DESCENTRALIZAÇÃO

O impacto da Geração Distribuída na justiça climática
A geração própria de energia traz segurança hídrica e, por consequência, alimentar para os moradores do Semiárido. Além disso, exemplos de uso na administração pública mostram como municípios e estados podem alcançar autonomia energética

Márcia Dementshuk

Eco Nordeste

Um pequeno conjunto de placas solares sobre o telhado de uma casa, outro na comunidade rural, um mini sistema fotovoltaico em escolas municipais ou um projeto mais complexo para suprir de energia elétrica a administração pública estadual: de unidade em unidade consumidora, a potência instalada de geração distribuída de energia elétrica no Brasil aumentou 125% de 2019 para 2020. De 2.2 GW, foi para 5 GW; mais de 96% são fornecidos pelo sol, por sistemas fotovoltaicos. A maior geração é no Sudeste com 2,8 GW instalados até novembro de 2021. O Sul e o Nordeste estão próximos com 1,58 e 1,46 GW, respectivamente. (ANEEL/Base de MMGD 04/11/2021).

Na geração de energia distribuída o consumidor produz sua própria energia elétrica a partir de fontes renováveis, fornece o excedente para a rede de distribuição de sua localidade e fica com créditos para serem usados depois. O modelo contribui com o atendimento à eletricidade no Brasil, com previsão de aumentar sua participação nos próximos anos.

Se o crescimento foi grande em 2020, ainda está longe do potencial que há nas cidades brasileiras, se houvesse painéis de energia solar nos telhados dos domicílios, uma das principais aplicações em geração distribuída. O estudo “Potencial dos Recursos Energéticos no Horizonte 2050” executado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), comprova que, se os telhados residenciais em condições fossem usados como micro usinas fotovoltaicas, “todos os estados teriam condições de suprir seu consumo elétrico residencial de forma integral”. O potencial de energia em todo o Brasil seria 2,3 vezes maior que o consumo, sem a necessidade de mudar a estrutura da edificação das casas.

O analista de Pesquisa Energética da EPE, Gabriel Konzen avalia que, mesmo com o crescimento do consumo, ainda haveria margem para o atendimento, pois, mesmo que o consumo aumente, também cresce o número de domicílios e, logo, de telhados para novas instalações fotovoltaicas.

No ano de 2020, a Micro e Minigeração Distribuída (MMGD) solar foi a fonte que mais teve inserção no Brasil, acima de qualquer outra fonte, incluindo plantas de geração de grande porte. Nos quatro cenários compostos para o Plano Decenal de Expansão de Energia 2031, considerando a manutenção das regras vigentes e as que estão em discussão, a projeção da capacidade instalada de MMGD para 2031 é entre 22,8 GW, a 41,6 GW.

Quem não quer reduzir a conta de energia em casa, na empresa, no trabalho rural? Esse é um dos insumos que mais pesam nas atividades do setor produtivo e, dependendo da situação, faz o empreendedor desistir. Normalmente, o custo para instalar um sistema fotovoltaico é recuperado com a economia na conta de luz. O retorno demora, em média, 4 anos. Os equipamentos não precisam de manutenção complicada e os itens mais caros funcionam bem por mais de duas décadas.

Em 2020, no Brasil, foram aplicados R$ 10,4 milhões em MMGD, 97% em energia solar (EPE/Painel de Dados). A maior motivação legal para os consumidores decidirem fazer esses investimentos foi a Resolução Normativa N° 482 da Aneel, que começou a vigorar em 2012. Possibilitou aos consumidores gerar sua própria energia e operar junto à distribuidora local. Mesmo que o sistema de energia solar seja individual, ele deve estar conectado ao sistema público de distribuição.

Ficou permitido gerar energia em um lugar e consumir em outro; ser dividido em várias residências, em condomínios; ou compartilhar, por meio de consórcios ou em cooperativas. O modelo de compensação de energia brasileiro é um dos mais favoráveis no mundo: quando há sol, a energia gerada entra na rede pública e o consumidor ganha créditos do excedente para usá-los quando não há sol. Os créditos podem ser consumidos num prazo de 60 meses.

Em 2015, a Aneel melhorou as informações e ajustou alguns procedimentos com a Resolução Nº 687 e, atualmente, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei N º 5829/2019 que estipula cobranças de taxas para os novos consumidores gradualmente. A proposta é que eles comecem a pagar por 15% dos custos associados à energia elétrica. Consumidores antigos, ou os que instalarem em até um ano depois da lei em vigor, ficarão isentos até 2045. Mesmo com todas as novas tributações, de acordo com especialistas, a aplicação de painéis solares garante reaproveitamento financeiro.

Márcia Dementshuk

Eco Nordeste

Painel da Geração Distribuída de Energia

ANEEL/Base de MMGD 03/12/2021

UTE = Usina termelétrica
UFV = Usina Fotovoltaica
EOL = Usina Eólica
CGH = Central Geradora Hidrelétrica

Brasil

  Potência Instalada (Kw) Municípios com GD Quantidade de GD
UTE 111.089,80 181 350
UFV 7.614.975,54 5.389 677.664
EOL 14.941,10 42 71
CGH 66.851,07 66 73

Nordeste

  Potência Instalada (Kw) Municípios com GD Quantidade de GD
UTE 9.877,50 8 13
UFV 1.482.890,85 1.717 123.885
EOL 14.721,06 18 18
CGH 230,00 1 1

Nordeste

  Potência Instalada (Kw) Municípios com GD Quantidade de GD
Alagoas 56.960,41 97 4.456
Bahia 275.606,13 409 28.069
Ceará 265.688,37 182 20.602
Maranhão 155,442,28 192 12,577
Paraíba 141,478,20 214 10.862
Pernambuco 229.633,98 183 17.043
Piauí 143.260,00 204 11.901
Rio Grande do Norte 169.398,78 164 14.593
Sergipe 45.422,70 72 3.782

Nordeste não devidamente compensado

Uma sequência semântica é desencadeada quase automaticamente ao se falar em “energias renováveis”: “mudanças climáticas”, “mitigação”, “adaptação”, “refugiados climáticos”. Numa perspectiva de aquecimento global, como seria viver no Semiárido brasileiro? Quantos dos mais de 22,5 milhões de moradores dessa região pensam nisso? (Número relativo ao antigo Censo de 2010, certamente aumentou).

Para o advogado Rafael César Coelho dos Santos, assessor Jurídico do Ministério Público de Contas, junto ao Tribunal de Contas dos Municípios do Estado de Goiás e integrante do Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental, o mesmo sol que faz o solo arder, pode ser um recurso potente para a mitigação da mudança climática e adaptação dos sertanejos às diferentes condições climáticas previstas pelos cientistas. “Por meio da geração descentralizada de energia as pessoas podem planejar a implantação de um sistema fotovoltaico para ter acesso à água e condições de se dedicar à atividade econômica, o que não acontece com o modelo centralizado, no qual operam as grandes usinas”, afirma.

Em recente artigo publicado na Revista de Direito Ambiental (Revista dos Tribunais, 103), Rafael Coelho esclarece que, apesar de sediarem as maiores usinas de energia fotovoltaica e eólica do Brasil e até da América Latina, os estados nordestinos, produtores, não recebem o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), prejudicando as suas receitas públicas. Ou, se recebem, é uma parcela muito pequena, com relação ao montante gerado. Isso acontece porque, de acordo com a Constituição Federal, o imposto é cobrado no lugar onde a energia é consumida. Como a demanda nos estados do Nordeste é menor, comparada a estados do Centro-Sul, a maior parte da produção é destinada para comercialização interestadual.

Os estados também não recebem royalties, ou qualquer compensação financeira pela geração de energia, como nos estados com hidrelétricas e produtores de petróleo. Uma desvantagem também causada pela desatualização na Constituição Federal.

Esse estudo contou com informações sobre o valor das operações interestaduais feitas pelas usinas operando no Rio Grande do Norte, obtidas pelo deputado estadual do RN, George Soares. A pedido da Frente Parlamentar de Apoio às Energias Renováveis, a Secretaria de Tributação do Rio Grande do Norte calculou possíveis perdas de ICMS, nesse caso. Os valores são crescentes: de R$ 118 mil em 2013, saltou para R$ 8 milhões em 2015. “Imagine hoje, com o aumento de parques que entraram em operação!”, levanta Rafael Coelho.

Mas, se grandes empreendimentos contam com altos investimentos, o custo de um conjunto fotovoltaico é inacessível para moradores de estados nordestinos cujo IDHM é inferior à média nacional. Por isso, instituições internacionais em parceria com organizações da sociedade civil e Estados têm atendido uma fração pequena dessa carência, mas o suficiente para mostrar resultados consideráveis.

A falta de chuva impacta diretamente a geração de energia | Foto: Maristela Crispim / Eco Nordeste

Barragem Boa Vista enche e moradores precisam trazer a bomba para a margem

Ter água não basta.
É preciso energia para consumir

Se não fosse pela energia elétrica gerada por placas fotovoltaicas, de forma autônoma, as 33 famílias da Vila Rural Irapuá I, em São José de Piranhas, no Sertão da Paraíba, não teriam água suficiente para plantar e amenizar a sede dos animais, mesmo que a vila esteja a 6 km da barragem Boa Vista, abastecida pelas águas do Rio São Francisco. E ainda, por ironia, a vila ter sido construída pelo Projeto de Integração do Rio São Francisco, a transposição, para acomodar agricultores que teriam as terras submersas com a chegada das águas.

A história dessa vila mostra que ter água não basta, a não ser que os moradores atuais carregassem baldes na cabeça ou em lombo de jegue por 12 km, seis de ida, com baldes vazios e seis de volta, cheios, como seus antepassados faziam no século passado. Não é o tipo de conformismo ao qual se rendem os descendentes que seguem na terra onde nasceram, enfrentando períodos prolongados de seca.

A tecnologia avança e apresenta soluções. A transposição é uma delas. No Eixo Norte, a água é captada em Pernambuco, percorre cerca de 250 km em canais artificiais, vencendo a gravidade de relevos mais altos graças a enormes estações de bombeamento. Finalmente, na última semana de outubro de 2021 os moradores próximos à barragem Boa Vista se apressaram para testemunhar a força da vazão com que o Rio São Francisco deságua no sertão da Paraíba.

Mas, na Vila Produtiva Rural Irapuá I, a água potável não vem da transposição. Sai nas torneiras das casas por causa do sol. A comunidade conta com um conjunto de placas fotovoltaicas que gera energia para alimentar a bomba hidráulica que puxa a água de um poço até as caixas d’água. Se os moradores tivessem que pagar o custo total dessa energia, teriam bem menos água à disposição. Quem conta essa história é Francisco de Assis Alves de Lima, atual presidente da Associação do Desenvolvimento Comunitário dos Moradores da Vila Produtiva Rural Irapuá I, e Damião Fernandes, o presidente anterior.

As famílias se mudaram para a Vila em 2016, as obras da transposição estavam em andamento e o Ministério da Integração, à época, providenciava o abastecimento de água por caminhão-pipa. Cada família tinha direito a menos de mil litros por dia, pouco até para o consumo humano. A Companhia Estadual de Água e Esgotos da Paraíba (Cagepa) foi contactada, mas alegou que o serviço de abastecimento não poderia ser feito porque a localidade tinha poucos moradores (eram 31 domicílios).

Em 2017 o Ministério executou uma solução ao instalar uma bomba para captar água da barragem Boa Vista e levar até a vila. Montou uma pequena estação de tratamento na Vila, pois a água da barragem não tinha condições para consumo humano. Mas o custo dos insumos e a energia elétrica eram inviáveis para as famílias. Unidos, os moradores decidiram perfurar um poço artesiano e, por sorte, havia água boa no subsolo. Mas a energia para deixar a bomba funcionando ainda era um entrave.

“Já estávamos em 2018. Nessa época o Cersa fez uma visita e apresentou soluções em energia solar”, conta Damião. O Cersa é o Comitê de Energia Renovável do Semiárido, do qual várias organizações participam e em sete anos de atuação já implantaram dezenas de sistemas fotoviltaicos, por meio de doações . “Eles não sabiam do nosso problema. Eu conversei com o César (Nóbrega, coordenador) e ele falou em parcerias e em fazermos um projeto. Em dezembro de 2018 o sistema estava instalado, com 10 placas”, conclui.

As placas foram doadas por instituições parceiras do Cersa, dentre elas o Misereor, obra episcopal da Igreja Católica da Alemanha. No início, supria totalmente o abastecimento para a Vila. Mas, com água e energia, as famílias aumentaram as plantações, o número de animais e o consumo. Atualmente, a economia na energia é em torno de 40%. “Estamos conversando com os moradores para aumentar o número de placas, mas o preço é alto”, destaca Assis, revelando outro problema: “precisaremos de um transformador na linha de transmissão. Já fizemos o requerimento e estamos aguardando o atendimento”.

O saldo computável nessa história é social: segurança hídrica e, consequentemente, alimentar.

A falta de chuva impacta diretamente a geração de energia | Foto: Maristela Crispim / Eco Nordeste

Assentamento Novo Horizonte – Várzea

Antônio do Mamão não “se alugou”

Antônio do Mamão e outros agricultores do Assentamento Novo Horizonte, em Várzea (PB), ouviram com atenção as explicações de César Nóbrega e dos colegas, integrantes do Cersa, sobre a energia solar. Era 2019.

Os assentados saíram desconfiados sobre o funcionamento da tecnologia. Mas, para Antônio do Mamão, era tudo ou nada. “No meio da reunião, eu disse que estava quase pra parar de plantar por causa do custo da energia”, contou Antônio Marcos Araújo Hermínio, que deixaria de ser “do Mamão” para se tornar “alugado”, o trabalhador sertanejo que recebe por dia de serviço. Ele pagava R$ 285 por mês para ter energia em casa e na bomba hidráulica, para puxar água do poço e encher a caixa. Ligava, no máximo, por duas horas por dia, para não gastar.

A falta de chuva impacta diretamente a geração de energia | Foto: Maristela Crispim / Eco Nordeste

Antônio do Mamão – Assentamento Novo Horizonte – Várzea

Antônio encarou o desconhecido, aprendeu sobre placas fotovoltaicas, conversor de energia, rede elétrica e, com auxílio do Cersa, teve o projeto para uma micro usina aprovado pelos parceiros do Comitê. No fim de 2019 foi contemplado com um sistema de seis placas. Hoje, ele pode deixar a bomba o dia inteiro ligada, se quiser, e a conta de energia não é mais do que R$ 21. “Mês passado, um vizinho, que tem um poço, seu Heleno, ligou a bomba todos os dias. Resultado: R$ 499. Já ‘pensasse’?”

Os vizinhos do assentamento, com 28 famílias, estão retomando a ideia da cooperativa de geração distribuída rural. Um grupo de 10 pessoas já está fechado. Irão financiar os equipamentos e contarão com o apoio do Cersa para a instalação.

O Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida) também financia projetos de micro e minigeração de energia. Por meio do Projeto Semear, em parceria com os governos estaduais, o Fida realiza estudos e incentiva a atividade rural e empreendedora no Semiárido como vetores para o desenvolvimento regional.

Bom negócio para cooperativas

No Semiárido paraibano, seis cooperativas que congregam agricultores familiares, criadores de animais e artesãos tiveram projetos aprovados para instalação de miniusinas. O valor total investido foi de R$ 1,9 milhão. Em menos de dois anos, houve o retorno médio de 44% desse investimento, em economia de energia, em três das cooperativas. Os empreendimentos ganharam fôlego financeiro para investir e crescer.

Em meados de 2018, a Cooperativa Produtora de Laticínios no Cariri Paraibano (Capribom) estava em crise financeira. Contratou uma consultoria que constatou o gargalo: consumo de energia. “Pagávamos entre R$ 13 mil e R$ 14 mil de energia por mês. Tentávamos economizar, colocamos um gerador a diesel, tentamos soluções como comprar a demanda de energia por meio de contratos com a empresa de energia para termos horários com valores menores, mas a conta altíssima sempre comprometia a receita”, contou Francisco Rubens Remígio, o seu Rubinho, técnico responsável e gerente de negócios da Capribom.

O projeto da micro usina foi executado em 2019. Naquele período, a conta de energia caiu para R$ 1 mil mensais. “Decidimos empregar essa economia em coisas que dariam rentabilidade para Cooperativa: compramos um caminhão refrigerado.” Foi assim que a Capribom teve fôlego para atravessar o 2020 de pandemia e em 2021 fechou novos contratos para fornecer os produtos.

“É importante encontrar soluções sustentáveis para que eles (produtores no Semiárido) possam usar as tecnologias de transformação e, dessa maneira, realizar a inserção na economia”, analisa Claus Reiner, diretor do Fida para o Brasil.

Resiliência Climática em Comunidades Rurais do Nordeste

Em 2022, chegará a quatro estados do Semiárido o Projeto Semeando Resiliência Climática em Comunidades Rurais do Nordeste. É uma proposta do Fida junto ao Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES) e o Ministério da Economia, para a captação de investimentos com recursos do Green Climate Fund (GCF)/ONU, além da contrapartida dos governos estaduais, que pode chegar a um total de US$ 202,5 milhões.

O Projeto propõe transformar os sistemas produtivos dos agricultores familiares para melhorar sua capacidade para enfrentar os desafios contínuos das mudanças climáticas. “Devemos apoiar 250 mil famílias. Dentro desse projeto planejamos sistemas de biodigestores, de painéis solares, entre outros. É uma resposta à demanda atual dessas pequenas associações e cooperativas”, explica Reiner.

Gabriel Konzen, analista de Pesquisa Energética da EPE, ressalta que há linhas de financiamento subsidiadas e isenção de impostos sobre equipamentos e sobre a geração que oferecem incentivo para a Geração Distribuída no Brasil. O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) “oferece taxas de financiamento subsidiadas para essa classe de consumidores, permitindo financiar sistemas de energia renovável”. Linhas com taxas na faixa de 3% ao ano., com até 10 anos para pagar, com 5 anos de carência.

O Banco do Nordeste (BNB) oferece o FNE Sol, “uma linha de crédito para o financiamento de sistemas de micro e minigeração distribuída de energia por fontes renováveis, direcionadas às empresas, produtores rurais ou pessoas físicas. No site renovasemiarido.insa.gov.br há um levantamento sobre outras possibilidades de financiamento.

A falta de chuva impacta diretamente a geração de energia | Foto: Maristela Crispim / Eco Nordeste
Viviane Moura – superintendente de Parcerias e Concessões do Piauí

Oportunidade na gestão pública

Com o emprego da lógica da geração distribuída, no Estado do Piauí emerge uma solução para suprir a demanda de energia elétrica da administração pública, reduzir despesas e garantir o insumo para novos projetos estratégicos de desenvolvimento.

O plano é construir oito mini usinas de energia solar fotovoltaica com geração de 5 MW em cada uma, e está em andamento por meio de Parceria Público Privada (PPP). “Observando o cenário a partir dos fatos gerados pelo governo federal, desenvolvemos um projeto para que o próprio governo estadual se beneficie dessa fonte de energia, desse insumo, que temos de forma natural”, revela a superintendente de Parcerias e Concessões, Viviane Moura.

É o Plano de Desenvolvimento do Estado do Piauí, com base na geração de energia elétrica a partir de fontes renováveis. O setor privado entra com o capital para a construção das usinas, tem a função de operá-las e mantê-las e fazer a gestão do crédito. A primeira licitação para a seleção das concessionárias foi realizada em meio à pandemia, em 2020. Os consórcios Energia Sustentável, Energia Sustentável do Piauí e o GM-Energia serão os responsáveis pelo empreendimento. A previsão de investimentos é de mais de R$ 150 milhões.

Ao invés de pagar à distribuidora, o Estado pagará o serviço à concessionária da PPP e estabelece um regime de colaboração onde o privado ajuda com aporte de recurso financeiro para prover infraestrutura e entregar serviços.

De acordo com Viviane Moura, a economia total para o Estado do Piauí será cerca de 23%. Atualmente, o Estado consome, em média, 58 milhões de KW por ano e paga uma média de R$ 46 milhões. As usinas produzirão, em média, 62,4 milhões de KW por ano e o Estado pagará R$ 36 milhões pela energia, além de acumular 4 milhões de KW, que serão usados em projetos do governo. “E teremos uma estabilidade nos valores que serão pagos pela energia, pois estão acordados em contratos de até 30 anos”, ressalta Viviane.

O projeto tem um potencial de gerar créditos de carbono no valor de quase R$ 1 bilhão, em 30 anos. Estudos já foram feitos em duas unidades a serem construídas nos municípios Altos e Campo Maior. Somando a capacidade das duas, o executivo estadual deixará de emitir 12 mil toneladas de gases tóxicos ao ano.

“A percepção da população com relação ao que está sendo construído ainda não é muito clara; primeiro, porque a micro e minigeração ainda não são comuns no Estado, a população ainda não domina o assunto. É um desafio explicar o que significa esse projeto, do ponto de vista de gerar economia e liberar recursos do governo para utilizar em outros projetos. O que está mais claro para as pessoas é a oportunidade de emprego e de qualificação”, informa Viviane Moura. Estão previstos cerca de 640 empregos durante a construção das miniusinas.

A PPP está implantando, em conjunto com a Universidade Estadual do Piauí (Uespi), o Núcleo de Formação e Pesquisa em Energias Renováveis do Piauí, um espaço de pesquisa, formação técnica e de transformação educacional. O núcleo será estruturado com laboratórios práticos na área de energia e em telecomunicações, práticas em redes e fibra óptica, por exemplo.

Esse modelo de negócio, na avaliação do advogado Rafael Coelho, coloca os estados como participantes do mercado descentralizado de energia e fortalece a atividade. “Pode mudar a forma como a oportunidade da geração própria é percebida pela sociedade.”

“Os estados da região Nordeste não têm, até hoje, se beneficiado de maneira a receber receita tributária das grandes usinas de produção de energias renováveis. Com esse tipo de iniciativa, eles podem reduzir despesa e ter o insumo para projetos. O caminho é esse”, anima-se.

O estudo sobre o recolhimento de impostos pelos estados da geração de energia, feito por Rafael Coelho e citado na parte inicial desta reportagem, aplica-se também ao Piauí. No Sul desse estado, em São Gonçalo do Gurguéia, está a usina solar que gera o maior potencial de energia da América Latina. A capacidade total desse complexo formado por três seções será mais de 2,2 TWh por ano. (1 tera watts é igual a 1.000 giga). Contudo, mesmo tendo empregado trabalhadores durante a construção, esses trabalhadores não são mais necessários quando as operações iniciam. E os impostos, como explicou Rafael, serão recolhidos pelo estado que consumirá essa energia.

Órgãos públicos no Brasil estão empregando a geração de energia da forma descentralizada, como o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), na Paraíba, onde foi implantado, em 2017, um sistema que atende às quatro unidades no Estado. O Banco do Brasil inaugurou, em 2020, sua primeira miniusina de energia solar na modalidade de geração distribuída, em Minas Gerais. A miniusina vai garantir o fornecimento de energia renovável para 100 agências do BB no Estado mineiro e o Banco apresentou um plano para replicar o projeto em outros estados.

No Nordeste, na esfera municipal, a prefeitura de São Bento, a cidade das redes, na Paraíba, implantou o sistema fotovoltaico para atender as 25 escolas municipais, onde estudam cerca de 10 mil alunos. O formato de investimento foi diferente, os recursos foram do município, R$ 2 milhões. As placas foram colocadas nos telhados de oito escolas. A estimativa de economia em 10 anos será de R$ 10 milhões, com as escolas funcionando presencialmente. Todas as salas de aulas das escolas têm ar-condicionado. “Agora, partimos para o plano de cobrir 100% do serviço público com energia solar, até 2024”, anuncia o prefeito, Jarques Lúcio da Silva II. O gestor aplica projetos pela redução de papel, reaproveitamento de água e outras ações sustentáveis.

O professor Walmeran Trindade, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB), defende a gestão energética municipal como política pública. “De início, a geração energética municipal se volta para as unidades consumidoras da estrutura administrativa e de serviços da prefeitura (escolas, postos de saúde, iluminação pública, saneamento e administração). Depois, e com o aprendizado deste exercício, se volta para os diversos segmentos da sociedade (residencial, comercial, industrial e rural) para estimular a adoção de práticas da eficiência energética e da geração de eletricidade por meio de fontes renováveis de energia”, explica.

Vila Irapuá I – sistema solar e caixas d’água abastecem a vila

Justiça climática: “o buraco é mais embaixo”

Justiça climática. Essa expressão teve ampla referência na COP26, nos discursos de quem se importa com vidas no Planeta, não só vegetal ou animal, mas principalmente humana. Na abertura, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, se dirigiu aos líderes de quase 200 nações alertando que “devemos fazer mais para proteger comunidades vulneráveis dos claros e atuais perigos das mudanças climáticas”.

As histórias contadas por Damião e Assis, na Vila Irapuá I; pelo prefeito Jarques, de São Bento; por seu Rubinho, da Capribom; ou Antônio do Mamão, do assentamento Nova Horizonte, mostram o que significa o apelo por “fazer mais”, de Guterres.

E energia é um insumo fundamental para produzir e gerar desenvolvimento. A professora Dra. Ricélia Marinho Sales, da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), salienta que a crise energética não vem sozinha, tem uma relação forte com a segurança alimentar, hídrica, da propriedade da terra, e os caminhos para as soluções precisam estar equilibrados, inclusive em escala nacional.

No Brasil, a maior parte da matriz elétrica é de base hídrica, renovável, portanto, a implantação de grandes usinas eólicas e fotovoltaicas, no modelo centralizado de distribuição, vai ampliar a oferta de energia elétrica nacional gerada por recursos renováveis, diversificando a fonte. Isso é positivo na lógica da economia verde, mas não adianta ser renovável se o modelo de implantação é feito com destruição do ambiente natural, gerando CO2 indiretamente, ou sem justiça socioambiental, causando impactos sociais e sendo agente de empobrecimento das comunidades.

Estudos publicados por pesquisadores de universidades dos estados nordestinos onde essas usinas já operam demonstram isso. “O Semiárido é estratégico na geração de energia renovável, mas ele não pode estar no planejamento de ocupação das empresas como se no território tivesse um grande vazio, sem pessoas, sem bioma, sem cultura, com problemas estruturantes que estão na raiz de todo o processo de institucionalização do próprio País”, reflete Ricélia.

A pesquisadora cita a execução de projetos de geração de energia eólica puramente econômicos que jamais consideraram mudar a situação de vulnerabilidades sociais do Semiárido, “excluem as pessoas que cedem lugar a um processo de crescimento econômico em nome da diversificação da matriz e de tentar resolver uma crise energética”.

Nessa perspectiva, a justiça climática passa pela geração distribuída de energia, uma política que possibilita a apropriação e o emprego do conhecimento e da técnica para viabilizar, em última análise, a sobrevivência.

Ricélia também integra o Cersa e, na companhia do coordenador, César Nóbrega, visita comunidades rurais na Paraíba como fonte para as pesquisas que desenvolve sobre os impactos socioambientais das usinas de energias renováveis.

“Nós vimos que as energias renováveis, fora do modelo centralizado, oferecem mais condição de gerar emprego e renda e de trazer soluções para famílias que não tinham um conhecimento técnico apropriado”.

Por outro lado, quando políticas públicas são implementadas sem acompanhamento ou capacitação, terminam não dando certo. “Como entregar painéis solares para agricultores familiares usarem na irrigação. Muitos não conseguiram manter o painel funcionando e quando compreendemos as razões vimos que faltou manutenção, o que seria, simplesmente, a limpeza das placas”.

Outra experiência se dá na busca pelo diálogo com as comunidades sobre as energias renováveis e sobre modelos que, de fato, trariam um desenvolvimento territorial, com inclusão, que possibilitasse uma transição energética justa, solidária e participativa.

“As primeiras pessoas a entenderem isso foram as mulheres. A partir delas encontramos condições de maior abertura para dialogar sobre novos modelos na implementação de equipamentos. Elas passam a liderar o processo de transição dentro de grupos comunitários”, destaca Ricélia.

A transição energética e a Economia Verde

“Sobre ‘modificar a matriz energética’, o discurso governamental é elaborado para convencer que a nossa é a mais limpa do mundo. Não é verdade”, esclarece o professor Heitor Scalambrini Costa, professor, aposentado pela Universidade Federal de Pernambuco (FPE). A confusão se dá no emprego dos termos “elétrico” e “energético”. “Por ‘matriz elétrica’ se entende o conjunto de fontes exclusivas para a geração de energia elétrica. A ‘matriz energética’ é o conjunto de fontes de energia para movimentar os carros, acender um fogão e, também, gerar eletricidade”.

Nesse sentido, a energia mais usada no Brasil, em 2020, veio do petróleo e derivados, 33,1% (EPE – Balanço Energético Nacional 2021/2020). Somando o gás natural (11,23%), o carvão mineral (4,9%), o urânio (1,3%) e outras fontes não renováveis (0,6%), 51,6% da energia que os brasileiros usaram em 2020 veio de fontes não renováveis. O setor de transportes é o que mais consumiu combustíveis fósseis e, de longe, foi o que mais emitiu CO2 em 2020, associado à matriz energética: 179,8 milhões de toneladas de CO2 equivalente.

“O conhecimento sobre energia não deveria ficar limitado aos doutores. A população tem que se apropriar dessa temática. As escolhas dos técnicos e engenheiros, as decisões dos políticos, vão impactar na população”, alerta Scalambrini.

Portanto, quando se fala em transição energética a discussão se amplia; trata-se da alteração de um modelo de sociedade estruturado no uso do petróleo e derivados.

A questão é definir qual o modelo adequado para que aconteça induzindo um processo de inclusão das pessoas, “tanto da juventude quanto das mulheres, para buscar uma qualificação de maneira que fiquem capacitados a lutarem por postos de trabalho de qualidade técnica”, argumenta a professora Ricélia Sales.

“Se o recurso natural está na terra onde a pessoa vive, e se ela pode se apropriar do processo de trabalho, isso trará um impacto social significativo. A transição energética tem que ser democratizada. É assim que os moradores no Semiárido brasileiro estarão preparados para enfrentar os efeitos das mudanças climáticas e postos de trabalho serão preservados no campo, sem que haja a expulsão dessas pessoas para as cidades e ainda garantindo o alimento que virá para a nossa mesa”. Medidas, essas, que promovem “exclusão”: “exclusão” de pessoas das listas de refugiados climáticos.

Heitor Scalambrini complementa: “Temos um modelo econômico, socioambiental que privilegia o consumismo. É difícil modificar a produção dos bens materiais e a forma como são consumidos sem modificar os hábitos da chamada vida moderna”.

“É necessária uma mudança do sistema político-econômico, da motivação e atitudes dos governantes e, especialmente, da população. A mudança só vai ocorrer com a pressão popular. Mas o povo não vai pensar no clima se ele não tem comida para a próxima refeição. As questões são complexas e estão interligadas”.

“É até uma questão filosófica, de vida: almejamos o que e como para a humanidade? Qual nossa visão do mundo atual e do que virá? A transição deve ser ampla. Teríamos que partir para um ecossocialismo, ter preocupações ecológicas e sociais, concomitantemente, mudar o estilo de vida, de governança”.

Esta reportagem encerra a série Energias no Nordeste, que também trata da Crise Energética e das energias Nuclear, Eólica, Solar, Biomassa, Hidrogênio Verde. Muita informação para você entender os caminhos mais seguros para a garantia da segurança energética com menores impactos para o meio ambiente e as pessoas. Não deixem de acompanhar!