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Desde que uma decisão judicial proibiu o abate de jumentos na Bahia em novembro de 2018, o restaurante de José Bispo dos Santos, na cidade de Amargosa, vive às moscas. Boa parte dos clientes de Santos, ou Zeca de Patrão, como é conhecido pelos amigos, trabalhava no matadouro da cidade e perdeu o emprego.
O matadouro Frinordeste existia desde junho de 2017, depois que o abate de jumentos fora regulamentado na Bahia como parte de uma negociação internacional entre diplomatas brasileiros e chineses. Os chineses usam o couro do jumento para fabricar ejiao, um remédio que, acredita-se, combate desde o envelhecimento até a falta de apetite sexual das mulheres. Eles também comem a carne do animal.
Mas apreciar um hambúrguer de jumento, comum nas ruas de Pequim, é algo impensável para o baiano Zeca. Apesar dos prejuízos – além da queda no movimento no restaurante, o filho dele, Luiz Fernando da Cruz, foi um dos que perderam o emprego no frigorífico – ele é contra o abate agora proibido.
“Os jumentos ajudaram muito meus antepassados, trabalhando”, disse. “O pessoal aqui é fiel ao jegue”.
Jumentos estão no centro de uma batalha judicial que expõe como diferenças culturais podem ter um peso em questões de comércio internacional — e como o apetite chinês por ejiao causa temores por todo o mundo de que a extinção do jumento seja uma ameaça real.
A demanda por importação de couro pela China está crescendo. Apesar de o país produzir 1,8 milhão de peles por ano, seu consumo é de 4 milhões. Com isso, a China passou a comprar couro de jumento de diversos países em desenvolvimento. A proibição de novembro torna o Brasil o último em uma lista de mais 15 países que baniram o abate de jumentos — a maioria na África.
Mas, diferente de Zeca, quem lucra com o abate de jumentos está longe de desistir da batalha no Brasil.
Tudo começou com uma portaria publicada pela Agência de Defesa Agropecuária da Bahia, Adab. O documento, com apenas nove artigos, poderia ter se perdido no meio de tantos outros publicados no Diário Oficial de 29 de junho de 2016. Não foi o que aconteceu. Ao regulamentar o abate de jumentos, muares e bardotos em todo território baiano, aqueles poucos artigos mexeram em um vespeiro, tornando-se o estopim para uma acirrada batalha jurídica, econômica e ética.
O documento pretendia resolver o problema histórico dos animais errantes que, “além de provocar acidentes rodoviários, poderiam servir de agentes disseminadores de doenças”.
Apesar de considerados símbolos do Nordeste, nos últimos anos os animais foram largamente abandonados, substituídos por um meio de transporte muito mais rápido, e menos amigável: a motocicleta. No Ceará, o problema se tornou tão grave, que o departamento de trânsito local frequentemente envia equipe para recolher os animais abandonados e evitar acidentes de trânsito. Só no último feriado do ano novo, foram 115 jumentos recolhidos.
Mas a portaria era mais que uma resposta a um novo problema social. Ela dava o sinal verde para o início de um projeto que vinha sendo articulado por empresários e pelo governo baiano há anos: a exportação de carne e couro de jumentos para a China. Um negócio que, na época, a então ministra da Agricultura, Kátia Abreu, afirmou que poderia chegar na casa dos três bilhões de dólares. A articulação existia pelo menos desde 2012, quando foi assinado um acordo comercial sobre jumentos entre China e Brasil.
Dias depois da portaria entrar em vigor, a empresa FrigoCezar, no município de Miguel Calmon/BA, iniciou o abate. Só na primeira semana foram mortos aproximadamente 300 jumentos. Um ano depois, em 26 de junho de 2017, em uma solenidade que contou até com o governador da Bahia, Rui Costa, era inaugurado o frigorífico Frinordeste, vizinho do restaurante de Zeca do Patrão.
O empreendimento, feito em parceria com os chineses, começou a funcionar gerando 150 empregos diretos, 270 indiretos e com a expectativa de produzir e exportar mensalmente 300 toneladas de carne para o mercado asiático.
O Frinordeste é uma sociedade formada por uma empresa brasileira e dois sócios chineses: Zhen Yongwei e Ran Yang. Ambos residem na China, e não foram localizados pela reportagem. A reportagem tentou entrar em contato com seu representante legal no país, mas não obteve retorno.Na esteira do Frinordeste, mais dois frigoríficos começaram a operar no abate de jumentos na Bahia: o Cabra Forte, em Simões Filho, e o Sudoeste, em Itapetinga. O primeiro em dezembro de 2017 e o segundo em agosto de 2018.
Do ponto de vista econômico, a incipiente cadeia produtiva caminhava bem. Somando os três frigoríficos – únicos no Brasil autorizados para o abate de jumentos– foram criados 376 empregos diretos e 1.360 indiretos, segundo dados do governo da Bahia. Além disso, a cadeia produtiva gerava emprego e renda para mais de 500 produtores, vaqueiros e ajudantes na coleta de jumentos abandonados nas diversas regiões do estado.
Mas os argumentos econômicos não convenceram os defensores dos animais, organizados globalmente. Depois de contestar a portaria de 2016 sem sucesso, eles continuaram protestando e, principalmente, brigando na Justiça. Até que, em 30 de novembro de 2018, a juíza Arali Maciel Duarte, da 1ª Vara Federal, em Salvador, concedeu liminar proibindo o abate de jumentos em todo território da Bahia.
A decisão resultou de uma ação civil pública contra a União e o Estado da Bahia, de autoria da União Defensora dos Animais – Bicho Feliz, da Rede de Mobilização pela Causa Animal, do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, da SOS Animais de Rua e da Frente Nacional de Defesa dos Jumentos.
Um fato foi decisivo para que a juíza Arali Maciel suspendesse o abate de jumentos. Em 4 de setembro de 2018, quase 300 animais foram encontrados mortos, provavelmente de fome e sede, em uma fazenda na zona rural de Itapetinga/BA.
O local servia para o confinamento de jumentos antes de serem abatidos no Frigorífico Sudoeste. O caso teve ampla repercussão na mídia e chocou a opinião pública baiana.
Na argumentação, a juíza fala dos maus-tratos sofridos pelos animais na “captura”, durante o transporte e, principalmente, no confinamento. A magistrada demonstrou, ainda, preocupação com questões de saúde pública. Ao não serem cumpridas todas as exigências legais no processo de abate dos jumentos, eles poderiam se tornar transmissor de doenças, argumentou.
Mas foi em uma conta rápida, usando dados do Conselho Regional de Veterinária e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que a juíza construiu seu principal argumento: o plano das novas empresas de abater 200 mil animais por ano poderia levar a extinção dos jumentos nordestinos.
“Com uma estimativa de população atual de 600.000 animais no Nordeste, considerando o ritmo de abate, nos próximos 4 anos a população de jumentos nordestinos estará extinta!”, escreveu.
O governo da Bahia, por meio da Procuradoria Geral do Estado, tentou derrubar a liminar e restabelecer o abate dos jumentos. Na argumentação, Marcos Sampaio, Procurador Geral do Estado, diz que a juíza extrapolou sua competência administrativa mandando paralisar toda uma cadeia produtiva relevante, “produto de acordos privados e compromissos públicos assumidos internacionalmente” pelo governo da Bahia.
Para o procurador, a proibição do abate nada faria para dirimir a crise que matava os jumentos de fome e sede. “Quando um agente econômico ou público comete uma irregularidade, a ordem não pode ser de proibição da atividade desempenhada, mas de exigir a correção da atitude”.
A decisão foi mantida em segunda instância. Mas a batalha legal continua.
Enquanto as entidades protetoras dos animais comemoram a vitória parcial na Justiça Federal, os empresários contabilizam os prejuízos. Ainda é difícil dimensionar seu tamanho. Falta transparência em boa parte da cadeia produtiva de carne e couro de jumentos. Entre as empresas, a regra é o silêncio e a falta de clareza na condução dos negócios. Só para se ter uma ideia, dos três frigoríficos autorizados, apenas o de Simões Filho tem página na internet e canal de comunicação com os clientes.
Dados do Ministério da Agricultura, levantados pelo jornal Correio da Bahia, apontam que os três frigoríficos autorizados para o abate de jumentos exportaram mais de 25 mil toneladas de carne e couro de “cavalos, asininos e muares”, com uma receita próxima a 40 milhões de dólares, em 2018, para Vietnã e Hong Kong.
Reginaldo Filho, proprietário do Cabra Forte, em Simões Filho, trabalha com abate de animais desde 1997, quando sua família adquiriu o frigorífico que na época operava com bovinos e suínos. Em 2015, ele realizou um estudo para atestar a viabilidade econômica do abate de equídeos (jumentos, muares e bardotos), chegando até a visitar a China. Em dezembro de 2017, após conseguir autorização do Serviço de Inspeção Federal, começou a operar.
Quando veio a proibição, o Cabra Forte abatia cerca de 200 jumentos por dia, de segunda a sexta-feira, com capacidade instalada para chegar a 500. Para isso, contava com 180 funcionários –120 perderam o emprego depois da decisão da justiça. Segundo Reginaldo, o investimento total no projeto foi de cerca de 1,5 milhão de dólares.
Com um ano de funcionamento, o negócio comandado por Reginaldo ainda não dava lucro. Em média, com a exportação do couro e da carne, a previsão de receita era de R$ 370 por animal abatido. O problema é que, por questões “burocráticas” (faltava alguns certificados), o Cabra Forte não conseguia vender direto para a China, tendo que negociar com Hong Kong e com o Vietnã, cujas empresas atuavam como intermediários. Caso exportasse direto para a China, como era o caso do frigorífico de Amargosa/BA, a receita subiria para R$ 870 por animal. “Havia uma luz no fim do túnel”, lamenta Reginaldo.
O principal interesse dos importadores chineses é o couro. Dele é retirada uma substância que serve de princípio ativo para fazer o ejiao. Seu preço vem subindo, junto com sua popularidade, nos últimos anos. Hoje, uma caixa com 250 gramas do produto custa em torno de 180 dólares.
Além da exportação da carne e do couro de jumento, a proibição também afetou outro projeto que o frigorífico Cabra Forte vinha tocando. Inspirado no que viu quando visitou a China, Reginaldo se preparava para inaugurar um centro de equoterapia que atenderia crianças com deficiências ou necessidades especiais, utilizando os animais que não passassem na triagem para o abate.
Além de uma fonte extra de recursos e do aproveitamento de animais que não seriam aproveitados (abaixo do peso ou prenhe), o centro também funcionaria como um projeto social da empresa ao atender gratuitamente crianças das comunidades vizinhas ao frigorífico.
Reginaldo Filho discorda da proibição do abate, mas prefere evitar polêmica. “Tá tudo lá no processo”. Mesmo assim, reclama da demora para se chegar a uma decisão. Segundo ele, isso gera insegurança para quem quer investir no negócio. Reginaldo ressalta que cumpre com todas as normas e está pagando pelos erros dos outros. “Só quem deveria ser punido é quem fez algo errado”.
Ruim para os empresários, pior para os trabalhadores e para os pequenos comerciantes que prosperaram em torno dos frigoríficos . Em Amargosa, por exemplo, cerca de 150 pessoas perderam o emprego com a paralisação das atividades do Frinordeste — incluindo o filho de Zeca do Patrão, dono do restaurante local. Outros 270 postos de trabalhos indiretos também foram fechados.
Lucas Oliveira, de 23 anos, é um dos que foram diretamente afetados pela proibição do abate. Lucas trabalhou como auxiliar de desossa por um ano e meio. Neste período, quando pela primeira vez conseguiu a carteira de trabalho assinada, teve um filho e muitos planos para o futuro. Há quatro meses vive de “bicos” e do seguro-desemprego. “Só eu sei a falta que tá fazendo. Mas a gente tem esperança de voltar”.
Um trecho da polêmica decisão da juíza Arali Maciel Duarte que não foi questionado por nenhuma das partes é a que ressalta a importância do jumento para a população nordestina:
“A população brasileira e principalmente a nordestina respeita e reconhece a importância histórica e social dos jumentos“, ela escreveu.“Os jumentos têm na história uma contribuição incalculável para o desenvolvimento do país, principalmente do Nordeste.”
A juíza chama atenção às estátuas de jumentos pelos estados nordestinos, e às músicas que foram feitas em homenagem ao bicho. O nome de uma delas, de Luiz Gonzaga, talvez resuma o sentimento que muitos nordestinos têm pelo jumento: “Apologia Ao Jumento (O Jumento É Nosso Irmão)”.
Não existe pesquisa de opinião confiável sobre o assunto. Mas a rejeição do nordestino ao abate de jumentos fica clara no apoio às manifestações promovidas pelas organizações de defesa dos animais ou mesmo nos comentários deixados nas redes sociais. Das dezenas de pessoas ouvidas para a elaboração dessa reportagem, com exceção daquelas diretamente envolvidas na cadeia de produção, todas eram contra o abate.
Ao proibir o abate, a juíza não fugiu da questão cultural. Para a maioria dos brasileiros que nasceram na região Nordeste, a relação com o jumento mistura religiosidade, gratidão e estima.
Apesar do tamanho relativamente pequeno, o jumento é um animal forte, resistente e que se adaptou perfeitamente ao clima árido que predomina no Nordeste brasileiro. Desde muito tempo, o nordestino tem o animal “que levou o menino Jesus no lombo” como um aliado para o trabalho de arar a terra, carregar a água ou puxar a carroça.
Em uma entrevista publicada no portal do Instituto Humanitas Unisinos, Kátia Lopes, doutora em Ciência Animal e sócia-fundadora da ONG
Defesa da Natureza e dos Animais, de Mossoró/RN resumiu esse sentimento: “Na formação da nossa civilização muita gente defende que foi
no lombo de um jumento que a nação nordestina nasceu. Ele é o símbolo da resistência da nossa região.”
Ao ressaltar o companheirismo entre jumentos e trabalhadores no nordeste, a juíza Duarte deixou escapar ainda uma cutucada na cultura
chinesa: “Juntos passavam fome, porém, nunca cogitaram a possibilidade de incluí-los no rol de alimentos.”
O cenário era de guerra. Quando os fiscais da Agência de Defesa Agropecuária da Bahia e da Secretaria Municipal de Meio Ambiente chegaram à fazenda Santa Rita, em Canudos, Sertão do estado, encontraram por volta de 200 jumentos mortos. Outros cerca de 800 animais continuavam confinados ilegalmente no espaço e aparentavam estar desnutridos e desidratados. O cenário foi revelado no dia 1º de fevereiro de 2019, dois meses após a proibição do abate de jumentos pela Justiça Federal.
Segundo o relatório produzido pela fiscalização, o destino dos animais seria o abate em Itapetinga e Amargosa, ambas cidades baianas. A suspensão das atividades pegou de surpresa os responsáveis pelo confinamento e transporte dos jumentos, dois chineses cujos nomes não foram revelados. Sem destino, os animais foram abandonados.
Por conta dos maus-tratos, os jumentos continuaram morrendo na fazenda Santa Rita. Atualmente, apenas cerca de 420 estão vivos. Em uma entrevista por telefone, a bióloga Patrícia Tatemoto, contou que existe o risco de mais mortes devido a uma doença metabólica conhecida por hiperlipemia, sequela das condições adversas . Patrícia é a única representante no Brasil da ONG britânica The Donkey Sanctuary, que atua globalmente na defesa dos jumentos.
A The Donkey Sanctuary faz parte, junto com outras entidades, da Frente Nacional de Defesa dos Jumentos. Por determinação da justiça, são as entidades que agora têm a tutela dos animais e são responsáveis por mantê-los. Isso, claro, tem um custo elevado e exigem recursos que os ativistas não possuem.
Para se ter uma ideia, o gasto diário só com a alimentação dos sobreviventes é de R$ 890, somado com outras despesas (veterinário, remédios) chega a algo em torno de R$ 50 mil ao mês. Uma campanha de financiamento coletivo, na plataforma Catarse, foi iniciada para arrecadar fundos. Até o momento, apenas 10% da meta estabelecida foram atingidos.