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Por que a reforma da previdência precariza a vida de quem trabalha no campo

Raíssa Ebrahim / 15/03/2019

A Reforma da Previdência do governo Bolsonaro atinge em cheio as famílias do campo, sobretudo as agricultoras nordestinas. A PEC 06/2019 aumenta a idade mínima para a aposentadoria das mulheres de 55 para 60 anos, igualando-a a dos homens; impõe para todos um piso anual de contribuição de R$ 600, independentemente da produção; e eleva a carência de 15 para 20 anos de contribuição. Se já não bastasse, a MP 871/2019 (saiba mais na entrevista ao final da matéria) ainda muda as regras para revisão da concessão de benefícios do INSS – inclusive estimulando gratificações para os servidores que fizerem cortes -, precarizando a vida das pessoas mais idosas, muitas delas doentes. Por isso o campo resiste.

A Fetape (Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco) e seus sindicatos, em conjunto com diferentes movimentos e organizações sociais, deram início, nesta sexta (15), a uma série de audiências públicas para debater o assunto, mobilizar o meio rural e pressionar a classe política na tentativa de impactar a votação da PEC e da MP. As audiências acontecem do Sertão à Região Metropolitana (confira abaixo a agenda). Foram convidados prefeitos, vereadores, deputados estaduais e federais e senadores, além de representantes das igrejas.

“Uma vez que a Reforma da Previdência ameaça os ganhos, ela tende a aumentar a pobreza, a violência no campo e também na cidade, porque as pessoas migram, a prostituição… Principalmente as mulheres são atingidas, muitas são chefes de família que trabalham em quintais produtivos e com pequenos rebanhos e estão perto da idade de se aposentar”, analisa Cícera Nunes, presidente da Fetape.

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Os benefícios ajudam as famílias agricultoras a manterem a produção de cerca de 70% da comida que chega à nossa mesa. Em Pernambuco, feijão, mandioca, milho e leite estão entre os principais itens produzidos pelo setor. Sem contar que, como muitas propriedades ainda são dominadas pelos homens, a aposentadoria é tida como uma independência para diversas mulheres, que enfrentam duas ou três jornadas de trabalho por causa dos cuidados com a casa, os filhos e os netos.

O assessor jurídico para assuntos previdenciários da Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), Evandro José Morello, em pronunciamento recente no Congresso, avaliou que, caso o texto da Reforma da Previdência seja aprovado como está, 70% das produtoras rurais atualmente ocupadas terão que trabalhar entre 41 e 46 anos para alcançar a idade de aposentadoria, enquanto a expectativa média de vida em muitos municípios não supera os 65 anos.

As aposentadorias rurais têm também ainda um impacto significativo na economia do interior, assumindo o papel de uma espécie de programa de renda familiar mínima. Segundo dados de 2018 do INSS e da Secretaria do Tesouro Nacional, repassados pela Fetape, os benefícios especiais das trabalhadoras e dos trabalhadores rurais nos noves estados do Nordeste somam mais de R$ 51 bilhões. Em Pernambuco são mais de R$ 6,5 bilhões, enquanto o FPE (Fundo de Participação dos Estados) é de aproximadamente R$ 5 bilhões e o FPM (Fundo de Participação dos Municípios), R$ 4 bilhões.

AGENDA DE AUDIÊNCIAS

SERTÃO
15 de março
Afogados da Ingazeira, no Centro Desportivo Municipal Lúcio Luiz de Almeida (Rua Joaquim Nazário, nª 136)
Das 9h às 12h

AGRESTE
18 de março
Tacaimbó, na Quadra Poliesportiva (a 300 m da entrada da cidade, pela BR 232)
Das 9h às 12h

ZONA DA MATA e REGIÃO METROPOLITANA
29 de março
Carpina – Centro Social da Fetape (Av. José Otávio, 940 – Cajá)
Das 9h às 12h

ENTENDA A MP 871/2019

A Medida Provisória 871/2019 institui o programa de análise de benefícios com indícios de irregularidade e de revisão por incapacidade. Determina que só valerão, para fins de comprovação da atividade rural, as informações dos segurados especiais cadastradas exclusivamente no Cadastro Nacional de Informações Sociais – CNIS-Rural, já a partir de janeiro de 2020. Sendo que a Contag estima que menos de 10% dos segurados especiais estão cadastrados.

Quem não tiver o tempo de trabalho rural atualizado ano a ano ficará obrigado a apresentar ao INSS comprovante de recolhimento de contribuição previdenciária sobre a venda da produção rural de cada ano, até o limite dos últimos cinco anos. Na prática, as mudanças dificultam o acesso à aposentadoria rural.

“O meio rural vai ser massacrado com a revisão do benefício”, diz Inês Belarmino, advogada e assessora jurídica da Fetape.

O que muda para a aposentadoria rural com a revisão de benefícios imposta pela MP 871/2019?

O benefício rural é a única categoria cujo direito é reconhecido em cima da análise subjetiva do servidor. É diferente de uma revisão no benefício urbano, em que a fundamentação daquele direito foi a contribuição – e contra a contribuição não há argumento, está lá no sistema. O que maliciosamente não se diz é que, com a MP 871/2019, vai-se economizar em cima dos benefícios rurais algo na casa de R$ 9,8 bilhões. Porque está direcionada para invalidez, que é subjetiva, depende do médico – a dor quem sabe é quem está sentindo. E esse médico vai receber uma bonificação para, em regime de mutirão, suspender benefícios, assim como o servidor vai receber, pela primeira vez na história da previdência, para revisar e suspender processo. É uma caça às bruxas. O meio rural vai ser massacrado com essa revisão. Ela foi criada basicamente para excluir benefício rural. O governo enxuga dos dois lados, portanto, com a revisão e com a PEC.

Como era antes?

A previdência ainda não começou a revisar porque ainda não fez orientação interna. Pelo menos em Pernambuco, nenhuma gerência criou ainda grupo de trabalho de revisão. O que existe é o MOB (Monitoramento Operacional de Benefício), sistema constitucional de revisão atual. Esse maldito pente-fino é apenas para analisar processos concedidos com subjetividade do servidor, com seu depoimento. Antes o trabalhador era obrigado a dar uma entrevista, levar testemunha. E aí, nesse processo, vai-se claro achar erros materiais, como, por exemplo, uma entrevista mal feita, uma xerox não legível, uma data que não bate, um documento que não está legível, uma identidade muito antiga cuja foto não aparece mais, a falta uma assinatura… Como uma MP determina criar grupos de trabalho em mutirão para analisar erro material pagando bônus ao servidor? Esse governo quer simplesmente cortar benefícios, mas isso não está escrito.

Como as trabalhadoras e os trabalhadores rurais podem se defender?

Quando o governo suspender o benefício, dará um prazo de dez dias para o trabalhador rural reapresentar essa documentação. Caso isso não aconteça, o benefício é cancelado e abre-se o prazo de 30 dias para apresentar recurso, que não tem efeito devolutivo, isto é, o processo fica suspenso até o final da análise. Esse trabalhador pode morrer sem voltar a ter acesso ao benefício. E para recorrer às vias judiciais, é preciso primeiro passar por essas administrativas, que também têm suas formas de serem proteladas.

Quem serão os mais impactados?

O impacto vai acontecer no Norte e no Nordeste. Por que não no Sul e Sudeste? Porque lá eles são contribuintes, com boa parte da agricultura mecanizada. O pequeno produtor tem seu trator, dois ou três empregados, é segurado especial contributivo, porque tem condições de contribuir para poder receber o teto. Mas aqui é distribuição de renda, assim como na situação ribeirinha do Norte. São mundos diferentes dentro do mesmo Brasil. No País, um terço dos benefícios concedidos são rurais, quase 30 milhões. Em Pernambuco, são em torno de 10 milhões de trabalhadores rurais, 600 mil recebendo benefícios. As mudanças devem atingir uma cifra de 30% a 40% desses trabalhadores. Ou seja, 200 mil pessoas. São idosos(as), muitas vezes doentes.

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com