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“PL da grilagem” pode ampliar conflitos e mudanças climáticas no Nordeste

Débora Britto / 01/06/2020

Se em 2019 a Amazônia queimou sem que o Governo Federal agisse para conter o desastre ambiental, em 2020 a gestão de Bolsonaro vai além. A mais nova investida para legalizar o desmatamento e favorecer grileiros no Brasil, a antiga MP 910/2019, expirou no dia 19 de maio, mas já voltou ao Congresso Nacional, dessa vez como Projeto de Lei 2633/2020, de autoria do deputado federal Zé Silva (SD-MG).

A princípio, quando ainda era MP, previa alterações apenas para regularização fundiária de terras públicas na Amazônia Legal, mas agora o escopo aumentou, abrindo possibilidade de afetar todo o território nacional. O PL prevê a regularização de ocupações em terras da União ou do Incra, por meio da alienação ou concessão de direito de uso.

Sem mudanças substanciais no conteúdo da MP 910 para o PL2633, os principais problemas apontados pela sociedade civil organizada e pesquisadores permanecem: o PL favorece grileiros e grandes proprietários de terra, além de incentivar o desmatamento. O PL reduziu de 15 para 6 módulos fiscais (unidade fixada para cada município pelo Incra, variando de cinco a 110 hectares) o tamanho de imóveis que não precisariam de vistoria prévia, sendo necessária apenas declaração do próprio ocupante. O projeto de lei beneficia aqueles que ocupavam a terra até 2008, enquanto na MP o período ia até 2014.

De acordo com nota técnica do Ministério Público Federal, “apesar de ter havido alterações no texto quanto à manutenção do marco temporal para constatação de ocupações e a ao tamanho das áreas a serem regularizadas por autodeclaração, o cerne do projeto possui os mesmos vícios anteriormente constatados”.

No Nordeste, é especialmente preocupante a vulnerabilidade de territórios quilombolas e indígenas. Além disso, há o impacto ambiental que as queimadas e os desmatamentos provocam. 

Organizações sociais com atuação internacional, nacional e regional vêm denunciando os perigos desse projeto. “É certo que na Amazônia existe o maior volume de terras públicas e é onde o interesse do agronegócio é muito maior porque ainda existe muita terra para explorar. Mas nós temos aqui no Nordeste milhares de comunidades quilombolas, dezenas de povos e territórios indígenas que não foram demarcados ainda. Isso abre uma brecha gigantesca para a instabilidade e a insegurança do nosso povo”, explica o coordenador da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), Alexandre Pires. 

O pior é que o processo de demarcação de territórios quilombolas e indígenas praticamente parou desde que Bolsonaro chegou à presidência. Esse cenário contribui para o aumento de conflitos e deixa quilombolas e indígenas em situação ainda maior de vulnerabilidade. 

Não só os povos tradicionais ficam desprotegidos, mas também os acampados e assentados da reforma agrária que ainda não têm a posse da terra. Isso porque, segundo Maíra Moreira, assessora jurídica da organização Terra de Direitos, mestre em conflitos socioambientais e doutoranda em Teoria do Estado e Direito Constitucional, não está escrito no texto do PL que áreas que já estejam em processo de reforma agrária ficam de fora das mudanças. Abre-se, então, margem para interpretações que legitimem a reivindicação de grileiros de áreas que já estão ocupadas. 

Mudanças climáticas

Um outro aspecto é o agravamento dos efeitos sobre o clima. O avanço do desmatamento na Amazônia pode desencadear alterações na alimentação de bacias hidrográficas de outras regiões. “Estamos em um contexto de mudanças do clima muito intenso. A variação climática está fugindo dos padrões históricos de monitoramento”, aponta Alexandre. 

Segundo ele, o projeto pode impactar diretamente o Rio São Francisco. “A bacia do Rio São São Francisco é uma das que se beneficia com as águas que vêm da Amazônia. Obviamente o semiárido é muito mais amplo do que o Rio São Francisco, mas o desequilíbrio ambiental em determinado bioma estratégico, no caso da Amazônia, pode gerar uma mudança climática e de comportamento das chuvas e do regime de biomas e resultar num desequilíbrio com proporções que a gente não tem dimensão”, explica.  

Menos burocracia e fiscalização para grileiros

Na contramão de tudo que parece orientar as boas práticas de fiscalização e execução de políticas públicas, o projeto pode permitir que terras públicas sejam vendidas abaixo do preço que valem, diminuir a fiscalização de quem ocupar a terra e ainda recompensar – financeiramente – quem utilizar a terra para especulação. 

De acordo com Maíra Moreira, é importante entender a proposição da MP 910, em um primeiro momento, como a continuidade de uma série de ações que já estavam fragilizando a capacidade de fiscalização da política de regulação fundiária de terras públicas. É o caso do Programa Terra Legal, de 2009, que tinha como perspectiva regularizar a Amazônia Legal e, ao menos inicialmente, a finalidade de ser instrumento de pacificação de conflito. Mas até esse objetivo vinha sendo questionado se, de fato, estava funcionando.

Área desmatada. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

“Na verdade a MP 910 [e o PL2633] vem com a perspectiva de reconcentração da terra, inclusive com possibilidade de que a terra seja dada em garantia do próprio ato de regularização e transferida até para bancos para acesso a crédito. É uma deturpação completa das finalidades anunciadas originalmente para essa norma”, explica Maíra.

Em outras palavras, o Estado brasileiro pode vir a custear o trabalho de grileiros, assegurando lucros e sem garantias ambientais prévias. O teor do PL parece seguir à risca a estratégia do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, revelada na reunião ministerial de 22 de abril, quando disse que o Governo Federal deveria “passar a boiada” durante a pandemia do coronavírus, aproveitando a distração da imprensa e da oposição para mudar a legislação ambiental. 


Bancada ruralista

Para a sociedade civil, o projeto não deveria estar em pauta do Congresso Nacional durante a pandemia do coronavírus. O risco, segundo Maíra, é de tentarem alterar o projeto e colocá-lo em votação sem tempo hábil para análise. Isso já aconteceu no dia 20 de maio, quando o deputado federal Marcelo Ramos (Partido Liberal/AM), relator do PL, protocolou novo parecer no plenário minutos antes do início da votação. 

Apesar da pressão que empresas estrangeiras importadoras de produtos brasileiros têm tentado exercer para evitar a aprovação do projeto, a articulação da bancada ruralista não deve ser subestimada, apesar de que alguns analistas já admitem uma possível divisão entre os parlamentares.

Na avaliação de Maíra, que acompanha a pauta no Congresso Nacional de perto, não dá para afirmar que há uma divisão. “Uma das associações deles tem posição contrária à MP, eu nem sei se continua contrária ao PL. Não significa que eles estão divididos. No que diz respeito à questão amazônica, ao meio ambiente, há um consenso entre a bancada ruralista e o Executivo Federal. A MP antes de ser revertida em PL já vinha contemplando esse setor. Isso reflete um nível de organização deles nas mais diversas esferas”, alerta. 

No dia 12 de maio, a MP 910 foi quase colocada para votação na Câmara dos Deputados, mas não houve acordo entre as lideranças partidárias no dia. A pressa, naquela data, se deu porque no dia 19 de maio a MP 910 perderia a vigência (como previsto, depois ela foi arquivada, mas já voltou ao Congresso na forma do PL 2633). Naquele dia, diversos parlamentares votaram a favor da colocação da MP na pauta de votação – de Pernambuco, 12 deputados federais votaram a favor da tramitação da MP 910. Confira abaixo:

Aumento de conflitos no campo 

No semiárido nordestino, a ideia de que devido à ocupação antiga do território e a característica predominante de pequenos agricultores significa um território mais pacificado é uma armadilha. De acordo com Denis Venceslau, coordenador da equipe do Sertão de Pernambuco da Comissão Pastoral da Terra (CPT), um dos principais perigos que o PL representa é o acirramento dos conflitos no campo.

“No início, a gente pensava que esse PL não ia chegar no semiárido, no Nordeste, que a nossa região estava protegida. A gente falava mais sobre como o bioma do cerrado seria prejudicado. Mas, na verdade, mudanças vão atingir todas as ocupações mais recentes, independente de localização. Com esse PL existe uma tentativa de retomada dos minifúndios por grileiros e antigos proprietários. E ai também entram os assentamentos”, explica Denis.

Apesar do argumento de que o PL poderia favorecer os pequenos agricultores, Denis discorda. “Quando a gente vai pro interior, a luta pelo acesso à terra é pela reforma agrária”. Isso significa dizer que, de um lado estarão os pequenos agricultores e assentados que demandam a reforma agrária e, de outro lado, grileiros com respaldo do Estado. “A MP vai facilitar a regularização de atividade ilícita e o governo está aberto para isso”, completa. 

Em 2019, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) contabilizou 1.833 conflitos no campo no Brasil. O número bateu um recorde, sendo o maior registrado em 14 anos de levantamento pela organização.

A tendência de aumento da violência no campo, reforçado pelos discursos de ódio do presidente Jair Bolsonaro, também se comprovou entre 2018 e 2019: o número de assassinatos cresceu 14% – de 28 para 32; o de tentativas de assassinato em 7% – 28 para 30; e as ameaças de morte  aumentaram em 22% – passando de 165 para 201.  “Com as novas medidas, os grileiros vão aumentar ainda mais os conflitos e a violência”, alerta a liderança.

AUTOR
Foto Débora Britto
Débora Britto

Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.