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“Se a pessoa tiver uma alta de pressão aqui, ou morre ou tem que se virar desmaiada pra chegar em Manari”. Foi assim, com uma resposta bem direta, que começou nossa conversa com Valdenici Bezerra de Cristo, de 48 anos, na casa onde ela criou e sustentou sozinha os sete filhos – “o marido mora noutro Brasil” -, na zona rural do município de pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de Pernambuco.
A Unidade Básica de Saúde (UBS) do Povoado de Umbuzeiro Doce, a 6 quilômetros de Manari, onde vivem 700 pessoas, fica a menos de dez minutos a pé, mas está fechada desde novembro.
Merendeira afastada por invalidez, Valdenici toma remédio controlado contra uma doença neurológica que a família sequer sabe dizer o nome. Também sofre com dores no pescoço, na coluna, nas juntas e nos ossos das pernas.
“Já peguei ela com a mão dentro do fogo sem saber o que tava fazendo”, conta uma parente que pediu para não ter o nome publicado por medo do próprio marido. Com 20 anos, mãe de um filho de dois, que sustenta com os R$ 260 do Bolsa Família, a moça é hipertensa, mas não faz qualquer acompanhamento médico.
AMarco Zero Conteúdovisitou, no final de janeiro, Manari, Tupanatinga e Itaíba, os três municípios com pior IDH do estado que ainda não conseguiram preencher as vagas através do novo edital do Mais Médicos, lançado em novembro.
O que vimos foi uma população desamparada em locais onde médicos brasileiros não querem trabalhar. A saída dos cubanos do programa, juntamente com as dificuldades nas contas municipais, provocou um apagão da atenção básica nos lugares mais vulneráveis do Nordeste.
Para renovar uma simples requisição de medicamento contra hipertensão, diabetes ou depressão – três dos principais problemas de saúde no interior -, muita gente precisa se virar para percorrer até 40 quilômetros da zona rural até um hospital municipal, geralmente lotado. Um médico plantonista chega a atender 100 pacientes por dia, como é o caso da unidade hospitalar de Itaíba, onde há somente quatro médicos da atenção básica para 26 mil habitantes.
Algumas UBSs que visitamos contam atualmente com apenas uma enfermeira. Não há médico, técnico de enfermagem – e consequentemente vacinas -, dentista, auxiliar de saúde bucal nem Agente Comunitário de Saúde (ACS), porque a prefeitura foi obrigada a exonerar os servidores por conta dos gastos com pessoal acima do limite permitido pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
“Agente Comunitário de Saúde agora é assistente, psicólogo e até delegado”, relata Márcio Bezerra, ACS há 22 anos no Assentamento Barra Verde, a 20 quilômetros de Itaíba. Sozinho, ele cuida de quase 400 famílias. Muitas doenças, como viroses e diarreia, eram contidas no postinho, “mas agora tá complicado, principalmente nesse começo de ano, época de vacina”. E as famílias que não atualizam o cartão de vacinação correm o risco de perder o benefício do Bolsa Família.
“Aqui é Deus no céu e Mariana na terra”, brinca Márcio. Mariana é a enfermeira, a única profissional de saúde do posto. “Durante a semana, é feita uma escala de agentes de saúde pra me darem uma assistência”, detalha ela, que já chegou a transportar pacientes no seu carro particular para que a pessoa fosse socorrida no hospital de Itaíba.
“Tão bonzinho que tava com os cubanos aqui. Um bocado de vezes já tive que ir com o bebê pra Itaíba porque não tinha médico, uma fila do tamanho do mundo”, lamenta Maísa da Silva, de 19 anos, que também conhecemos na visita à UBS do Barra Verde. Ela mora a 20 quilômetros do postinho. Por sorte, o marido ainda consegue manter uma moto. Mas quem não tem transporte precisa se arriscar pedindo carona aos poucos carros que passam.
Os três vivem do Bolsa Família, da roça quando o inverno é bom e da produção de leite, que atualmente só dá mesmo para manter as seis vacas porque o preço do litro desabou, sendo vendido a R$ 0,90 aos atravessadores.
“E gelado, viu? Então ainda tem o gasto com a energia”, contabiliza Arlindo de Carvalho, pai de José Arthur. A mãe e a ex-esposa faleceram de problema renal, e o filho do primeiro casamento “nasceu com tireóide”, precisando, desde que veio ao mundo, ir ao Recife periodicamente para conseguir se tratar.
Os médicos cubanos deixaram o Brasil em novembro do ano passado, numa reação aos repetidos ataques do presidente Jair Bolsonaro (PSL). Até 2016, quando a participação dos médicos da ilha caribenha começou a diminuir, 11 mil profissionais vieram para o País numa parceria com o governo federal intermediada pela Organização Pan Americana da Saúde (Opas).
Lançado em 2013, no governo Dilma Rousseff (PT), o Mais Médicos é considerado o maior programa da Atenção Básica da história do Brasil, levando assistência para 63 milhões de brasileiros e para as regiões mais carentes do País. São 18 mil vagas em mais de quatro mil municípios e 34 Distritos Sanitário Indígenas (DSEIs).
O fim da cooperação foi tão brusco que, como os carimbos dos profissionais de Cuba passaram automaticamente a não ter mais validade, as prescrições entregues por eles aos pacientes deixaram de ser aceitas nas farmácias. Então, muita gente que tinha um remédio controlado já receitado, agora precisa enfrentar as longas filas hospitalares para pegar uma receita nova.
Por ter CRM, o pediatra cubano Odis Villalon assumiu em dezembro a vaga aberta no povoado de Boqueirão, na zona rural de Tupanatinga, onde vivem 5 mil pessoas, o dobro da cobertura ideal de uma UBS. Ele chegou ao Brasil na primeira leva do programa para trabalhar em Passira, no Agreste, e conseguiu ser aprovado no Revalida em 2015. No tempo livre e nas madrugadas, Odis estudava silenciosamente para passar no exame.
Tendo ficado no Brasil, ele é considerado um desertor e está, por oito anos, impedido de entrar no seu país de origem até mesmo para, na eventualidade de uma morte, enterrar a mãe ou os dois filhos que ficaram lá, que não vê há três anos. De segunda a quinta, Odis atende em Boqueirão. Nas sextas, se dedica aos estudos e é plantonista substituto no Hospital Barão de Lucena, no Recife.
Os profissionais do Mais Médicos recebem uma bolsa, atualmente no valor de R$ 11,8 mil, e uma ajuda de custo inicial entre R$ 10 mil e R$ 30 mil de deslocamento para o município de atuação. Além disso, todos têm moradia e alimentação custeadas pelas prefeituras. O contrato é de 40h semanais, sendo 32h de atuação e 8h de estudos.
Antes de vir para cá, Odis realizou quatro outras missões: Gana, Venezuela, Haiti e Bolívia. “É uma besteira falar que os profissionais cubanos não estão preparados”, atesta, lembrando que os cubanos vieram sabendo quais eram os termos do contrato. E como tem sido viver essa escolha de continuar no Brasil?, perguntamos.
Ele explica: no Brasil, conseguiu comprar uma casa no interior do Nordeste – onde vive com a esposa, cubana, e o filho caçula – e outro imóvel em Cuba, além de carro, tirar carteira de motorista e ter acesso a produtos e comidas de oferta restrita em Cuba. “Ao Brasil, eu devo tudo”.
Na UBS de Boqueirão, ele atende entre 35 e 40 pessoas por dia, até o último paciente “porque tem gente que percorre 20 quilômetros para chegar aqui”. “Por que o Mais Médicos foi feito? Quem quer ir pro interior, pras áreas indígenas, pra Amazônia? Os cubanos, os estrangeiros, que precisam trabalhar. Essa é a realidade. O médico brasileiro só vai para as grandes cidades e a periferia”.
O presidente da Associação Municipalista de Pernambuco (Amupe), José Patriota, prefeito de Afogados da Ingazeira, reforça a fala de Odis, deixando claro o quanto as prefeituras sentiram a ida dos cubanos.
“Eu sempre disse que, mesmo com o Sindicato dos Médicos dizendo que há médico sobrando, sempre iria haver uma lacuna. Os médicos brasileiros, na sua grande maioria, vão se especializar. Agora mesmo tem médicos que acabaram de entrar e já estão deixando o Mais Médicos para ir fazer residência. Não é interessante para eles ocupar esse espaço na saúde básica, mas saúde básica é tudo”, avalia.
“Não há mais possibilidade de os municípios ampliarem seus gastos com saúde. Se o dinheiro do governo federal não vem, pode haver estagnação ou até retrocesso nos avanços do SUS”, argumenta Paulo Dantas, médico aposentado e assessor do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde de Pernambuco.
Ele acredita que a decisão da cooperação com Cuba foi “acertadíssima” e que era para ser estimulada até que os médicos brasileiros valorizassem a atenção básica, o que não passa somente por uma questão financeira, mas sim cultural.
Depois das primeiras duas chamadas – somente para profissionais com CRM -,o que se viu foram manobras para esticar prazos e mudar os trâmites, na tentativa de conseguir ocupar as vagas com médicos brasileiros, formados aqui ou no exterior, ou com profissionais revalidados. Os formados no exterior são o alvo da terceira e mais recente chamada, sem necessidade do Revalida, assim como os profissionais estrangeiros que podiam participar do edital, mas que agora precisam aguardar a homologação da última chamada para ocupar as vagas remanescentes.
A primeira chamada do novo edital abriu um total de 8.517 vagas – 436 delas em Pernambuco – em 2.824 municípios e 34 distritos indígenas. Agora, na terceira chamada, ainda restam 1.460, e 24 dessas vagas ociosas estão em 13 municípios pernambucanos, incluindo sete no Distrito Sanitário Indígena.
A decisão recente de maior impacto do governo Bolsonaro foi decidir encerrar o Mais Médicos, não haverá novos editais. A estratégia é implantar carreira federal, mas o plano ainda está sendo arquitetado. A novidade foi publicada em primeira mão peloEl Pais Brasil. A informação veio dias depois do Ministério da Saúde ter adiado o prazo de inscrições para médicos brasileiros formados no exterior e médicos estrangeiros sem CRM.
A lista completa dos brasileiros que estudaram lá fora alocados em cada localidade será divulgada no dia 19 de fevereiro. Somente depois dessa data, será possível saber quantas vagas ainda restarão em aberto para serem ocupadas por médicos de outros países, com destaque para os cubanos que resolveram permanecer no País.
Enquanto a lentidão impera, brasileiros como Lindinalva Batista, 29 anos, ficam sem assistência. “Minha filha teve febre e dor de cabeça durante três dias. Saímos às 8h de casa, ela com 38 graus e dor na barriga. Chegamos no hospital, não tinha mais ficha. Só conseguimos atendimento porque ela estava vomitando”. Foi assim que Lindinalva descobriu que Jadieli, de sete anos, estava com amigdalite e já desidratada por não conseguir se alimentar.
Mãe também de Jamerson, de 10 anos, e com três meses de gestação, Lindinalva, portadora de catarata congênita, deixou de contar com o acompanhamento no UBS da comunidade quilombola de Caraíbas, perto de casa, mas a 30 quilômetros do centro de Itaíba.
Sem água encanada, a família depende de carro-pipa do exército, que abastece os vizinhos cadastrados, e do lombo do jumento para transportar a água até a cisterna de casa. “Ajuntada” – o companheiro “vive mais no mundo do que em casa” – ela sobrevive de serviço, quando arruma. Faz de tudo.
A agricultura de subsistência só existe quando chove: feijão, milho e palma para vender. O que sustenta mesmo a família é o auxílio do bolsa-família, de R$ 246. Se precisar ir ao hospital, gasta R$ 14 de lotação.
Itaíba é um dos tantos municípios do interior que estão com a corda no pescoço. Por conta da LRF, a despesa total com pessoal não pode ultrapassar 54% da receita corrente líquida para o executivo. Em Itaíba, esse percentual já está perto de 70%.
Grande parte dessa conta vem justamente do gasto com programas como o Saúde da Família, cujas transferências da União não acompanham o aumento da demanda, sem contar com as perdas recentes de arrecadação e a seca prolongada.
No apagar das luzes de 2016, ano em que o ex-prefeito de Itaíba, Juliano Martins (PP), perdeu a reeleição para a atual prefeita Regina da Saúde (PTB), ele nomeou quase 400 servidores, estourando o limite imposto pela LRF num período em que a contratação de pessoal é vedada. Resultado: agora boa parte deles está sendo exonerada. Mais de 20% dos comissionados já não estão mais nos postos de trabalho.
O promotor Jefson Romaniuc explica que o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) já expediu uma recomendação e foi firmado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), o plano está sendo elaborado. Por causa de dois suicídios e uma tentativa em dois meses, no fim de 2018, a prefeitura conseguiu uma autorização extraordinária para contratar um psiquiatra. O município não contava com a especialidade nem com um Centro de Atenção Psicossocial (Caps).
Itaíba tem 26 mil habitantes e oito unidades de Saúde da Família, sendo sete na área rural. Das oito, seis são ligadas ao Mais Médicos. Cinco médicos se apresentaram, mas uma profissional precisou se afastar por problemas de saúde.
Em resposta à Marco Zero Conteúdo, o Ministério da Saúde assegurou que, por se tratar de um caso de saúde, a vaga voltará ao sistema para ser ofertada no edital. “E com a chegada do novo edital, os médicos brasileiros que estavam nas unidades não participantes do programa saíram para assumir o Mais Médicos em Arcoverde e Águas Belas”, detalha o secretário municipal de saúde, Pedro Teotônio.
“É uma verdadeira guerra conseguir médico para cá, a maioria não quer vir. A cidade é distante, não tem muitos atrativos e as estrada são ruins”, lamenta Pedro. “Os cubanos eram diferente, moravam direto aqui”, lembra.
Em Tupanatinga, a saída da prefeitura foi reorganizar o esquema de trabalho deslocando médicos de unidades básicas para o hospital. “Um médico já chegou a atender 150 pessoas num só dia, entre emergências e atendimento de atenção básica”, relata a secretária de saúde, Meyrielly Suammy, filha do prefeito do município, Silvio Roque.
Ela lembra que um brasileiro chegou a se inscrever para a vagas, mas na apresentação pediu para trabalhar só alguns dias da semana, o que não é permitido.
Para agravar ainda mais a situação, a norma vigente estabelece que um dos motivos de suspensão da transferência do incentivo de custeio mensal da União para os municípios é a ausência dos profissionais que compõem as equipes por um período superior a 60 dias. Ou seja, se o posto fica inativo ele perde os recursos.
O Ministério explica que, como o Sistema de Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde é o instrumento utilizado para o monitoramento e consequente transferência de recursos financeiros para as equipes, quando elas estão sem o médico (ou qualquer outro profissional da equipe mínima), no prazo superior ao permitido, não são visualizadas na base nacional. Por isso, não são repassados incentivos financeiros federais. Para os profissionais do Programa Mais Médicos, vale o mesmo.
“Era muito bom trabalhar com os cubanos, eles gostavam muito de fazer visitas, palestras. Tudo que a gente chamava pra eles fazerem eles topavam. Não tinha história de quantidade, se tivesse 100 pessoas atendia todo mundo”.
A médica cubana Mayelin Rodriguez, que também permaneceu, traça as diferenças que percebe entre os dois países: “O Brasil é um contraste em tudo. É muito diferente trabalhar aqui e em Cuba. Lá pode ser que não haja as possibilidades econômicas que existem aqui, mas todo mundo é instruído. Todos sabem que uma gripe é tratada só com Dipirona, por exemplo, e muito líquido. Aqui as pessoas gripadas vêm no hospital querendo tomar soro e outros remédios. Quando eu digo que não, algumas pessoas ficam até chateadas. Mas eu tento educar a população e mudar isso. Nós cubanos temos uma formação diferente”,
Em Manari, duas das quatro vagas deixadas pelos cubanos ainda não foram preenchidas. A secretária de Saúde, Juciane Carvalho, avalia que, apesar disso, não dá ainda para avaliar o prejuízo porque “janeiro é mês de férias, de festa tradicional. Já é de rotina da população daqui não ir aos postos de saúde”.
Ela, que não soube dizer quantos funcionários há e qual o orçamento da pasta, acredita que os médicos ainda irão aparecer em Manari. Dona Valdenici, do início da nossa reportagem, continua aguardando.