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Registro da rebelião de Alcaçuz, em janeiro de 2017 (Foto: Andressa Anholete/AFP)
por Rafael Duarte
da Agência Saiba Mais
Um relatório inédito elaborado a partir da inspeção nos presídios do Rio Grande do Norte, Roraima e Amazonas, palco de massacres de presos entre dezembro de 2016 e janeiro de 2017, aponta graves indícios de tortura e uma série de violações aos direitos e à dignidade humana dos apenados.
Na época das rebeliões provocadas por guerras entre facções de crime organizado dentro e fora dos presídios, foram oficialmente declarados mortos 26 presos em Alcaçuz, na Grande Natal (RN), 33 na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Boa Vista (RR) e 60 apenados no complexo penitenciário Anísio Jobim, em Manaus (AM). As rebeliões e as mortes tiveram repercussão internacional.
No capítulo dedicado à penitenciária de Alcaçuz, o documento compara as práticas de agentes do Estado às de crimes praticados em 2003 por soldados norte-americanos na penitenciária de Abu Ghraib, situada nas proximidades de Bagdá, no Iraque.
O tipo de abordagem usado pelo Exército dos EUA no Iraque e por agentes penitenciários no Rio Grande do Norte com os presos de Alcaçuz se assemelham na tortura física e psicológica, exposição, posições de estresse e humilhantes, padronização excessiva do comportamento e imagem.
Segundo o relatório “é possível afirmar que a prática dos procedimentos adotada tanto em Alcaçuz mostra uma rigidez do regime disciplinar que extrapola a perspectiva legal e não possui diretrizes mínimas de garantias, de transparência, de publicidade e de dignidade para as pessoas presas”.
A agência Saiba Mais teve acesso ao relatório Monitoramento de Recomendações: Massacres Prisionais dos Estados do Amazonas, do Rio Grande do Norte e de Roraima, de 174 páginas, produzido pelo Mecanismo Nacional de Prevenção de Combate à Tortura em parceria com o Comitê Nacional de Prevenção de Combate à Tortura, dois órgãos do Governo Federal que atuam de forma independente e com foco na Defesa dos Direitos Humanos.
– O Mecanismo Nacional registra seríssimas semelhanças entre as práticas de tortura e maus tratos desenvolvidas pelas Forças Armas dos EUA na Penitenciária de Abu Ghraib e os procedimentos adotados nas Penitenciárias de Alcaçuz e PERCM. Neste sentido, salienta-se que as práticas adotadas nas Penitenciárias de Alcaçuz e penitenciária estadual Rogério Coutinho Madruga podem ser considerados aos crimes de tortura e maus tratos tipificados na legislação penal brasileira.
O documento será apresentado oficialmente nesta quarta-feira (28), a partir das 17h, no Ministério dos Direitos Humanos, em Brasília.
Em relação à Alcaçuz, o relatório critica a falta de interesse do Governo do Estado, Tribunal de Justiça, Ministério Público Estadual e Defensoria Pública para atuarem juntos no cumprimento das recomendações feitas logo após os massacres dos presos em Alcaçuz. Segundo a equipe de fiscalização, o governador Robinson Faria sequer aceitou receber a equipe de inspeção que monitorou as condições da penitenciária após a maior rebelião da história do Estado.
– Em março de 2017, o Mecanismo Nacional realizou visita ao Estado após a referida rebelião e o massacre dela decorrente. Nessa ocasião, verificou que todos os problemas apontados ao longo dos anos foram agravados dentro da unidade, dentre os quais se destaca: a superlotação; a omissão deliberada do Estado, sobretudo na garantia ao direito à vida e demais direitos das pessoas presas; a prática de tortura; as transferências irregulares; as mortes e o desaparecimento forçado de presos.
De acordo com o documento, das 73 recomendações examinadas, apenas 1 foi cumprida; e 56 ou não foram cumpridas ou não se conseguiu informações suficientes para avaliação do seu cumprimento. Do total, apenas 3 medidas importantes foram iniciadas e 13 foram classificadas como medidas paliativas, ou seja, tentaram contribuir para a solução apresentada, mas não houve solução.
As informações também reforçam o “desaparecimento” de 32 presos após o massacre de Alcaçuz. Na época, o próprio Governo do Estado reconheceu a morte de 26 presos na penitenciária durante os confrontos entre as duas facções que se rebelaram, mas ignorou os indícios e as informações extraoficiais de que haviam mais mortes.
A secretaria de Estado de Justiça e Cidadania considerou 15 presos como foragidos após o massacre. Porém, o relatório destaca que a pasta “não apresentou critérios aceitáveis para determinar que esses presos fugiram efetivamente da unidade prisional. Pelo contrário, a Secretaria classificou como “foragidos” esses 15 presos que não foram encontrados na Penitenciária Estadual de Alcaçuz após a rebelião – o que não exclui a possibilidade de terem sido mortos e seus corpos não terem sido encontrados e identificados”.
Os indícios de que os presos foram mortos e os corpos enterrados dentro da própria penitenciária são reforçados pelo fato do desaparecimento ter ocorrido em um contexto de massacre; a negativa ou omissão de autoridades na apuração destes desaparecimentos; e a inadequação da investigação ou atividade pericial para apurar relatos de ocultamento de corpos.
– “Este conjunto de indícios corroboram a possibilidade da existência de práticas de desaparecimento forçado, conforme definição legal da Convenção Internacional para Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, objeto do decreto n. 8767/2016, firmado pela República Federativa do Brasil”, diz o relatório.
Somente durante a gestão Robinson Faria (PSD), já passaram pela secretaria de Estado de Justiça e Cidadania, que coordena o sistema penitenciário do Estado, cinco secretários diferentes: Zaidem Heronildes, de janeiro a março de 2015; Edilson França, de março a setembro de 2015; Cristiano Feitosa, de outubro de 2015 a maio de 2016; Wallber Virgolino, de maio de 2016 a maio de 2017; e o atual titular da pasta Luís Mauro Albuquerque Araújo, que assumiu em 5 de maio de 2017, cinco meses após o massacre em Alcaçuz.
O relatório também contou com depoimentos das famílias de presos, que denunciaram as condições a que estavam sendo submetidas durante as visitas, além dos próprios maus-tratos praticados contra os parentes dentro do presidio, como trabalho irregulares, sem direito a remição de pena; a revista vexatória nos familiares e nas pessoas presas; a prática de maus tratos, tratamentos humilhantes, vexatórios e de procedimentos que apresentam fortes indícios de práticas de tortura.
A Sejuc instituiu à revelia da lei um conjunto de normas disciplinares que devem ser obedecidas pelos presos. As normas foram batizadas em Alcaçuz de “Regras do Condenado” e, segundo o relatório, são “regras arbitrárias e abusivas que ignoram as condições de tratamento que conferem dignidade à pessoa, de anulação psicológica dos indivíduos”.
As penas aplicadas aos presos que descumprem as regras e comandos verbais para a revista nos trajetos internos ou para posicionar-se em “procedimento” são extremamente graves, avaliam os fiscais.
– Há relatos consistentes apontam que o uso periódico de espargidores químicos (sprays de pimenta) e agressões com cassetetes ou tonfas como sanção por não seguir os comandos orais. Da mesma forma, foram trianguladas informações que apontam para recorrentes agressões nos dedos e nas mãos como forma de castigo ou suposta prevenção a reações que pessoas presas possam ter em uma situação de tensão.
Outro tipo de agressão a que os presos são submetidos em Alcaçuz é chamada de “extração”:
– Essa prática consiste na retirada de um preso da cela por um agente penitenciário que o algema com as mãos para trás, coloca-se por detrás do preso, pressiona um cassetete ou tonfa na região de seu pescoço até suspendê-lo de modo a fazê-lo caminhar com a ponta dos pés em direção a outro lugar na unidade. Houve relatos de que seria comum que pessoas de baixa estatura chegassem a desmaiar por falta de ar durante esta prática. A “extração” normalmente é utilizada como uma técnica para transporte de presos de uma cela para outra e é empregado, particularmente, para deslocar para uma cela destinada à sanção disciplinar, de isolamento ou separação.
Ainda de acordo com o relatório, os presos em Alcaçuz e no presidio Rogério Coutinho Madruga são proibidos de falar sem que algum agente penitenciário lhes dirija a palavra antes, bem como sem autorização expressa por parte destes agentes. Também não é permitido que as pessoas presas olhem diretamente para o rosto dos agentes penitenciários.
A equipe da missão responsável pela elaboração do relatório também colheu relatos sobre grávidas obrigadas a fazer agachamento e a retirar suas roupas íntimas, além do uso de espelhos. Crianças também ficam nuas, procedimento coordenado por agentes penitenciárias na presença das mães. Porém há um caso descrito de uma criança do sexo masculino obrigada a afastar a pele da sua genitália para inspeção, a fim de verificar se contava com a presença de materiais não autorizados no interior do prepúcio da criança.
– Mecanismo Nacional entende que a revista vexatória é uma decisão administrativa abusiva, inócua para a finalidade pretendida e uma forma de tratamento humilhante, assim recomenda veementemente a abolição da prática da revista vexatória nos visitantes.
O Governo Robinson Faria não deixou apenas de cumprir as recomendações feitas pela União após o massacre de Alcaçuz. Também não há informações sobre a apuração das denúncias que chegaram ao conhecimento do Governo via disque 100 relacionadas ao tratamento dos presos na penitenciária.
De 1º de janeiro de 2017 até abril de 2018, o disque-denúncia recebeu 331 denúncias que envolvem negligência (96), violência institucional (94), violência física (86), violência psicológica (41) e outras violações aos Direitos Humanos (1), além de tortura e outros tratamentos e penas crueis, desumanos e degradantes (13).
– Quanto à recomendação de que o Ministério da Justiça, por meio de órgão disciplinar competente, instaurasse procedimento apuratório, investigasse e, havendo violações comprovadas, responsabilizasse administrativamente os agentes públicos que atuaram na Força Tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP) no que tange à prática de tortura e maus tratos, bem como crimes contra a vida, após análise do Relatório da atuação da FTIP no RN não há informações sobre a instauração de procedimentos apuratórios.
O documento também destaca que entidades estatais ou da sociedade civil que fiscalizam penitenciárias e violações de direitos humanos foram impedidas de entrar em Alcaçuz.
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