam. A gente tenta lutar, mas quem ganha são eles. Queria construir para poder morar com minha família aqui”, sonha José.

Gustavo Luiz entra na conversa indo direto ao ponto. “Mas me diga que político quer investir nisso?”. “Nenhum”, reconhece José. “Quem banca as construções são os empresários e eles querem ganhar dinheiro. Aqui o governo não pensa na gente. Se eles investissem era bom, mas esse sonho de a gente construir a moradia da gente está longe demais. Nunca vai chegar à realidade”, lamentou Gustavo, desempregado há um ano, demitido de uma oficina sem receber as indenizações trabalhistas.

Até chegar naquela fila na tarde de hoje, Gustavo Luiz carregava um acúmulo de frustrações com instituições que não funcionam. “Minha audiência na Justiça é só em março de 2020. Se a gente ficar dependendo do governo, morre. E os empresários pintam e bordam com a gente. Vamos para a Justiça e, infelizmente, não ajuda nada”, desabafou.

A disputa narrativa pelos desempregados

O que une os integrantes do Ocupe Estelita e os desempregados é que o poder público falhou com os dois lados. De um, por entregar sem cerimônias uma área-chave da cidade aos interesses privados. Do outro lado, cotidianamente.

Na fila, alguns integrantes do Ocupe Estelita tentavam desconstruir o discurso de “Novo Recife ou nada”, tão cristalizado na narrativa oficial. “Não é nada disso. A gente quer justamente abrir a possibilidade para um outro cais, um cais que possa ser pensado de forma democrática, levando em conta o espaço público para todos e não um condomínio de luxo que vai favorecer poucos e vai impactar negativamente em uma cidade que já está estrangulada. Não queremos que fique vazio ou parado, ao contrário. Queremos que de fato haja transformação. O Novo Recife só replica tudo o que está dando errado”, afirma o integrante do Movimento Ocupe Estelita Pedro Severien, afirmando que a convocatória de cadastro para emprego da MD “é um jogo de cena sujo, injusto e irresponsável de oferecer supostos empregos em um momento de precarização da vida’.

Integrantes de outras entidades também fizeram questão de conversar com as pessoas na fila. “Tem que ser denunciada a ilegalidade do leilão, tem que denunciar este tipo de desenvolvimento. A construtora pode até fazer esse condomínio, mas o próximo não vai fazer, porque estamos atentos. A luta não é contra o trabalho. É pela construção de uma cidade que caiba a nós também”, falou o diretor do Sintraci, o sindicato dos ambulantes do Recife, Cristiano Silva, a homens que estavam na fila.

O que une os desempregados à Moura Dubeux é o desejo de que obras comecem e que novos funcionários sejam contratados. Em 2014, quando o Novo Recife iniciou a primeira demolição da área, a Moura Dubeux contava com 6,5 mil funcionários. Hoje, segundo o gerente de RH da empresa, Josué Rodrigues, possui 2,5 mil em todo o Nordeste, sendo cerca de 1,2 mil em Pernambuco.

Desde segunda-feira que o diretor Eduardo Moura não deixa o canteiro de obras. Ele se diz, inclusive, ameaçado pelos ocupantes. “A gente é quem está sendo coagido. Estou no meu escritório, no meu campo de trabalho, no meu emprego. Estou trabalhando e estão perturbando a paz da gente. Estão inventando um monte de coisas”, diz, sobre a denúncia do Ocupe Estelita de que a MD criou a estratégia da fila para jogar os desempregados contra os ativistas.

Principal responsável por este jogo, o poder público joga do lado das construtoras. Nesta terça-feira, a Prefeitura do Recife informou à Moura Dubeux que já está recorrendo da liminar, concedida ontem, que interditou a demolição total dos armazéns. A decisão da Justiça foi para preservar o Cais José Estelita, enquanto não se julga se é procedente ou não o pedido do Ministério Público de Pernambuco de que o plano urbanístico de 2015 seja anulado. Contrariando o plano diretor de 2008, o plano urbanístico deu base legal para o Novo Recife. Por enquanto, o lado mais fraco ainda segura o cais.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org