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Grupo Pankará defende ação social de evangélicos e não vê ameaça à cultura indígena

Raíssa Ebrahim / 30/01/2020

Grupo Pankará recebe doações de evangélicos

Um grupo de cerca de 130 famílias Pankará da Aldeia Serrote dos Campos, zona rural de Itacuruba, se opôs à denúncia feita por uma liderança indígena do território de que evangélicos da Assembleia de Deus Vitória em Cristo (Advec), do Pastor Silas Malafaia, surpreenderam a aldeia para evangelizar os indígenas em visita no último sábado (25).

Cerca de 50 fiéis da unidade Caxangá da Advec viajaram 500 quilômetros do Recife ao Sertão levando a palavra de Deus e doações de cestas básicas e brinquedos e terminaram sendo impedidos de entrar na aldeia, como mostrou matéria da Marco Zero Conteúdo ontem (29).

O cacicado de Cícera Pankará diz ter autorizado a visita dos evangelizadores como convidados e que não vê problema nesse tipo de iniciativa, que levaria o grupo Pankará a uma ação social com diversas atividades e doações.

A cacique Cícera se manifestou no Instagram no início da tarde desta quinta-feira (30), através da conta @resistir.existir.pankara. A reportagem não conseguiu contato direto com ela nesta quinta (30) até o fechamento desta matéria nem na quarta (29) durante a apuração da denúncia.

“Nós Povo Pankará do Cacicado de Cícera Cabral e do Pajé Manezinho Cacheado somos defensores e cultuamos nossas tradições, nossa religião, nossas raízes na tradição indígena, vivenciadas no nosso dia a dia. Porém, a palavra de Deus será sempre bem-vinda seja ela proferida por quem for”, diz trecho da nota.

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Boa noite!!!! Venho através desta rede social, primeiramente agradecer aos encantados de luz e nosso pai Tupã por ter enviado a nosso povo, pessoas de bem para levar um pouco de conforto físico e a palavra de Deus, ao mesmo tempo que eu e meu povo pedimos desculpas pelo acontecido, pois a outra Cacique, se achando dona da aldeia junto com alguns de seu povo de forma grosseira e desumana tentou impedir a entrada dos evangelizadores na aldeia. Causando tumulto e medo aos nossos convidados. Gostaríamos de deixar bem claro aqui que os evangelizadores momento algum invadiram nosso território, mais eles eram nossos convidados pois iam nos levar no dia de hoje uma ação social com diversas atividades e também doação de alimentos, brinquedos etc. Nós vivemos em um país laico e que em nossas casas temos direito de receber quem assim desejarmos, vivemos em uma aldeia e não em uma senzala onde os coronéis são os donos. Nós Povo Pankará do Ccacicado de Cicera Cabral e do Pajé Manezinho Cacheado, somos defendores e cultuamos nossas tradições, nossa religião, nossas raízes na tradição indígenas são vivenciadas no nosso dia a dia, porém a palavra de Deus será sempre bem vinda seja ela proferida por quem for. Cacique Cícera Cabral Povo Pankará

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Divisão interna

A organização interna na aldeia é complexa. O povo indígena Pankará da Aldeia Serrote dos Campos está dividido em dois grupos: um sob a liderança da cacique Cícera e o outro sob a liderança da cacica Lucélia, que protocolou denúncia no Ministério Público Federal após o ocorrido. Foi ela quem deu entrevista na quarta (29) à Marco Zero Conteúdo e informou que, apesar de haver dois grupos distintos, existe uma pactuação sobre a necessidade de anuência de ambos os lados para receber ações externas, o que teria sido desrespeitado no sábado (25).

Lucélia alega que o pastor teria “comprado” o apoio do outro grupo com presentes. Por outro lado, Francisca Pankará, do cacicado de Cícera, rebate, em conversa com a reportagem. “A gente vive também num momento de fragilidade, o país inteiro está numa crise econômica muito grande. Então qualquer cesta básica que chegue para as famílias já é uma ajuda. A gente não podia negar o direito das pessoas de escolherem e o nosso grupo escolheu receber os evangélicos. Nós temos uma cacique que é do povo, ela pede a opinião do seu povo para saber o que fazer e todos nós aceitamos a visita. Então não foi uma invasão, foi uma visita consentida por todos nós do cacicado de Cícera”.

Francisca também rebateu a acusação da cacica Lucélia de que a relação com os evangélicos comprometeria a cultura tradicional indígena, que não seria permitida pela igreja.

“Nossa luta é para o desenvolvimento e por dias melhores. Nós vivemos num país laico, mas defendemos nossa cultura, nosso povo, nossas tradições. Nós dançamos nosso toré, mas também respeitamos as pessoas e vivemos em comunidade. A gente tem tanta convicção do que a gente é que não temos medo de receber outros visitantes que têm outra denominação”, afirmou.

Francisca detalha que, desde março de 2019, as 130 famílias, insatisfeitas com a liderança que dizem ser centralizadora da cacica Lucélia, resolveram mudar de cacicado.

“Esses evangelizadores vieram fazer um trabalho social, do tipo que até a igreja católica e a prefeitura fazem, com cestas básicas e brinquedos. A gente achou que não era demais, por termos convicção do que nós somos, defendemos e mostramos isso em qualquer lugar. Então não temos problemas em receber visitantes”, opina.

Os Pankará lutam pela demarcação de terras há 15 anos. A manutenção da cultura indígena viva é justamente um forte fator para a demarcação e proteção de seu território. Parte da área está debaixo d’água, foi inundada para a construção da Barragem de Itaparica/Luiz Gonzaga, em Petrolândia, em 1988.

A esse processo que deixou marcas e expulsou pessoas de suas terras, soma-se agora a possibilidade de construção de uma usina nuclear, às margens do Rio São Francisco. O plano de erguer seis reatores, que também impacta a etnia Tuxá, veio novamente à tona em 2019 com um anúncio do Governo Bolsonaro.

A chegada do grupo externo de evangelizadores terminou gerando um conflito interno na aldeia e instaurou um clima de tensão fragilizando a unidade do povo e acirrando rivalidades.

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com