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Seja tentando apontar no mapa quais são e onde estão os países latino-americanos mais ao norte, seja na ausência de notícias nos jornais brasileiros ou mesmo no desconhecimento sobre a história recente e antiga, fica evidente o pouco que o brasileiro sabe sobre a América Central.
A dificuldade de esboçar imagem nítida sobre a região é um desafio para aproximar e fortalecer lutas que acontecem em contextos similares, por exemplo, em El Salvador e no Brasil. O pequeno país voltado para o Oceano Pacífico é quase do tamanho do estado de Alagoas. Se não dá para comparar os tamanhos, no entanto, os dois países guardam semelhanças no campo da luta por uma comunicação democrática, mais diversa e com garantia de pluralidade.
Espremidos entre a América do Sul, no caminho para o México, os países centro-americanos acabam formando um importante corredor para migrantes e, por isso, sofrem consequências e repercussões diretas das decisões políticas de migração dos Estados Unidos. Nos noticiários salvadorenhos, são comuns referências diretas às mais recentes declarações de Trump ou aos debates sobre como as políticas estadunidenses são sentidas no pequeno país.
Para parte da população brasileira, as conexões e características que esses países compartilham são desconhecidos. A Nicarágua chegou aos jornais brasileiros mais recentemente depois das manifestações contra o governo, quando jornalistas foram perseguidos e agredidos na cobertura dos eventos que tomaram as ruas. De El Salvador, os ecos que chegam ao Brasil, por exemplo, apenas abordam os números assustadores da violência urbana – o que ajuda a criar a ideia de um país assolado por violência. A invisibilidade dos territórios e contexto centro-americano, por exemplo, resulta na generalização de “latinos” aplicada sem distinção a diversas nacionalidades.
O projeto Intercâmbios Latinos – Jornalismo e Direitos Humanos, iniciativa construída pelo Coletivo Papo Reto, e pelo projeto Aurora Notícias sobre Direitos Humanos na América Latina, levou um grupo de jornalistas brasileiros, do qual participei como integrante da Marco Zero Conteúdo, para conhecer a realidade de El Salvador e, de lá, pude observar o panorama da comunicação comunitária centroamericana.
Oscar Peréz, da Fundación Comunicandonos, organização que defende e promove a democratização da comunicação na região nos apresentou o contexto da luta pelo direito à comunicação na América Central, mas não só. A garantia da liberdade de expressão, segurança de comunicadores e concentração dos meios de comunicação fazem parte do dia a dia do trabalho feito pela fundação.
O conceito de direito à comunicação está diretamente relacionado a outros três: o direito ao acesso à informação, à liberdade de expressão e o direito de ter seus próprios meios. A partir dessa visão, Oscar faz um diagnóstico preocupante sobre a América Central. Com pouquíssima legislação para radiodifusão comunitária, falta de recursos e desafio da sustentabilidade, os oligopólios midiáticos e a perseguição a comunicadores e jornalistas fazem parte dos desafios do movimento na região centro-americana. “Na América Central, não existe um sistema de mídia diverso e plural, mas sim um esforço por parte da radiodifusão comunitária para poder mudar esse sistema”, afirma Oscar.
Em El Salvador, não existem rádios e TVs públicas. Há uma televisão e uma rádio estatal. Os demais 95% veículos são comerciais. A radiodifusão e comunicação comunitária são ainda hoje focos de resistência aos oligopólios midiáticos da região e representam importantes fontes de informação, independente e alternativa, principalmente longe dos grandes centros urbanos. “Existem zonas geográficas que estão bem conectadas, mas há outras impressionantemente desconectadas. Aí a rádio tem um papel importante porque alguns acreditam que a rádio já não tem sentido”, defende.
A América Central é apontada como a região que menos reconhece legalmente as rádios comunitárias, de acordo com Informe de Meios Comunitários e Liberdade de Expressão (2017), do Observatório Latinoamericano de Regulação, Meios e Convergência. Mesmo nesse cenário, nos últimos anos houve um aumento significativo de rádios comunitárias na região como um todo, afirma Oscar, que é também coordenador para América Latina e Caribe da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc).
El Salvador é o único país que reconhece, por lei, a radiodifusão comunitária. O país tem ao menos 25 rádios comunitárias. Ainda assim, o movimento tem críticas ao conceito amplo que foi adotado na lei e que abre margem desviar o que acreditam ser a função da comunicação comunitária. “É tão amplo que qualquer igreja que tem uma fundação pode solicitar uma rádio comunitária. Qualquer empresa que tem fundação também pode solicitar”, explica. Para ele, uma emissora comunitária tem raízes na comunidade, podendo contribuir para a garantia de direitos e desenvolvimento local, e não significa que tem que ter pouco alcance ou potência.
De acordo com a Amarc, na Guatemala, onde a radiodifusão comunitária é criminalizada, com registro até de casos de prisão de trabalhadores, existem mais de 400 rádios comunitárias. Honduras e Nicarágua têm cerca de 40 emissoras comunitárias cada um. Já no Panamá não existe uma estimativa, mas a entidade tem fortalecido a construção de rádios indígenas.
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O poder da comunicação comunitária e abismo digital
A sobrevivência na transição para a digitalização é uma outra preocupação para o movimento. Diante do avanço do consumo de informação pela internet, emissoras começam a ensaiar a digitalização, mas esbarram nos desafios de modelo, formato e acesso à internet. Em El Salvador, a internet é cara e o acesso não passa de 16%. Segundo Pérez, o acesso nas casas ainda é pequeno, sendo o celular o principal dispositivo, o que também muda a experiência de consumir informação.
“Ainda existe um abismo digital, que não permite que toda a população tenha acesso à informação via a internet. Mas isso vem mudando rapidamente, em particular com a juventude. Existe de fato uma necessidade real de transitar de um pensamento mais analógico para um digital, a partir das rádios”, conta Oscar em entrevista publicada na Aurora Notícias.
Na estrada, duas ou três horas podem nos levar facilmente aos outros países que fazem fronteira com El Salvador – Guatemala, Nicarágua e Honduras. A paisagem ora montanhosa e seca também tem espaço para uma vegetação vibrante e verde, respondendo à época das chuvas.
Em apenas um dia, Oscar pôde apresentar um retrato da experiência das rádios comunitárias no território salvadorenho que ajudar a mudar, também, o contexto do desenvolvimento local onde estão inseridas. A Rádio Guazapa e a Rádio TV IzCanal, respectivamente com 18 e 26 anos de existência, são tanto duas experiências comunitárias de sucesso, quanto exemplos da materialização do direito à comunicação.
RÁDIO GUAZAPA
Com uma programação diária das 5h às 21h, a Rádio Guazapa, localizada no município de mesmo nome, ganha na audiência para outras rádios comerciais. O segredo do sucesso talvez se explique pelo fato de serem os moradores também apresentadores ou pelos projetos de educação digital que a rádio promove com escolas locais ou, quem sabe, por estar sempre de portas abertas.
A pequena cidade na área rural encontrou na rádio comunitária a chance de se organizar em torno da luta por direitos. Oscar, um dos fundadores, nos mostra no caminho o ponto onde sua mãe vende as tradicionais pupusas (tortilha com recheio salgado), a escola primária local e a praça onde parte da população se reúne no fim dos dias. A rádio é outro ponto de encontro. Por isso, é comum ouvir reclamações da população sobre serviços públicos, divulgação de projetos, além de debates sobre temas de interesse local, sempre com a voz da comunidade presente. A preocupação em pautar e trabalhar temas como os direitos humanos, defesa do meio ambiente e violência contra mulher são constantes para a diretora da rádio, Finnela García.
Atualmente, o principal desafio é a modernização dos equipamentos e da sede, que conta com voluntários para manutenção da estrutura, além da apresentação e produção dos programas. “A rádio pertence a toda a comunidade. O microfone está sempre aberto para que os moradores da região possam se expressar, o que não é possível numa rádio comercial. Estamos trabalhando para modernizar a rádio com o uso das novas tecnologias, queremos nos tornar uma referência em comunicação comunitária”, conta García.
RÁDIO E TV IZCANAL
A fundação da IzCanal, em 1993, se confunde com a história de resistência, organização e luta de Nuevo Galcho, uma comunidade de cerca de 200 famílias que fugiu da guerra civil e viveu por dez anos em um acampamento de refugiados, mas preservou a unidade, costumes e desejo de retornar ao local de origem. A rádio nasceu um ano depois do Acordo de Paz que pôs fim do conflito armado. Hoje, localizada em Nueva Gravada, um dos municípios mais pobres de El Salvador, a rádio que foi um sonho ainda na época do acampamento é um espaço de formação política e apoio ao desenvolvimento da região.
A rádio a Izcanal transmite para 100 municípios, espalhados em quatro regiões do pais, com uma audiência estimada em cerca de 500 mil pessoas. A televisão (desde 2005), transmitida via TV a cabo até 2017, atualmente pega apenas pela internet.
Rosa Hilda Rivas, uma das coordenadoras da emissora, conheceu a fundação quando era criança e não esconde a paixão pelo potencial que a comunicação comunitária tem para a transformação da realidade. Ao contrário do que pode se pensar, a experiência da IzCanal mostra que as pessoas participam e se envolvem mais quando os temas debatidos na rádio ou na televisão são políticos, mas apresentados com as conexões com a comunidade, por exemplo, como um projeto de lei nacional pode afetar a vida das pessoas. “Temos claro que em El Salvador os meios de comunicação estão na mão de poucos. Nosso objetivo e maior desafio é fazer uma comunicação para o desenvolvimento. Buscamos regionalizar os temas ou tratar de forma que não confunda as pessoas, mas que provoque outras perguntas”, explica Rosa.
Para ela, o contexto de criação da emissora é um fato importante para o sucesso da experiência (mais de duas décadas no ar). “Não somos um produto acabado enquanto existir desigualdades sociais e na comunicação. E é mais difícil estabelecer um veículo de comunicação quando a comunidade não é previamente organizada. Quando existe essa centelha a rádio se torna um aliado importante”, conta.
Atualmente, os coordenadores, 15 funcionários e 10 voluntários preservam e atualizam os projetos sem perder de vista os princípios que orientaram a fundação da emissora: os direitos humanos, a defesa do meio ambiente e a luta pela democratização da comunicação como assuntos transversais. A partir disso, a emissora se tornou uma escola informal de direitos e comunicação, realizando oficinas para estudantes do município e formação de lideranças locais. “As pessoas aprenderam a ver os veículos comunitários como aliados, mais do que só um espaço de informação”, comemora Rosa.
Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.