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Foto: Raul Kawamura
Uma cidade cara, violenta e hostil não se constrói da noite pro dia, ou em apenas uma gestão. O atual momento de degradação por que passa Recife é, em grande parte, resultado da omissão de várias gestões municipais na regulamentação de seu último Plano Diretor, que foi concluído há quase dez anos. Em 2018, se completa uma década da elaboração do documento e por exigência constitucional ele precisa ser revisto – com ampla participação popular.
Esse processo já foi iniciado, mas de acordo com diversas entidades da sociedade civil organizada, está sendo feito de forma enviesada – sem transparência e sem participação popular. Em função disso, diversas entidades assinaram uma carta reivindicando mudanças na revisão do Plano Diretor. A carta foi lida nessa terça-feira (19) durante sessão do Conselho da Cidade não por acaso. As entidades reivindicam também que o Conselho seja reconhecido como a instância mais legítima para a coordenação do processo – trabalho que até agora está sendo capitaneado por uma empresa privada.
O grupo, cuja carta está reproduzida abaixo, reivindica ainda a suspensão de todas as ações da gestão municipal que antecipem debates sobre o Plano Diretor relacionados a áreas de interesse privado e que resgate os planos setoriais recentemente elaborados.
Entretanto, a mais difícil das reivindicações esbarra nas limitações do modelo de gestão que se consolidou nos últimos 10 anos na capital pernambucana – na forma de uma promíscua relação entre os partidos políticos e o capital imobiliário. A carta lembra que essa é uma oportunidade para corrigir os erros e omissões passados e que a cidade não pode ser vista apenas como um lugar que serve à maximização dos lucros.
Com a mesma fedentina do dia anterior
O Plano Diretor pode orientar políticas públicas que melhorem o trânsito e que resguardem as identidades que convivem na cidade. Da mesma forma, se mal feito ou feito sem participação ou se não for regulamentado, pode fazer com que o trânsito se torne inviável ou que a cidade se descaracterize – aliás, é precisamente o que vem acontecendo com a capital pernambucana.
Segundo a Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional do Recife é estimado em 280 mil pessoas – são cerca de 70 mil famílias, ou 7% da população. Há cerca de 30 mil imóveis sem uso na cidade.
Ficou mais difícil conseguir moradia na capital, o que também não é casual ou fruto apenas da crise econômica. Essa é uma das áreas em que o Plano Diretor pode orientar políticas públicas. A omissão na regulamentação do Plano Diretor de 2008 deixou ainda mais difícil a questão da moradia.
“Os instrumentos previstos no Plano Diretor poderiam apoiar uma política habitacional e um desenvolvimento urbano mais igual”, afirma Socorro Leite, diretora-executiva nacional da ONG Habitat, uma das entidades signatárias da carta. “Esse é um documento que pode tornar a distribuição de ônus e bônus do desenvolvimento urbano mais equilibrada”, complementa.
Articulação
A revisão do Plano Diretor realizada em 2008 não foi acompanhada pela sociedade civil organizada da mesma maneira que está sendo agora. “A expectativa é que essa frente tenha mais força e possa incidir de maneira substativa no processo”, afirma Socorro Leite.
Para isso acontecer será necessário desmistificar e popularizar o que é o Plano Diretor, a sua revisão e vulgarizar os resultados – bons e maus – que ele vier a ter. “Esse é um grande desafio porque a discussão é muito técnica. Um dos caminhos que temos visto é chegar junto de militantes e de pessoas mais jovens nas periferias”, afirma Stélio Cavalcanti, advogado e um dos integrantes do Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH).
“O processo de participação da prefeitura é bem maquiado, ela finge que dá voz mas na verdade isso não acontece”, complementa Stélio. “Minha expectativa é que possamos reunir forças para intervir de forma interessante na revisão do Plano Diretor”, completa.
Resposta da Secretaria de Planejamento
Assim como as pessoas ouvidas pela Marco Zero, as entidades que subscrevem a carta são unânimes em afirmar que a Prefeitura e a sua Secretaria de Planejamento não estão sendo transparentes no processo de revisão do Plano Diretor, assim como no uso dos recursos públicos para esse fim.
Solicitamos à assessoria de imprensa da Secretaria de Planejamento que se posicionasse a respeito dos seguintes pontos, que constam da carta:
1- O não cumprimento da exigência de participação popular em todas as fases do processo de revisão, sem ao menos o envolvimento do Conselho da Cidade na definição dos termos que regeram a contratação de uma consultoria para tal fim;
2- A proposta de trabalho resultante da não discussão com a sociedade está enviesada e limitada ao focar a atualização de zoneamento e parâmetros urbanísticos, desconsiderando a necessidade de discutir a cidade como um todo;
3- O termo de referência para a contratação da consultoria é negligente no que tange o enfrentamento das desigualdades e a ampliação do acesso à cidade pelas populações historicamente negligenciadas;
4- A participação popular proposta é apenas uma alegoria e não o caminho para a construção das pactuações e a tomada de decisões sobre o futuro da cidade.
Por não estar com a internet funcionando na sede da Secretaria, na tarde dessa terça-feira, o e-mail não foi entregue. Argumentamos então que as questões acima poderiam ser repassadas por meio de texto no aplicativo whatsapp, mas a opção não foi aceita por ser uma conta pessoal, embora o número usado pela assessoria seja institucional. As questões também não puderam ser repassadas por voz – como sempre se fez na história do jornalismo pré-internet –, pela necessidade de registro da demanda por parte da assessoria de imprensa.
Assim, enviamos por áudio o pedido de posicionamento da secretaria dos temas acima, mas até o fechamento desse texto não houve resposta da Secretaria de Planejamento da Cidade do Recife.
Leia a íntegra da carta endereçada ao Conselho da Cidade:
POR UMA CIDADE JUSTA, INCLUSIVA E EFETIVAMENTE DEMOCRÁTICA
O Plano Diretor é a ferramenta prevista pela Constituição Federal para nortear o desenvolvimento das nossas cidades em todas as suas dimensões, sendo a lei fundamental da política urbana. A sua extrema importância fica clara pela rigorosa exigência legal de participação e transparência em sua elaboração, não devendo ser o produto de uma gestão ou de um prefeito, mas um produto de toda sociedade pactuando como a cidade deve ser desenvolver por dez anos.
No entanto, a experiência do último processo de revisão do Plano Diretor do Recife foi a de um pacto que nunca virou realidade. Primeiramente, por não ter sido respeitada a deliberação da Conferência do Plano Diretor e por ter sido enviado um substitutivo à Câmara que contrariava em diversos pontos a vontade expressa da sociedade. Depois, por não ter sido regulamentado durante todos esses anos desde 2008, deixando sem revisão ou elaboração leis importantes como a Lei de Uso e Ocupação do Solo e o Plano de Mobilidade. Diversos instrumentos que serviriam para efetivar a função social da propriedade, coibir a especulação imobiliária, garantir o direito à moradia nas áreas centrais ou proteger o patrimônio histórico ficaram sem regulamentação.
O resultado disso foi uma cidade que cresceu de forma desregrada, com um planejamento seletivo e que não conseguiu aproveitar os anos de grande crescimento econômico para se tornar uma cidade menos desigual, menos injusta e com mais qualidade de vida para todas as pessoas. Ocorreu o contrário: temos uma cidade cara, violenta e hostil, em que é muito mais difícil o acesso à moradia, a mobilidade vive em completo colapso e as identidades dos seus territórios vem sendo descaracterizadas, por um processo homogeneizador e predatório de desenvolvimento urbano.
Agora nos aproximamos de um novo processo de revisão do Plano Diretor e da legislação que o regulamenta. Esta deveria ser a oportunidade para corrigirmos os erros de planejamento e gestão da nossa cidade e realizarmos um processo para pensar de forma realmente coletiva que cidade queremos construir nos próximos dez anos.
Contudo, vemos com preocupação a forma como esta revisão já está posta, pelas seguintes razões: 1- O não cumprimento da exigência de participação popular em todas as fases do processo de revisão, sem ao menos o envolvimento do Conselho da Cidade na definição dos termos que regeram a contratação de uma consultoria para tal fim; 2- A proposta de trabalho resultante da não discussão com a sociedade está enviesada e limitada ao focar a atualização de zoneamento e parâmetros urbanísticos, desconsiderando a necessidade de discutir a cidade como um todo; 3- O termo de referência para a contratação da consultoria é negligente no que tange o enfrentamento das desigualdades e a ampliação do acesso à cidade pelas populações historicamente negligenciadas; 4- A participação popular proposta é apenas uma alegoria e não o caminho para a construção das pactuações e a tomada de decisões sobre o futuro da cidade.
Com base em tais constatações, defendemos que a prefeitura da cidade do Recife reabra a discussão sobre como se dará o processo participativo de revisão do Plano Diretor e demais leis integrantes do Plano de Ordenamento Territorial – POT, tendo o Conselho da Cidade como a legítima instância de coordenação desse processo. Também é necessário suspender todas as ações da gestão municipal que antecipam debates sobre conteúdos do Plano Diretor para áreas e temas de interesse privado e resgatar os planos setoriais elaborados recentemente como base importante de reconhecimento dos limites e possibilidades da nossa cidade.
Exigimos transparência e abertura para o reconhecimento e participação real dos sujeitos que lutam por seu lugar na cidade e por uma cidade que seja de todos os seus cidadãos e cidadãs. Recife não pode ser pensada apenas sob a ótica da maximização dos lucros dos setores que a compreendem como mercadoria. É preciso contemplar os diversos olhares, anseios e expectativas que se agregam na defesa por um outro modelo de cidade.
Recife, 19 de dezembro de 2017
Assinam esta carta:
Ação Comunitária Caranguejo Uçá, Actionaid Brasil, Associação Metropolitana de Ciclistas do Grande Recife – AMECICLO, Associação Por Amor às Graças, Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social-CENDHEC, Centro Popular de Direitos Humanos- CPDH, Comunidade Interdisciplinar de Ação, Pesquisa e Aprendizagem- CIAPA, Confederação Nacional das Associações de Moradores – CONAM, Consulta popular, Direitos Urbanos, Diretório Acadêmico de Geografia- UFPE, Equipe Técnica de Assessoria, Pesquisa e Ação Social – ETAPAS, Escola de Ativismo, Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – FASE, Habitat para a Humanidade Brasil, Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico – IBDU, Instituto dos Arquitetos do Brasil – IAB PE, MLPM- Chão de Estrelas, Movimento de Luta Popular e Comunitária – MLPC, Movimento de Mulheres Sem Teto de Pernambuco- MMST PE, Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST, NAJUP, Núcleo Multidisciplinar de Pesquisa em Direito e Sociedade – UFRPE, Observatório das Metrópoles, Observatório de Saneamento Ambiental Rede Interação, Resiste Santo Amaro, Segmento Popular do PREZEIS, Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Comercio Informal do Recife – SINTRACI, União Nacional Por Moradia Popular – UNMP e Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.
Luiz Carlos Pinto é jornalista formado em 1999, é também doutor em Sociologia pela UFPE e professor da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisa formas abertas de aprendizado com tecnologias e se interessa por sociologia da técnica. Como tal, procura transpor para o jornalismo tais interesses, em especial para tratar de questões relacionadas a disputas urbanas, desigualdade e exclusão social.