Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52
Setenta anos depois, a Marco Zero refaz o caminho que Luiz Inácio Lula da Silva percorreu quando saiu de Caetés, no Agreste de Pernambuco, até Vicente de Carvalho, distrito do Guarujá, em São Paulo
Quando Luiz Inácio Lula da Silva subir a rampa do Palácio do Planalto para cumprir seu terceiro mandato como presidente da República, no próximo dia 1º de janeiro, chegará ao ápice de uma trajetória singular, que levou o menino retirante da seca do Nordeste a se tornar a primeira pessoa a ser eleita três vezes para presidir o Brasil. Uma história de vida que possibilitou ao torneiro mecânico, líder sindical, deputado constituinte, dirigente partidário e ex-presidente da República por duas vezes acumular um conhecimento profundo do país. Os caminhos espinhosos, como são os da grande maioria das pessoas, o tornaram um hábil articulador político que foi capaz de convergir a esperança de milhões de brasileiros por um futuro melhor.
Mas todo caminho tem o primeiro passo. O de Lula foi dado há exatos 70 anos, em dezembro de 1952, quando ele deixou o Sítio Vargem Comprida, no então distrito de Caetés, com destino a São Paulo. Lula, a mãe Dona Lindu e mais cinco irmãos subiram em um pau de arara para fugir da fome, da seca e da falta de perspectiva. Foram mais de 2.500 quilômetros de estradas, dividindo a carroceria de um caminhão com cerca de 60 pessoas, durante 13 dias e 13 noites, em busca de um futuro melhor.
A viagem de Caetés a São Paulo foi a primeira lição que Lula teve sobre o Brasil. De uma hora para outra, o garoto que até os sete anos de idade nunca tinha ido além dos cerca de 15 quilômetros que separavam o Sítio Vargem Comprida de Garanhuns, viu-se transportado para outro mundo. Em 13 dias, viu o Rio São Francisco, passou pela Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, conheceu outras vegetações, sotaques, descobriu que existiam sobrados, prédios, automóveis, mar… Saiu de um mundo rural para um urbano e constatou que no Brasil existia muita riqueza e também muita desigualdade.
Não é exagero dizer que a mudança para São Paulo transformou a vida do garoto Lula e deixou marcas profundas que, de alguma forma, influenciaram e ainda influenciam as decisões do Lula presidente. Por isso, para entender o futuro que podemos esperar, resolvemos olhar para o passado.
Setenta anos depois, a Marco Zero refez o caminho que liga as casas onde Lula morou quando partiu do Sítio Vargem Comprida e quando chegou a Itapema, que logo mudaria de nome para Vicente de Carvalho, um distrito do Guarujá (SP). Em mais de 2.500 quilômetros de estradas e cinco estados, registramos flashes de um Brasil cheio de contradições, com muitas diferenças e ainda com muitas semelhanças do país que Lula descobriu sete décadas atrás. Paradoxo que mostra o tamanho do desafio que se apresenta para este terceiro mandato.
Para entender o que Lula se tornou, é preciso saber de onde ele partiu.
Em 1952, Caetés ainda era um distrito de Garanhuns, no Agreste pernambucano. O Sítio Vargem Comprida ficava na zona rural do município e consistia num punhado de casas esparsas, ocupadas por famílias que viviam da agricultura de subsistência. A família Silva era uma delas.
A vida, que já era difícil, tornou-se ainda mais penosa com a forte seca que castigou a região entre 1951 e 1953. No livo A história de Lula, Denise Paraná descreve um pouco da dureza daqueles dias. “A água que a família bebia era transportada em latões, trazida de açudes ou de barreiros, buracos feitos na terra que serviam como reservatório de chuva. A sujeira era tanta que a água precisava ser coada. Depois, Lindu a colocava numa jarra de barro e esperava assentar. Só quando a camada de terra pousava no fundo, é que a água ainda salobra, amarelada e morna podia ser tomada. Às vezes, um sapinho, um grilo ou outro pequeno animal pulava para fora da jarra”.
Tanto Dona Lindu quanto os seis filhos que moravam com ela (o marido Aristides já havia migrado para São Paulo anos antes levando os dois filhos mais velhos do casal) não sabiam ler e escrever. As crianças andavam descalças e não tinham assistência médica. Nos períodos mais difíceis, a alimentação era escassa e de baixo valor nutricional. Os Silva, como seus vizinhos e parentes, eram sobreviventes.
Estamos falando de Caetés, mas poderia ser qualquer outro ponto do semiárido nordestino. Os indicadores sociais da região eram chocantes. Segundo o Anuário Estatístico Brasileiro, em 1950, três em cada quatro nordestinos acima de cinco anos de idade eram analfabetos (74,1%). Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que a taxa de mortalidade infantil na região era de 175 para cada mil crianças nascidas.
Em meio a tanta dificuldade, no final de 1952, Dona Lindu resolveu fazer o caminho de tantos conterrâneos: migrar para São Paulo com os seis filhos na esperança de se juntar ao marido Aristides e reconstruir uma vida melhor. Segundo o jornalista Fernando Morais apurou para o livro Lula – Volume 1, para viajar, dona Lindu “vendeu por Cr$ 13 mil (R$ 18,6 mil em 2021) o sítio de dez alqueires — o valor pago incluía um casebre, uma jumenta, meia dúzia de galinhas e a vaquinha que garantia o leite da família”.
Levantamento feito por Monica de Melo Ferrari para a dissertação A Migração Nordestina para São Paulo no segundo governo Vargas (1951-1954) – Seca e desigualdades regionais mostra que, segundo o censo demográfico de 1950, 387.612 nordestinos migraram para São Paulo. Destes, 62.745 eram de Pernambuco. Uma década depois, esses números eram 862.890 e 182.762, respectivamente.
Se antes os nordestinos deixavam a região para ir trabalhar na agricultura e em áreas rurais do estado de São Paulo, sobretudo nas fazendas de café, os Silva agora seguiam o novo fluxo migratório intensificado com a crescente industrialização do país. Estavam mudando para o estado mais industrializado e populoso, indo morar em áreas urbanas e tentando a sorte como operários.
Setenta anos depois da partida de Lula, a reportagem da Marco Zero encontrou outra realidade em Caetés, agora uma cidade, emancipada de Garanhuns desde 1963. Os problemas ainda são muitos, mas os indicadores sociais apresentam uma melhora substancial em toda região. A taxa de mortalidade infantil no Nordeste, por exemplo, caiu para 13,2 mortes para cada mil crianças (eram 175/1000 em 1950), segundo o IBGE. O número de analfabetos agora é de 13,9% da população (contra 74,1% há 70 anos).
As políticas de distribuição de renda e os programas sociais do governo Lula (2003 a 2010) impulsionaram a economia local. Entre 2003 e 2014 (inclui-se aí o primeiro mandato de Dilma Rousseff), cerca de 25 milhões de pessoas deixaram a linha de pobreza. Dados do Banco Mundial mostram que a parcela da população em situação de extrema pobreza no país era de 13,6% em 2001, caindo para 4,9% em 2013. Enquanto a renda média dos brasileiros, no geral, cresceu 4,4% entre 2003 e 2014, a renda dos 40% mais pobres cresceu 7,1%. Essa reportagem da Rede Brasil Atual explica tudo isso em detalhes.
O fato é que, com a melhora das condições de vida em Caetés e no Nordeste como um todo, o fluxo migratório inverteu-se. Segundo o IBGE, na primeira década dos anos 2000, que corresponde aos dois mandatos de Lula, houve um movimento de retorno da população às regiões de origem em todo o país. O Nordeste foi a região que mais recebeu migrantes de volta. Em 2009, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), Pernambuco foi o estado com a maior taxa de migração de retorno da região, com 23,61%. Sergipe, Paraíba e Rio Grande do Nortes também apresentaram taxas superiores a 20%.
José Pedro Alexandre, que tem 54 anos e atualmente mora no Sítio Vargem Comprida, bem pertinho de onde Lula vivia quando criança, foi uma dessas pessoas que migraram para São Paulo na década de 1980 e voltou para Caetés nos anos 2000. Nesse vídeo, ele conta parte dessa história:
Se na época do governo Lula as coisas melhoraram, os últimos anos foram de retrocessos. O mais sintomático deles é o retorno do Brasil ao mapa da fome. Dados do segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil, elaborado pela rede Penssan com apoio da Oxfam Brasil e outras organizações, mostram que a insegurança alimentar tem se agravado no país, e a fome esteve ainda mais presente na vida dos brasileiros em 2022. Apenas quatro entre 10 famílias conseguem acesso pleno à alimentação. A fome já atinge 33,1 milhões de pessoas.
As razões, ainda de acordo com o relatório, são o aprofundamento da crise econômica, o segundo ano da pandemia de covid-19 e a continuidade do desmonte de políticas públicas que promoviam a redução das desigualdades sociais da população.
Em dezembro de 1952 a família Silva embarcou no caminhão Mercedes-Benz, “cara curta”, pertencente a Zé de Né, um “empreendedor” que morava em Caetés e regularmente fazia a viagem até São Paulo. Na ida levava as pessoas no pau de arara e, na volta, vinha com a carroceria apinhada de mercadorias. Zé de Né morreu em 2013, orgulhoso do ilustre passageiro que saiu de Vargem Comprida para fazer história. Antes de morrer, em 2003, ele se encontrou com Lula em uma das visitas do já presidente da República à cidade natal.
Jorge, o irmão mais novo de Zé de Né, ainda é vivo. Aos 91 anos, ele lembra de poucos detalhes daquela viagem histórica. O principal deles é que foram 13 dias muito difíceis. “O sofrimento era grande, uma viagem dessa com criança, estrada de barro. Tinham poucos postos de gasolina e, em muitos deles a bomba era na manivela. Não era brincadeira não. Ele dava tanta volta no mundo. Hoje, para São Paulo é um salto”.
Lindu sempre soube que a viagem era perigosa. Segundo Denise Paraná narrou em seu livro: “As notícias de retirantes que morriam na estrada não eram segredo. A travessia era longa, dura, incerta. Uma viagem sem garantias, ao Deus dará. As cruzes nas margens do caminho lembravam as vítimas daquelas estradas sem segurança. Pessoas eram transportadas como gado. Caminhões tombavam, derramando sua carga humana. O sol e a chuva castigavam. Apesar de saber de tudo, Lindu decidiu partir. Foi uma decisão que mudou o destino dela e de seus filhos e ficaria registrada na história.”
A reportagem Uma tragédia brasileira – pau de araras, assinada por Mário de Moraes e Ubiratã de Lemos e publicada na revista O Cruzeiro em 22 de outubro de 1955 (a reportagem viria a ganhar o prêmio Esso daquele ano) afirmava que a rodovia Rio-Bahia, hoje a BR-116, na época com 1.589 quilômetros ligando a então capital federal a Feira de Santana (BA), havia se transformado num cemitério. “Suas curvas são assinaladas por cruzes. E cada cruz é uma história. Caminhões que perderam o freio e se chocaram com barrancos, outros saltaram da estrada nos abismos laterais, outros pegaram fogo, explodiram”, escreveram.
Em seu trabalho, Em torno da sociologia do caminhão, Marcos Vinícius Vilaça descreve um outro aspecto grave das viagens em paus de araras nos asnos de 1950: as precárias condições de higiene. “As condições de higiene nessas travessias são as mais contundentes. Chegam aos sessenta os que viajam inclusive os meninos aceleradores da fedentina, às vezes insuportáveis provocadora de protesto nos lugares em que escala o caminhão mal cheiroso. Na viagem os adultos atendem às necessidades fisiológicas em sanitários de postos de abastecimento ou ‘indo ao mato’, nas paradas, geralmente, de três em três horas. Quando vão ao mato convenciona-se, os homens tomam a margem esquerda da estrada, as mulheres a da direita. Prefere-se ‘ir ao mato’ que às privadas por serem essas sempre imundas e espalhadoras de doenças”, escreveu em 1987.
As condições das estradas, 70 anos depois, de maneira geral estão bem melhores, mas ainda longe do ideal. Boa parte dos cerca de 2.500 quilômetros que separam o Sítio Vargem Comprida (PE) de Vicente de Carvalho (SP) estão sob a administração de concessionárias, ou seja, tem cobrados pedágios. Para refazer o trajeto que Lula fez a equipe da Marco Zero passou por 19 postos de pedágio a um custo total de R$ 146,30. Mesmo assim, na maior parte do percurso, as estradas estão em condições precárias, com muitos buracos e mal sinalizadas.
Apesar dos riscos e desconfortos, após 13 dias e 13 noites de viagem, o caminhão Mercedes-Benz de Zé de Né chegou ao bairro do Brás, em São Paulo. A família Silva nunca tinha visto nada igual. Mas ainda faltavam mais alguns quilômetros até a última parada, no Guarujá. O percurso foi completado de táxi e balsa, “confortos” que Lula nem sabia que existia e que demorou a ter novamente.
Ainda no começo da viagem, após uma parada em Tupanatinga (PE), o caminhão que levava a família Silva chega em Paulo Afonso (BA). Como ainda não existia ponte, a travessia do Rio São Francisco precisou ser feita de balsa. Foi o primeiro contato com o Velho Chico e Lula nunca tinha visto tanta água. Um contraste comparado ao ambiente árido que deixava para trás. Ele só não poderia imaginar que, 55 anos depois daquele encontro, iniciaria a obra que levaria parte de toda aquela água para milhões de nordestinos. Em 4 de junho 2007, já no seu segundo mandato como presidente da República, Lula iniciava as obras da Transposição do Rio São Francisco.
Mais de quinze anos depois, Lula iniciará seu terceiro mandato como presidente sem as obras da transposição estarem totalmente concluídas. Embora os eixos Norte e Leste tenham sido oficialmente concluídos em 9 de fevereiro de 2022, o governo federal ainda precisará entregar as obras dos ramais do Apodi (RN), do Salgado (CE), o Cinturão das Águas do Ceará (CAC), as Vertentes Litorâneas da Paraíba, a Adutora do Agreste Pernambucano e o Canal do Xingó (SE). Sem falar do Ramal do Piancó (PB), o Sistema Seridó (RN) e o Canal do Sertão Baiano que ainda estão em fase de estudos e elaboração de projetos.
Se a Transposição do São Francisco foi a “grande obra”, o governo petista também enfrentou a questão hídrica com tecnologias sociais de captação e de estocagem de água mais democráticas, baratas e eficientes. Logo que assumiu a presidência, em 2003, Lula transformou o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), o maior programa de armazenamento de água do país criado pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), em uma política pública com dotação orçamentária. Desde então, foram entregues 1,5 milhões de cisternas, beneficiando cerca de 5 milhões de brasileiros.
O programa, que chegou a ser premiado pela ONU, foi praticamente destruído no governo Bolsonaro. Desde que começou, em janeiro de 2019, o atual governo entregou menos de 38 mil cisternas. O mais grave é que, para 2023, previa apenas R$ 2.283.326, como detalha o jornalista Carlos Madeiro nesta reportagem.
A cidade de Paulo Afonso que a Marco Zero encontrou é totalmente diferente da que Lula conheceu na sua primeira passagem por lá. Hoje abriga um complexo hidrelétrico formado pelas usinas de Paulo Afonso I, II, III, IV e Apolônio Sales (Moxotó), que gera 4.279,6 megawatts de energia. Há 70 anos só existia o canteiro de obras que, mais tarde, iria se transformar na usina de Paulo Afonso I, inaugurada em 1955.
Se a questão energética não era uma preocupação do garoto de sete anos e de ninguém naquele caminhão com problemas de sobrevivência muito mais urgentes, quando Lula assumiu, em 2003, esse era um problema central no Brasil. O país ainda convivia com o apagão de energia elétrica e com os racionamentos impostos ao setor elétrico pelo governo de Fernando Henrique Cardoso. Para enfrentar o problema, o governo Lula tomou uma série de medidas. Algumas delas, inclusive, questionáveis do ponto de vista ambiental.
Inicialmente, houve a retomada da construção de usinas hidrelétricas (Belo Monte a principal delas), além de leilões de outras fontes de energia limpa mais sustentáveis, como a eólica. O primeiro leilão de energia eólica foi realizado em 2009 e garantiu um investimento de R$ 9,4 bilhões na construção das usinas desse tipo de matriz.
Para 2023, alguns desafios se impõem. Baixar o valor da tarifa de energia, a segunda mais cara do mundo, talvez seja o mais imediato. Aumentar a produção de energia sem impactar o já tão degradado meio ambiente é o mais complexo. E isso tudo em um contexto de privatização da Eletrobras.
São 890 quilômetros entre a entrada na Bahia, por Paulo Afonso, até a cidade de Divisa Alegre, já no lado mineiro. Se cortar o território baiano de norte a sul de carro, em 2022, é uma experiência desafiadora, imagina em 1952, em estradas de terra, na carroceria de um pau de arara e durante uma das maiores secas registradas no século passado.
O trecho baiano da viagem é longo e, à medida que os quilômetros percorridos avançam, é possível perceber uma gradual mudança na vegetação, que ganha tons cada vez mais variados de verde. Mas aí, uma transformação profunda ocorreu desde a primeira passagem dos Silva por aquelas bandas: a paisagem que era coberta pela Mata Atlântica e, quando não, por pastagem, agora é dominada por plantações de eucaliptos.
Por conta do tipo de clima e solo, além da alta produtividade para uso industrial, hoje o eucalipto é a principal árvore cultivada para fins comerciais na Bahia. De acordo com a Associação Baiana das Empresas de Base Florestal (Abaf), o estado tem 585,6 mil hectares de áreas plantadas.
A transformação começou a acontecer no final dos anos 1980, no Extremo Sul do estado, visando transformar a região numa grande produtora de matéria prima florestal para produção de celulose.
Nessa mesma época, a primeira fábrica de celulose foi implantada em Muruci, município vizinho ao Espírito Santo, pela Bahia Sul Celulose, hoje denominada Suzano. No início da década de 90, foi implantada a Aracruz Celulose (hoje Fibria) e a Veracel.
O problema é que agora restam apenas 4% da cobertura original da Mata Atlântica preservada na Bahia. A mudança drástica de bioma, segundo os ambientalistas de várias ONGs que atuam na região, causa um cenário de seca, rios contaminados, esgotamento do solo e insegurança fundiária. Além disso, o som constante de motosserras e caminhões são uma preocupação adicional para muitas comunidades.
Mesmo depois de cruzar a divisa com Minas Gerais, as plantações de eucalipto continuam e até se intensificam. Não é para menos, Minas é hoje o maior produtor do Brasil e isso fica claro ao se olhar pela janela do carro. O movimento pesado de caminhões e os trens carregados de minérios passam, cada vez mais, a dividir o cenário com os eucaliptos à medida que o Vale do Rio Doce se aproxima. Começa a “estrada do aço”, ligando a região produtora de minério às indústrias pesadas no Rio de Janeiro e São Paulo.
Se quando Lula passou por ali ainda não existiam os eucaliptos, o transporte de minérios começava a ganhar força. No início dos anos 1950, no período do segundo governo Vargas (1951-1954), o Brasil atingia o auge da terceira fase de desenvolvimento industrial, quando os investimentos se voltaram para as chamadas indústrias de base, com um acentuado crescimento dos setores de transportes, energia e mineração. Nesse período surgiram a Petrobras, a Companhia Siderúrgica Nacional e a Companhia do Vale do Rio Doce. Todas estavam no caminho de Lula na sua primeira viagem e continuaram presentes na sua vida como operário, sindicalista e líder político.
Quando o ex-operário tomar posse pela terceira vez como presidente da República, encontrará um cenário de desindustrialização preocupante, bem diferente daquele de aceleração industrial da época que chegou menino em São Paulo e se tornou torneiro mecânico. De acordo com a Pesquisa Industrial Anual Empresa (PIA 2020), em dez anos, o setor industrial perdeu 9.579 empresas, ou 3,1% do total. Isso representou o fechamento de 1 milhão de postos de trabalho (-11,6% do total).
A casa onde Lula morou quando chegou em Itapema (como Vicente de Carvalho se chamava em 1952) continua de pé. Mas, setenta anos e algumas reformas depois, ela guarda apenas um pedaço da parede de madeira que por algum tempo abrigou os Silva. A pequena parte que remete ao tempo do antigo morador ilustre foi preservada graças à sensibilidade de Genelice Santos Ramor, dona Tite, mãe do atual proprietário. “Meu filho queria fazer tudo de alvenaria, mas eu não deixei. Isso aqui é peroba, cupim nenhum come. Era tudo lindo, aquelas portas antigas. Sempre digo que essa casa é muito abençoada”.
Em seu livro, Denise Paraná descreve assim a nova residência dos Silva: “E assim Lindu, Lula e seus irmãos passaram a morar numa velha casinha de madeira em Vicente de Carvalho, sem água encanada, poço próximo ou luz elétrica, mas muito além daquilo que imaginavam ter um dia na vida”.
Tite descobriu que Lula morou na casa que seus pais compraram “há muito tempo”, antes mesmo dele virar presidente. “Foi na época que ele era candidato. Depois que ele ganhou já veio até a reportagem da Globo aqui”. Lula mesmo nunca voltou. Nem lá nem na casa de outros parentes que ainda moram na rua Minas Gerais. “Eles não são tão agarrados”, fala baixinho, com a autoridade de vizinha.
Ter morado na mesma casa não é o único ponto em comum entre Tite e Lula. Como o presidente, ela também saiu do Nordeste em um pau de arara quando tinha quatro anos de idade. Tite veio com o avô e os pais de Sergipe, há 71 anos, chegando em Itapema um ano antes da família Silva. “Isso aqui era tudo bananal, eram poucas ruas”. Como tinha apenas quatro anos, ela lembra pouco da viagem, apenas que durou oito dias e que foi muito difícil. “Pena meus pais não estarem mais aqui. Eles iriam contar essa história maravilhosamente bem”.
Embora tenham compartilhado do mesmo teto em épocas diferentes, terem idades bem próximas (ela tem 75 e ele 77) e estudado no mesmo colégio, o Marcílio Dias, os dois nunca se encontraram. Não que ela se lembre. Mas se um dia eles se cruzarem, ela já sabe o que dizer. “Espero que não repita os erros do passado. O Brasil tem tudo para ser primeiro mundo”.
Uma questão importante!
Colocar em prática um projeto jornalístico ousado custa caro. Precisamos do apoio das nossas leitoras e leitores para realizar tudo que planejamos com um mínimo de tranquilidade. Doe para a Marco Zero. É muito fácil. Você pode acessar nossapágina de doaçãoou, se preferir, usar nossoPIX (CNPJ: 28.660.021/0001-52).
Apoie o jornalismo que está do seu lado.